As
populares novelas brasileiras batem recordes de audiência no âmbito nacional,
sendo exportadas e premiadas internacionalmente. Costumava assisti-las dubladas
para o espanhol durante os anos em que morei nos EUA, visando continuar
sintonizada e atenta para as últimas tramas macabras da mídia brasileira.
Recordo uma situação inusitada pela qual passei naquele país, quando fui
apresentada a um moçambicano que ao ouvir meu nome me perguntou risonhamente:
“Cadê Rute”? Tamanha foi a minha surpresa ao ouvir essa frase há vários anos e
quilômetros de distância da época e local onde assisti à novela Mulheres de
Areia, na qual as irmãs gêmeas Raquel e Rute que se engalfinhavam pelas mesmas
razões de sempre, dinheiro, triângulos amorosos e questões afins.
Se ainda me restasse alguma dúvida sobre o impacto e influência da mídia de massa
na dita sociedade moderna, esta teria sido dissipada no último verão, quando
tive a oportunidade de acompanhar um grupo de americanos como tradutora, em uma
visita à comunidade Cidade de Deus, que ficou conhecida mundialmente através do
premiado filme homônimo. . Ouvi relatos de alguns moradores sobre questões
preocupantes, sendo que uma delas já havia sido divulgada pela própria imprensa
brasileira: o filme retratando (única e exclusivamente) a violência gerada pelo
tráfico de drogas na região havia prejudicado imensamente os residentes dessa
comunidade, que passaram a encontrar grandes dificuldades para obter emprego em
outras regiões da cidade. Além disso, nessa ocasião, afirmou-se que as
representações negativas abundantes no filme influenciaram o comportamento de
alguns jovens que passaram a imitar o modus operandi dos personagens. Portanto
para aqueles afeiçoados a questionar a validade dos estudos e pesquisas sobre
mídia, racismo e representações raciais, ou ainda, a legitimidade das críticas
e protestos contra os recorrentes estereótipos negativos veiculados pela mídia,
vale repensar suas posturas.
Assim sendo, no contexto de um país onde mulheres e homens negros geralmente
são invisibilizados e vilipendiados pela mídia, e num espaço no qual os padrões
de beleza vigentes são notadamente eurocêntricos, o anúncio de que a maior rede
de televisão do Brasil teria como protagonista de sua novela das nove uma
mulher negra foi, no mínimo, surpreendente. A partir desse anúncio, o rosto de
Thais Araújo passou a estampar as principais revistas do país, transformando,
mesmo que temporariamente, o panorama das bancas que quase invariavelmente
ostentam rostos brancos. Com ressalva das coberturas sobre crime e combate ao
tráfico de drogas e à violência, nas quais as imagens de corpos negros
estendidos no chão, em sua maioria homens jovens de origem humilde, são
constantes. Claro, há também espaço para os desportistas e atletas negras e
negros, e as sambistas negras, ou assim chamadas mulatas, principalmente durante
o período que precede o carnaval. Esse texto visa abordar e contextualizar as
implicações, manifestações históricas e conseqüências dessas presenças e
ausências, demonstrando como o corpo negro, e especificamente o corpo da mulher
negra, tem sido historicamente apropriado como um espaço de significados
contestados.
Não posso negar que, assim como várias outras negras e negros brasileiros,
fiquei entusiasmada como as propagandas que retratavam essa protagonista negra
como uma mulher inteligente, independente e bem sucedida, uma top model, algo
que vai de encontro aos estereótipos depreciativos que freqüentemente habitam
os lares de milhões de famílias brasileiras há décadas através da telinha. Essa
questão se torna particularmente consternadora no que diz respeito às mulheres
negras, constantemente representadas como subservientes ou lascivas e
sexualmente irresistíveis e porque não dizer, imorais. Não quero com isso
sugerir que as representações negativas dos homens negros sejam menos
preocupantes, principalmente em função dos alarmantes índices de mortes
violentas de homens negros jovens que são eliminados cotidianamente, sob a
implícita justificativa da necessidade de se garantir uma sociedade mais
segura, através de projetos “pacificadores”. Precisando-se de um exemplo atual
da figura de linguagem oximoro, sugiro que recorram a esse.
