A partir de meados do século XVII, o Brasil e as demais conquistas lusitanas enfrentaram uma série de revoltas organizadas pelos moradores contra autoridades e religiosos. Os levantes varreram São Paulo, Bahia, Rio de Janeiro, Pernambuco, Maranhão e Pará, mas também a África e as possessões na Ásia. No caso da América portuguesa, as revoltas estavam ligadas aos problemas que surgiam com o próprio avançar da colonização, mas se explicam também pelas transformações globais com as quais sofria o império português – voltado cada vez mais para o Atlântico.
Uma revolta simbólica do período colonial aconteceu nas capitanias do Maranhão e do Pará. Os moradores da região se levantaram contra os religiosos jesuítas, liderados pelo famoso padre Antônio Vieira (1608-1697). A agitação começou em fins de maio ou início de junho de 1661, na cidade de São Luís do Maranhão. Um grupo de moradores se dirigiu ao colégio jesuíta de Nossa Senhora da Luz e expulsou de lá os religiosos. Dias antes, moradores e vereadores haviam se reunido na Câmara e obrigado o reitor do colégio dos jesuítas a assinar um termo no qual os padres aceitavam abandonar o domínio que tinham sobre as aldeias de índios livres. Encurralados pela pressão dos vereadores e pelos representantes do “povo” – na verdade os setores da população que tinham direito à participação política, como proprietários e comerciantes, e também os homens livres brancos – os padres não tiveram alternativa a não ser firmar o documento.
A população de São Luís estava realmente enfurecida com os religiosos. Testemunha ocular dos acontecimentos, o ouvidor Diogo de Sousa e Meneses relata que, por ocasião da ida dos jesuítas à casa da Câmara, os moradores lhes teriam jogado “grande quantidade de pedradas”. Poucos dias depois, a rebelião tomou conta da cidade, apesar das tentativas de acalmar os ânimos lideradas pelo próprio governador, Dom Pedro de Melo.
Em dois meses, a revolta se espalhou para a vizinha capitania do Pará. Inspirada pelas notícias do levante em São Luís, a população de Belém se dirigiu ao colégio jesuíta de Santo Alexandre e deteve o padre Antônio Vieira, superior das missões. Imediatamente enviado a São Luís, Vieira ainda tentaria reverter sua situação no Maranhão, mas não houve jeito: embarcado e mantido à força numa nau, de lá partiu para Lisboa, de onde nunca mais voltaria ao Maranhão e Pará graças à ação de pessoas como Jorge de Sampaio e Carvalho, um dos líderes do levante, que havia sido soldado e almoxarife no Maranhão, e esteve depois implicado em outra expulsão dos padres da cidade de São Luís, em 1684.
Depois de expulsar o padre Vieira e alguns outros religiosos, os moradores de São Luís e Belém passaram a perseguir os demais padres que se encontravam no Estado do Maranhão e Pará – que reunia as duas capitanias e era separado do Estado do Brasil.
Mas, afinal, o que motivou tamanha revolta? A razão mais imediata foi a definição de uma política portuguesa em relação aos índios, em meados do século XVII. Na década de 1650, os padres jesuítas ganharam amplo controle sobre os trabalhadores nativos, com poder de determinar se os escravos indígenas feitos pelos moradores eram legítimos ou não. Também lhes cabia gerenciar o uso de trabalhadores indígenas livres que viviam nos aldeamentos missionários e serviam aos moradores.
A revolta de 1661 estava diretamente ligada ao modo como até então se organizara a conquista portuguesa das capitanias do norte. Diferentemente de outras regiões da América portuguesa, o então Estado do Maranhão e Pará se estabeleceu com base principalmente no uso de trabalhadores indígenas. Os índios eram empregados tanto nas lavouras como na extração dos produtos da floresta (as chamadas “drogas do sertão”). Por muito tempo, a principal força de trabalho na região continuou sendo a mão indígena. Por isso, a centralização do controle sobre as formas de aquisição de trabalhadores e sobre seu uso ainda geraria inúmeros conflitos entre a população e os jesuítas ao longo de todo o período colonial.
Um dos articuladores dessa política foi justamente o padre Antônio Vieira, muito próximo ao rei D. João IV. Graças à influência do jesuíta, durante o reinado deste monarca (1640-1656), definiram-se os principais aspectos da política em relação aos índios do Maranhão e Pará, que passaram a vigorar já no início da década de 1650. Daí o fato de o ódio dos moradores se dirigir principalmente contra Vieira.
