quinta-feira, 17 de abril de 2014

Te Contei, não ? - Sincretismo nosso de cada dia

  • Entre os documentos das visitações inquisitoriais enviadas ao Nordeste brasileiro no final do século XVI, vários dão pistas da religiosidade popular da Colônia. Um senhor de escravos, cristão-novo, mandou Cristo à merda ao acompanhar a procissão do Santíssimo Sacramento na Bahia seiscentista. Uma cigana espanhola, em meio a um temporal nas ruas de Salvador, gritou: “bendito sea el carajo de Cristo que mija sobre mí”. Outro gostava de colocar o crucifixo embaixo da cama, para dar sorte, quando transava com a esposa – o que não deu certo, pois a mulher era adúltera. Um senhor de escravos do Recôncavo Baiano resolveu abrigar nas suas terras uma seita indígena meio tupinambá, meio católica, e ainda se ajoelhava diante do ídolo de pedra que os índios cultuavam. O chefão da seita dizia nada menos que era o verdadeiro papa e sua mulher, ou a principal delas, ostentava o título de Santa Maria Mãe de Deus. Falando nisso, e pulando para o século XVIII, Tereza de Jesus, cristã-nova pela metade, pois a mãe era católica, disse que Santa Maria e Santa Esther eram a mesma coisa, assim como Cristo e Moisés eram parecidos. Morava no Rio de Janeiro, morreu queimada em Lisboa.
    Onde estamos? Em alguma Babel religiosa? Não. No Brasil Colônia, onde a única religião admitida era o catolicismo. Mas a Coroa portuguesa fez alguma coisa para assegurar o triunfo do catolicismo no Brasil?
    Ao menos tentou. Além das motivações comerciais, é sabido que um dos principais objetivos da colonização era o de expandir o catolicismo no Novo Mundo. Isto vale também para outras partes do império português, como os enclaves no Oriente ou na África, embora nelas a presença portuguesa tenha sido superficial, feitorial. No Brasil, onde os portugueses ocuparam o território e a Coroa incentivou o povoamento, o esforço evangelizador foi mais saliente.
    Não surpreende, porém, o abismo entre o catolicismo colonial e o projeto da Igreja de Roma. Menos surpreendente ainda é que tenham grassado no Brasil variadas formas de sincretismo religioso, mistura entre o catolicismo e crenças nativas e africanas, para não falar das judaicas, trazidas pelos cristãos-novos que fugiam da Inquisição, quando não vinham degredados por judaizar. Mesmo assim, o Santo Ofício prendeu muitos e queimou alguns por heresia.
    Em todo caso, quando falamos de religiosidade popular na Colônia, não convém adotar uma sociologia rígida. O popular, no caso, diz mais respeito à religiosidade cotidiana do que à posição social do indivíduo. Se o sincretismo religioso prevaleceu desde o início, ele foi compartilhado, em vários graus, por senhores e escravos, portugueses e naturais da Colônia, brancos, negros, índios, mulatos, pardos, cafuzos, enfim, por toda a sociedade luso-brasileira.
    Além disso, vale pôr em xeque dois estereótipos consagrados no senso comum. O primeiro é a ideia de que o nosso sincretismo religioso se limitou à mistura do catolicismo com as religiões africanas. O segundo é a ideia de que o catolicismo fracassou no Brasil, aviltado pela mistura de religiões.
    Sincretismo religioso colonial: o que foi isto?  Um mix cultural de várias faces e múltiplas combinações. Começou pela mistura do catolicismo com a mitologia tupinambá, do que dá mostra a Santidade baiana de Jaguaripe. Nela pontificava, sem trocadilho, o papa Antônio, índio educado pelos jesuítas, mas com vocação de pajé. Homem que também dizia, em transe, que encarnava o ancestral-mor dos tupis, Tamandaré, enquanto fumava o petim (tabaco) em um cachimbo comprido. O próprio ídolo da seita tinha um nome que, apesar da língua, era cristão: Tupanasu, grande deus, invenção jesuítica para nomear o deus cristão em língua inteligível para os índios. O sincretismo fez sua estreia sob a batuta dos jesuítas.
    Sincretismo afro-brasileiro: nomeá-lo assim é dizer pouco. Isto porque o catolicismo, antes de ser brasileiro, era português. Segundo, o catolicismo dos portugueses não era exatamente o da Roma dos papas. Os portugueses do Brasil eram mais dados à aventura do que à religião. Terceiro, porque nunca houve uma África, senão várias. África bantu, África iorubá, para dizer o mínimo.
    Na prática, as misturas foram extraordinárias. Um dos primeiros a enxergar o sincretismo afro-brasileiro foi Nina Rodrigues, médico de profissão, etnólogo por vocação. Sugeriu, no início do século XX, que os africanos cultuavam seus deuses tradicionais misturados aos santos católicos. Ingenuidade. O etnólogo e filho de santo Roger Bastide, francês, foi além e considerou tais cultos originais. Interpretou a “religiosidade negra” como resistência à escravidão ancorada em sobrevivências religiosas africanas. Ingenuidade também.
    O sincretismo afro-brasileiro nem foi resistência, nem fingimento acomodativo. Também não foi só afro-brasileiro, pois viscejou em Portugal. Na Colônia, foi invenção construída por africanos, de várias origens, para lidar com o sobrenatural em uma situação de diáspora. Situação colonial. Em alguns casos, chegou-se a esboçar um protocandomblé, nas palavras de Luiz Mott, referindo-se ao terreiro dirigido pela negra Josefa Maria, perto de Paracatu, Minas Gerais, no século XVIII. Na escuridão da noite, escravos e forros se reuniam para bailar a Dança da Tunda, Acontudá, ritual da nação courana, originária do Daomé. No Rio de Janeiro também havia um calundu dirigido por uma parda forra, Veríssima, onde todos dançavam ao som dos batuques. Quais orixás baixavam nesses terreiros? Não faço a menor ideia. Os inquisidores, menos ainda.
    A própria palavra calundu, de origem bantu, consagrada no século XVII para designar os cultos da senzala, foi invenção colonial para generalizar a religiosidade negra. Gregório de Mattos, o Boca do Inferno, escreveu sem rodeios: “o que digo é que, nestas danças, Satã tem parte nelas”.
    Falar em sincretismo afro-brasileiro, portanto, é dizer pouco. Como interpretar as “bolsas de mandinga”, cobiçadas por protegerem seus portadores de todos os males, além de facilitar amores, fechar o corpo e ganhar no jogo? Pois bem, as bolsas tiveram origem no norte africano, entre os mandingas, povo islamizado. Eram uns saquinhos, como sachês, que continham um verso do Alcorão escrito em um pedaço de papel. A coisa se espalhou pela África, pelo Brasil e Portugal e foi aumentando de tamanho. Passou a incluir ossinhos de mortos, pedaços de pedra d’ara (altar cristão), cabelos, unhas... O sachê original virou um bolsão de algodão cru repleto de elementos religiosos, vivos ou mortos. Impossível conceituar este mélange, senão como resultado de um intercurso cultural de diversos continentes.
    O catolicismo fracassou? Só se adotarmos o modelo do Concílio de Trento. Não é o caso dos historiadores. De sorte que, na verdade, o catolicismo irrigou toda a religiosidade colonial. Esteve presente em algumas rezas do Acotundá mineiro, na Santidade indígena da Bahia, no terreiro carioca da forra Veríssima, nas bolsas de mandinga, nos calundus e catimbós, nas invenções de cristãos-novos que misturavam Cristo e Moisés.
    Uma evidência indiscutível é a crença de que as palavras eucarísticas tinham poder de atração sexual ou, ao menos, de amansar maridos hostis. Hoc est enim corpus meum – “este é o meu corpo”. Na Bíblia, consta que Jesus assim consagrou o pão na última ceia, e nisto reside o mistério da transubstanciação. É o corpo de Cristo que está na hóstia consagrada? Ou é um símbolo, uma metáfora? O povo entendia este mistério de modo direto: se o corpo de Cristo entrava na hóstia por meio daquelas palavras, o corpo do amado passava a ser de quem proferisse a mesma frase. Mas havia um detalhe: era preciso dizê-las em latim e no ato da cópula. Entre gemidos e gozos.
    Outra evidência final: Madre Vitória da Encarnação, freira do convento baiano de Santa Clara do desterro. Era tremendamente religiosa. Punha cinza na comida para estragar o paladar. Carregava nas costas uma cruz pesada pelos corredores do convento. Usava cilícios para flagelar o corpo. Esbofeteava-se. Um exemplo do catolicismo colonial: sensível, barroco. Madre Vitória também dizia ter visões. Dizia que visitava, à noite, as almas do Purgatório. Contava ainda que, algumas vezes, viu o Diabo, que lhe aparecia na forma de um “molequinho negro”. Catolicismo barroco, catolicismo escravista. O arcebispo da Bahia instruiu processo para transformá-la em santa, ao menos beata. Não prosperou a ação do arcebispo. O Brasil nunca teve santos. Nem santas.
    Ronaldo Vainfasé professor da Universidade Federal Fluminense e autor de A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil Colonial (Companhia das Letras, 2010).