Viver a Vida, de autoria de Carlos Manoel traz como personagem principal
Helena, sendo essa a quinta das protagonistas conhecidas como “as Helenas de
Manoel”. Ao som de uma suave bossa nova, a novela se inicia e surge Helena, à
beira da praia sendo entrevistada, com suas vastas madeixas, bela, serena e
autoconfiante. Sua família negra se orgulha dela, mas seu sucesso parece
incomodar a irmã mais nova, que é retratada como uma mulher desenfreada
envolvida em um tumultuado relacionamento amoroso com um homem negro morador de
uma favela carioca. Esse personagem incorpora todos os estereótipos recorrentes
do homem negro, o ser quase irracional e violento envolvido em atividades
ilícitas que espanca mulheres. Sua namorada se torna mais afável em função de
uma gravidez e o nascimento da criança, que a princípio é rejeitada, sendo que
a participação de seu namorado nos próximos capítulos diminui
consideravelmente.
A despeito do grande desconforto causado por essas já esperadas reiterações de
imagens depreciativas, escolhi enfocar minha atenção e esperanças de redenção
na personagem de Helena. Afinal de contas, era um grande alento vê-la
triunfante nas passarelas, graciosa em seus movimentos, serena e sensata em sua
convivência com sua família e amigos. Ela tem como sua principal rival,
Luciana, uma jovem modelo branca que parece ser obcecada por Helena, sua maior
rival. Essa rivalidade obsessiva lembrava as picuinhas retratadas no filme e
novela sobre a vida da personagem histórica de Chica da Silva, que era
perseguida pelas mulheres brancas da sociedade colonial mineira pela sua
ascensão social. Porém, pensei com os meus botões, relevarei, nada de anormal,
visto que inúmeros espaços profissionais são marcados por intensas e obsessivas
competitividades.
A trama se intensifica a partir do momento que Helena conhece Marcos, pai de
Luciana, um homem maduro e muito bem sucedido, que se apaixona por ela quase
que instantaneamente. Apesar dos protestos da ex-esposa e da filha, ele passa a
cortejar Helena, levando-a para restaurantes caros, jantares românticos em seu
iate particular, passeios de helicóptero. Na noite em que esse homem
galanteador a leva para um jantar em alto mar e a surpreende com um barco que
se ilumina ao seu comando, acenderam-se também as luzes que revelaram
semelhanças inegáveis com essa outra personagem, provavelmente a mulher negra
mais recorrente da cultura popular Brasileira, cuja imagem também viaja pelo
mundo. A cena do barco remeteu-me às cenas recorrentes do filme e da novela
Xica da Silva (seu nome foi grafado com X nessas obras), onde João Fernandes, o
português contratador de diamantes, é retratado como um homem que cede aos
caprichos de uma autoritária e frenética Xica da Silva. Ele manda formar um
lago artificial e construir um navio para ela, a escravizada por ele alforriada
que não conhecia o mar. Evidenciaram-se então as semelhanças entre as tramas e
coincidentemente (ou não), a personagem histórica de Chica também foi vivida
por Thais Araujo, há aproximadamente dez anos atrás.
De acordo com minuciosa pesquisa de autoria da historiadora Junia Furtado,
feita em uma série de arquivos e registros históricos, Chica da Silva, era
filha de uma escravizada africana, nascida em Arraial do Tejuco (hoje
Diamantina), Minas Gerais (MG), entre os anos de 1731 e 1735, no período
conhecido como o ciclo do ouro brasileiro (sendo seu nome grafado com Ch).
Consta nos registros que um nobre representante da coroa Portuguesa, João
Fernandes, compra Chica e confere-lhe a alforria alguns meses depois. João
havia sido enviado ao Brasil para administrar a mineração de diamantes em MG e
ao associar-se a ele, Chica da Silva se torna uma figura poderosa na região. A
partir de um poema da escritora Cecília Meireles, essa personagem da história
brasileira ganha notoriedade e passa a ser (des)retratada em peças de teatro,
músicas, um filme e uma novela de grande sucesso no Brasil e no exterior, e
personagem de vários desfiles de carnaval.