O conflito só terminou com a chegada do novo governador, Rui Vaz de Siqueira, em março de 1662. Ele tomou duas decisões assim que assumiu: concedeu perdão geral aos rebeldes e impediu a partida, no Pará, das naus que levavam os padres presos, para que fossem restituídos às suas igrejas. Em 1663, o rei D. Afonso VI confirmou o perdão, mas ordenou que Rui Vaz de Siqueira repreendesse os moradores, ameaçando-os com severas punições.
O episódio mostra como conhecer o contexto local não é suficiente para entender as causas de uma revolta. O império português sofria transformações naquele período: em 1640, Portugal se separara da Coroa espanhola, com a qual estivera unido desde 1580. A chamada Restauração de Portugal significou também um rearranjo de poderes no interior do império. Enfatizava-se a importância de um equilíbrio nas relações entre o rei (que deveria ser justo) e seus súditos (que deveriam ser obedientes); a própria aceitação do novo rei pelos súditos significava que ele deveria também atender ao bem de seus vassalos. Ao se revoltarem, os moradores de Maranhão e Pará procuravam mostrar ao rei e às autoridades por ele nomeadas que eles deveriam ouvir seus súditos e levar em conta seus problemas.
Por outro lado, a década de 1660 foi um período problemático na história da monarquia portuguesa, quando esteve em questão a sucessão de D. João IV. Em 1662, com a subida ao trono de D. Afonso VI, os jesuítas, e principalmente o padre Vieira, caíram em descrédito na Corte portuguesa. Esta nova situação ficou clara com o perdão concedido em 1663 aos revoltosos do Maranhão e Pará, e com a proibição explícita do retorno do padre Vieira àquela colônia.
Finalmente, os moradores que se revoltaram o fizeram porque estavam convencidos de que suas pretensões eram legítimas. Havia uma linguagem e um discurso que explicavam e justificavam o direito de se revoltar. Tanto antes como depois do levante, os moradores das duas capitanias fizeram suas queixas chegar aos padres, às autoridades e ao rei. Deixavam claro que eles e seus ascendentes haviam conquistado e defendido o Estado do Maranhão e Pará para a Coroa de Portugal, como escreveram numa carta, lembrando que “há tantos anos o estão servindo, derramando o seu sangue”. Queixavam-se que o rei e as autoridades nomeadas por ele não os ouviam, tendo, por diversas vezes, “clamado a Vossa Majestade” e visto que “não se deferia a tão duplicados clamores”, como escreveram numa carta ao soberano logo depois de passado o motim. Mais ainda: discordavam das políticas estabelecidas em relação aos índios, pois para eles o domínio que os padres tinham levaria à ruína todos os portugueses e à perda da própria colônia; assim, lembravam num texto os vereadores de Belém que o poder dos padres sobre os índios tinha deixado o Pará “no mais miserável estado”. Deixavam claro, dessa forma, que eles mereciam um lugar na definição dos destinos do lugar em que viviam.
Por mais violentas que sejam, revoltas populares não podem ser consideradas ações irracionais ou meros frutos de desordem. Tais quais as do presente, as manifestações de insatisfação da população no passado recorreram a símbolos, linguagens e estratégias motivados por razões profundas.
Rafael Chambouleyron é professor da Universidade Federal do Pará e autor de Povoamento, ocupação e agricultura na Amazônia colonial (1640-1706), vol. 1 (Açaí/ Centro de Memória da Amazônia/ UFPA, 2010).
Saiba mais - Bibliografia
CAETANO, Antonio Filipe Pereira (org.). Conflitos, revoltas e insurreições na América portuguesa. Maceió: EdUFAL, 2011.
COELHO, Geraldo Mártires. “A pátria do Anticristo: A expulsão dos jesuítas do Maranhão e Grão-Pará e o messianismo milenarista do Padre Vieira”. Luso-Brazilian Review, v. 37, n. 1, 2000.
FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. “O império em apuros. Notas para o estudo das alterações ultramarinas e das práticas políticas no império colonial português. Séculos XVII e XVIII”. In: FURTADO, Júnia Ferreira (org.). Diálogos oceânicos. Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do Império Ultramarino Português. Belo Horizonte: EdUFMG, 2001.
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