    Diferenças ibéricas
    Comparado à colonização espanhola, o apoio da Coroa à evangelização foi pífio. Basta dizer que, até meados do século XVI, só havia um bispado no Brasil, o da Bahia, criado em 1551, enquanto a vizinha América Espanhola possuía dezenas. Qualquer indicador reforçaria esta constatação. No mundo hispano-americano: presença expressiva de várias ordens religiosas, universidades que formavam teólogos, tribunais do Santo Ofício, organização da Igreja conforme o Concílio de Trento (1545-1563), bastião da Contra-Reforma. No Brasil, apesar do esforço missionário dos jesuítas, os limites da pastoral católica eram fortes. Além dos jesuítas, alguma ação dos franciscanos, sobretudo na Amazônia; os beneditinos abrigaram  filhos da elite colonial; padres franceses missionaram nos sertões, patrocinados pela Propaganda Fide. As irmandades leigas – vá lá – tiveram algum papel na rotina dos colonos – e até dos escravos – sobretudo em Minas, onde a Coroa proibiu as ordens religiosas, sabedora de que o ouro e os diamantes também despertavam cobiça nos homens de Deus.

    SAIBA MAIS

    CALAINHO, Daniela. Metrópole das mandingas: religiosidade negra e Inquisição no Antigo Regime. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.
    MELLO e SOUZA, Laura de. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
    MOTT, Luiz. “Cotidiano e vida religiosa: entre a capela e o calundu”. In: MELLO  e SOUZA, Laura de & NOVAIS, Fernando A. (orgs.). História da vida privada no Brasil. Vol. 1. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 155-220.

Nenhum comentário:

Postar um comentário