Para que possamos adequadamente analisar uma personagem recorrente na mídia ou
na cultura popular de um país, faz-se necessário contextualizá-la dentro das
ideologias vigentes e/ou contestadas dentro desse contexto. Acredito que, no
caso do Brasil, o mito da democracia racial, inspirado pelo sociólogo Gilberto
Freire e amplamente difundido pelas elites políticas e intelectuais do país,
fundamentou o arcabouço que informa a imaginação de diretores, compositores e
autores que retrataram contemporaneamente a figura histórica de Chica da Silva.
Na concepção romantizada e sexista de Freire, os portugueses chegaram e
consolidaram sua presença no Brasil a partir de um envolvimento consensual e
harmonioso com mulheres africanas que, segundo ele, eram irresistíveis aos
colonizadores que “gostosamente se misturavam com as mulheres de cor logo ao
primeiro contato” . No entanto, a sua visão fantasiosa mascara a natureza
violenta e opressora característica do processo de colonização européia e das
relações entre colonizadores, mulheres africanas e suas descendentes
escravizadas, dentro de um contexto de relações de poder extremamente
desiguais.
Outros aspectos significativos no âmbito da análise crítica das representações
do corpo da mulher negra emergem a partir do momento que as poucas pesquisas
sobre a vida de Chica da Silva revelam enormes discrepância entre a vida do
personagem histórico e suas representações na mídia de massa brasileira.
Evidencia-se um investimento na perpetuação de estereótipos desqualificantes.
No filme, na novela e na canção que levam seu nome (grafado com X), Chica é
representada como uma mulher de sexualidade animalesca, um ser frívolo e quase
irracional que seduz todos os homens ao seu redor, uma tirana que humilha suas
mucamas. Tanto no filme quanto na novela, o casal não tem filhos e ela termina
pobre, abandonada por João Fernandes que é chamado de volta a Portugal, em
função de pretensas denúncias anônimas de desvio de dinheiro, envolvimento com
bruxaria e práticas hereges e conduta moral questionável, ou seja, seu
envolvimento com uma mulher negra. Entretanto, a pesquisa de Júnia Furtado,
revela que Chica da Silva e João Fernandes formaram uma família numerosa,
dentro de um relacionamento estável, e que João retornou para gerenciar os negócios
da família em função da morte de seu pai, contradizendo a caracterização do
final desse relacionamento no filme e na novela. As pesquisas confirmam que
alguns anos mais tarde seus filhos também viajam para ser educados em Portugal,
enquanto suas filhas recebem sua educação formal no Brasil, e demonstram também
que o casal se manteve em contato durante vários anos após sua partida.
Portanto, não é a minha intenção descartar a possibilidade da existência de
amor verdadeiro dentro desses espaços de dominação. Mas, ao propor uma análise
crítica do contexto ideológico das representações de negras e negros na mídia e
cultura popular do Brasil, faz-se necessário ressaltar que, inspiradas na obra
de Freyre, as elites brasileiras decantam há décadas o fenômeno da miscigenação
de raças como a prova cabal de que o racismo e o preconceito racial não são
constitutivos do tecido social brasileiro. Nessas narrativas, a miscigenação
racial proporciona a amalgamação bem sucedida de diferenças culturais, étnicas,
raciais e sociais. Também foi de grande relevância o papel de doutrinas
científicas racistas Norte-Americanas e Européias que emergiram em torno de
1883. As mesmas tiveram forte influência no pensamento das elites intelectuais
brasileiras do final do século XIX e início do século XX que, fundamentadas nos
preceitos de tais doutrinas, depositaram no processo de miscigenação as
esperanças de que a nação brasileira gradativamente embranquecesse, dessa forma
assemelhando-a as nações européias.
Todavia, estudos como o de Laura Moutinho, que faz uma análise das estatísticas
sobre casamentos inter-raciais no Brasil, demonstram que a ocorrência desses
casamentos contraria as narrativas tradicionais sobre as características das
relações raciais no país. Os dados mostram que 80% dos casamentos no Brasil são
endogâmicos e que os números têm se mantido relativamente estáveis há 50 anos.
Além disso, dentro dos 20% de casamentos inter-raciais, há uma menor incidência
de homens brancos casados com mulheres negras. Portanto, podemos afirmar que
fora do âmbito das fantasias raciais da intelectualidade branca e dos contos de
fada midiáticos nos quais o príncipe rico e branco casa-se com a Cinderela
negra, as elites brancas sempre estiveram, e permanecem conscientes do alto valor
do capital social da branquitude e os privilégios por ela conferidos.
As Cinderelas negras são, de fato, um personagem recorrente nas novelas. Em
dezembro de 2003, criou-se um furor na mídia, em torno do fato de que a novela
das 7 da noite teria sua primeira protagonista negra, Thais Araújo. Porém,
simultaneamente, um duro golpe foi desferido nas esperanças de que a personagem
trouxesse alguma redenção para a já dilapidada imagem das mulheres negras na
televisão brasileira: o título da novela, A Cor do Pecado . A trilha sonora
trazia a canção homônima, que já foi gravada por várias cantoras e cantores
brasileiros renomados, cuja letra discorre sobre a traiçoeira irresistibilidade
da cor e do sabor da pele morena. Salta aos olhos, portanto, as óbvias e aflitivamente
problemáticas implicações da associação direta da raça negra e a pele não
branca com o pecaminoso ou a transgressão de preceitos cristãos. E a trama...
trazia mais uma vez, uma mulher negra pobre que encanta um branco rico com o
seu charme e simplicidade, e que inexplicavelmente não consegue resistir aos
encantos de sua pele, da “cor do pecado”. Este homem branco enfrenta sua
família branca e sua namorada, que arma todos os tipos de sortilégios visando
casar-se com ele por dinheiro, e confronta tudo e todos para se casar com
Preta.
Sim! A personagem era assim tratada e seu nome raramente mencionado, visto que
a mesma era um universal ou genérico imbuído de múltiplos significados
contestados no contexto das narrativas tradicionais sobre a formação da nação
brasileira. Preta, e por extensão seu filho, cuja paternidade só foi
reconhecida pelo pai branco após muitas reviravoltas, incorporava mitos
fundadores e ideologias hegemônicas sobre relações raciais e de gênero no
Brasil. Assim sendo, a personagem principal, Preta, assim como Xica e
atualmente Helena, incorporam o pensamento hegemônico sobre raça e
miscigenação, e sobre relações raciais e de gênero no país Essas personagens
possibilitam uma reiteração contemporânea das narrativas fantasiosas de Gilberto
Freyre sobre o processo de colonização do Brasil, e, por conseguinte, do mito
da democracia racial. Concomitantemente, as mesmas incorporam e se encontram
inseridas em tramas que evidenciam as profundas contradições desses mitos
fundadores e narrativas tradicionais.
Dentro dessa perspectiva, sigamos o fio condutor que situa essas personagens
dentro de um contínuo e a recorrência de representações estereotipadas de
negras e negros na mídia brasileira. Em Viver a Vida, Marcos, um homem branco
riquíssimo oferece a Helena a segurança e conforto material que sua profissão
de modelo (supostamente) não permitiria. Afinal de contas, no contexto de um
país que nega o protagonismo negro tanto na mídia de massa quanto em livros
didáticos, a imagem de uma mulher negra bem sucedida não pode se sustentar sem
o aparato de um homem branco. Marcos passa a ser aquele que endossa a presença
e o sucesso dessa personagem, passando a ser principal protagonista da trama,
praticamente vivendo à sua sombra, tornando essa mulher negra mais palatável,
pelo menos para os parâmetros tradicionais de subserviência historicamente
vigentes na mídia brasileira. Além disso, ele afirma sua posição de dominador a
partir do momento que insistentemente sugere a Helena que abandone sua carreira,
sob a alegação de que não mais necessita das passarelas para seu sustento e
conforto.
A reiteração de estereótipos e representações depreciativas sobre mulheres
negras torna-se mais evidente a partir de uma dramática (e bastante anunciada)
guinada na trama, que se inicia quando as duas modelos viajam a trabalho para a
Jordânia. Antes da viagem, Tereza, mãe de Luciana pede a madrasta Helena que
cuide de sua filha, e demonstrando extrema preocupação com sua inexperiência
com viagens ao exterior, enfatiza que está colocando o bem estar e a segurança
da mesma em suas mãos, uma modelo mais experiente que agora faz parte da
família. Porém, essa tarefa se torna muito difícil visto que Luciana antagoniza
Helena de forma ainda mais intensa e desrespeitosa, não somente em função da
rivalidade profissional, mas também por não aceitar o casamento com seu pai.
Ao final da viagem, após muitos atritos e situações constrangedoras nas quais
Luciana age com uma criança mimada, ou uma patroa prepotente e racista, a paciência
de Helena se esgota quando ela é acusada de ter feito um aborto para conseguir
um contrato de modelo. Indignada, a madrasta negra desfere um tapa no rosto da
enteada branca. Nesse momento, Helena também decide por um ponto final na
relação abusiva e diz que no dia seguinte vai para o aeroporto de táxi,
enquanto Luciana deveria ir de ônibus com as outras modelos. Durante a noite, a
caminho do aeroporto, o motorista do ônibus perde o controle do veículo e o
mesmo rola por uma ribanceira. O acidente resulta na hospitalização de Luciana,
e o diagnóstico indica que ela está paraplégica.
A partir desse momento, a vida de Helena desmorona – e progressivamente, passa
a ocupar um papel secundário na novela, pois todas as atenções se voltam para a
acidentada, fato que se evidencia inclusive pela presença da atriz branca que
interpreta Luciana em inúmeras capas de revistas, enquanto que a presença de
Thais diminui drasticamente. A madrasta deixa de ser aquela mulher elegante e
glamorosa, abraçando a culpa pelo acidente com a enteada, chorando copiosa e
quase que ininterruptamente, e é expulsa do quarto da acidentada em suas
tentativas de redimir a suposta culpa. De volta ao Brasil ela, grávida, é
rejeitada pelo marido. Chega então o momento no qual a mãe ultrajada também
decide acertar contas com a madrasta que, segundo sua compreensão, não havia
cumprido o seu compromisso, de zelar por sua filha favorita. Nessa cena que se
abre com um breve acorde de percussão que lembra um berimbau – e remete a cenas
de açoitamento de negros e negras escravizadas muito recorrentes nas chamadas
novelas de época - os trajes de Helena são rústicos, o rosto sem maquiagem, o
corpo sem adornos, os cabelos presos, o medo estampado em seu rosto. Nesse
processo de expiação de pecados, a madrasta mais uma vez chora enquanto a mãe
ultrajada profere um longo discurso no qual discorre sobre a pretensa empáfia e
arrogância demonstradas por Helena durante o processo de se seduzir e se
apossar do seu ex-marido.
Profundamente revelador é o discurso proferido por sua algoz. Tereza revela o
ódio de sua ascensão social, da sua auto-estima, do seu sucesso, revela o
racismo que se manifesta virulentamente diante da ameaça da desestabilização
das hierarquias raciais. A mãe debocha do arrependimento demonstrado pela
madrasta, acusando-a de ter feito um aborto e de ter ascendido em sua carreira
à custa da morte de um inocente. Tereza profere o veredito final – a ré deve
agora tentar ser feliz carregando um segundo crime na consciência. Aos prantos,
Helena declara que a única coisa que a ela restava fazer era pedir perdão de
joelhos. Ela então recebe o seu castigo: uma sonora bofetada desferida por
Tereza que alega estar dando o troco pelo tapa recebido por sua filha.
Não obstante a capacidade de ambas as atrizes de trazer uma alta carga de
intensidade dramática à cena, é impossível não estabelecer comparações com
cenas degradantes de açoitamento de negras e negras, recorrentes nas inúmeras
assim chamadas novelas de época, onde imagens nostálgicas do Brasil colônia são
evocadas. A recorrência dessas cenas gera protestos por parte de ativistas
negros, que veemente denunciam as agressões físicas, psicológicas e morais
sofridas pelos personagens, e suas conseqüências negativas para a auto-estima
da população negra brasileira. Porém as mesmas são deslegitimadas sob a
alegação de que as cenas meramente retratam as práticas de um período histórico
que devem ser compreendidas dentro daquele contexto específico. Além disso,
organizações negras denunciam a falácia perpetuada em retratações do Brasil
colonial que freqüentemente distorcem a imagem de Africana/os e seus
descendentes como mera/os espectadores no processo de sua própria emancipação,
que é atribuída aos esforços de personagens brancos.
Observa-se, porém nesse acerto de contas entre Tereza e Helena, a reiteração de
cenas de açoitamentos e punições do Brasil colonial, transportada para o
contexto do século XXI. Nelas, escravizados africanos e seus descendentes se
encontram ajoelhados aos pés de déspotas brancos implorando por perdão e
misericórdia, sempre sujeitos a castigos severos e humilhações, visto que estão
sob a custódia de homens e mulheres que constantemente recorrem à violência
como forma de coação à subserviência. A cena transporta para o presente a
figura da senhora de engenho, a Sinhá que se sente aviltada pelo envolvimento
de seu ex-marido com uma mulher negra. Segundo essa perspectiva, ela deve ser
punida também por desempenhado suas funções de mucama, ou de mãe preta de zelar
pela enteada branca. Portanto, no contexto do Brasil contemporâneo, onde as
estruturas hierárquicas e relações de poder assemelham-se às vigentes no
passado colonial, a personagem principal da novela tem que ser punida por sua
tentativa de desestabilizar hierarquias: a ordem racial deve ser restabelecida
e os que ousam desafiá-la precisam ser lembrados das conseqüências de tal
ousadia.
Ao analisamos outros estereótipos recorrentes da mídia brasileira, e porque não
dizer na Diáspora Africana, a condenação de Helena diz respeito à sua
incapacidade de exercer o papel de mãe preta, e por tentar inverter relações de
poder e desestabilizar hierarquias raciais. A mãe preta falhou em seu papel de
suportar humilhações, de ser uma ama servil, sendo então acusada de ter um
pavio curto e de não ser tolerante, ao invés disso partindo para o
enfrentamento. Assim sendo, segundo a personagem Tereza, que exerce o papel de
representar e explicitar a posição histórica das elites e da mídia brasileiras,
a incapacidade de Helena em ser subserviente empurra sua filha para a morte. O
ódio e o racismo expressados por Tereza remetem ao grande medo dos prejuízos e
perdas expressado pela elite branca, num contexto histórico onde são discutidas
iniciativas políticas que visam diminuir o fosso socioeconômico e a as
desigualdades raciais que historicamente caracterizam a sociedade brasileira.
Remetem também às furiosas investidas de uma série de intelectuais brasileiros,
que são amplamente veiculadas pela mídia de massa em campanhas que visam
distorcer, descaracterizar e difamar essas políticas e aqueles que as apóiam. O
ajoelhar de Helena reforça narrativas degradantes de subserviência negra,
através da evocação da imagem da autoridade branca e as súplicas dos
inferiorizados ou desempoderados.
Além disso, é altamente relevante o fato de que essa cena aviltante tenha sito
exibida na segunda-feira da semana da Consciência Negra no Brasil, e me recuso
terminantemente a considerar esse fato uma simples coincidência. Obviamente, a
rede Globo e o autor da novela decidiram que havia chegado a hora de
restabelecer a ordem hierárquica vigente em sua programação, e reforçar a
agenda política que rege uma série de reportagens e publicações desse
conglomerado midiático. Confesso, entretanto, que a utilização da primeira
protagonista negra da novela das nove, como plataforma para condenação do
aborto e do direito a escolha, realmente superaram qualquer expectativa ou
previsão negativa que eu pudesse ter em relação aos desdobramentos da novela.
Não tenho a intenção de entrar no mérito da questão sobre a ilegalidade do
aborto nesse artigo, no entanto, é evidente que várias outras protagonistas
anteriores poderiam ter sido utilizadas como veículo para fomentar essa
discussão ou expressar os princípios da moral cristã e a condenação ao direito
de escolha.
Helena foi acusada e condenada por ter conseguido superar a pobreza,
(supostamente) superar o preconceito de cor, de ascender socialmente. Ela, que
já havia abraçado a sua imposta culpa, afirma aos prantos que se pudesse, daria
à Luciana suas pernas e braços para que voltasse a ser perfeita. Esse então é
convite ou a sugestão que nos fazem? Que continuemos a emprestar ou doar nossos
braços e pernas em prol da manutenção do projeto racial desse país? Devemos
entregar também nossos cérebros, e desistir de buscar nossa autonomia
sócio-economica, para que a sociedade brasileira volte a ser “perfeita”?
Devemos ceder às pressões de uma elite branca que investe pesadamente para que
a histórica configuração de desigualdades raciais permaneça inalterada, para o
bem da nação brasileira? Até pouco tempo atrás, nossa mão de obra era descrita
nos livros didáticos como necessária para que esse país fosse construído, e
tentativas de auto-libertação através de fugas e concretizadas através da
formação de quilombos eram implicitamente condenadas como antipatrióticas.
Quilombolas eram descritos como grupos que se negavam a contribuir para o
progresso da nação, ou simplesmente ignoradas pelos nossos livros didáticos.
Porém, estamos intensificando o processo de rever essas narrativas e tornar
outras versões da historia de negras e negros na África e no Brasil visíveis e
acessíveis ao povo brasileiro através do sistema educacional e vários outros
meios, como o que presentemente utilizo para expressar o meu mais profundo
repúdio as constante investidas contra a imagem de negras e negros na mídia de
massa.
A trama da novela explicita o pesado investimento em uma tentativa de
manutenção de desigualdades raciais e de gênero, através da reiteração do mito
da democracia racial, simultaneamente expondo as contradições e a violência
física e simbólica imbuídas nessa ideologia que visa mascarar o racismo e o
preconceito racial que estruturam a sociedade brasileira. Não tão
coincidentemente, essas investidas se energizam dentro de um contexto histórico
no qual organizações negras pautam uma série de medidas jurídicas e
legislativas que visam corrigir as profundas desigualdades raciais no Brasil.
Tais ofensivas criminosas e questionamentos unilaterais amplamente veiculados
sobre a validade ou aplicabilidade de iniciativas que visem fomentar uma maior
equidade entre as condições sociais de negros e brancos no Brasil são
executadas em nome da manutenção de uma pretensa harmonia racial.
Portanto, essa dita harmonia racial é fundamentalmente um oximoro, visto que a
mesma tem sido apregoada no contexto de um país marcado por relações de poder
profundamente desiguais e no qual, histórica e contemporaneamente, a opressão e
a exclusão raciais têm resultado no sofrimento e morte de milhares de negras e
negros. Assim sendo, precisamos estar atentos para o fato de que a violência
simbólica - aqui compreendida como uma série de representações e símbolos
discriminatórios e hostis - exercida através das representações desqualificantes
e os estereótipos de negras e negros na mídia brasileira tem como objetivo a
tentativa de legitimar e perpetuar relações de autoridade, poder e dominação.
Concluindo, reitero que uma análise crítica do legado da produção intelectual
das elites brasileiras aponta para constantes esforços discursivos e midiáticos
que visam mascarar e/ou negar o legado histórico de exclusão racial e de gênero
no Brasil, e o papel fundamental da raça na estruturação da pirâmide social
brasileira. Esse investimento quase que obsessivo na negação do papel da raça
evidencia o que pesquisador negro João Costa Vargas apropriadamente
diagnosticou como uma hiperconsciência de raça na sociedade brasileira. As
evidências que comprovam tal diagnóstico são abundantes, a citar as pesadas
campanhas dos meios de comunicação de massa e de intelectuais conservadores,
que se beneficiam de seu acesso privilegiado aos conglomerados midiáticos,
contra as políticas de ações afirmativas, e medidas que visam legalizar
territórios de comunidades tradicionais ou quilombolas. Afirmo, portanto, que a
confluência da recorrência de estereótipos e representações depreciativas, e
uma agenda política de manutenção da exclusão racial e de gênero, e o
fortalecimento de hierarquias e estruturas de dominação histórica não são meras
coincidências.
*Raquel Luciana de Souza é articulista, tradutora e doutoranda em Antropologia Social
e Diáspora Africana na Universidade do Texas e pesquisadora membro da ABPN -
Associação Brasileira de Pesquisadores Negros
**Por favor envie comentários para editor-pt@pambazuka.org ou comente on-line em http://www.pambazuka.org
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