Em 1979, um cantor circulava pelos corredores de Brasília
causando alvoroço entre as secretárias. Roberto Carlos, aos 38 anos, cabelos
cacheados, fazia visitas pontuais a autoridades do governo. Seus passeios pelo
Planalto tinham um propósito: conseguir a concessão para uma emissora de rádio.
“Ouvi gritos no corredor e, de repente, entrou o Roberto Carlos em meu gabinete.
Tomei um susto. Ele tinha vindo fazer uma visita de cortesia. Isso não era
necessário, porque as concessões eram dadas pessoalmente pelo ministro ou pelo
presidente. Eu cuidava apenas da documentação burocrática”, diz Rômulo Furtado,
na época secretário-geral do Ministério das Comunicações. O ministro era o
capitão da Marinha Quandt de Oliveira. O presidente era o general Ernesto
Geisel.
Roberto Carlos andava em companhia do
radialista Cayon Gadia, seu sócio na empreitada. O governo distribuía concessões
de rádio e restavam poucas faixas na frequência FM. Entre as grandes capitais
brasileiras, havia um espaço atraente em Belo Horizonte. Na época, a
distribuição das emissoras não obedecia necessariamente a critérios técnicos. “O
nome de Roberto Carlos e o prestígio dele já eram credenciais suficientes para
garantir a concessão”, diz Rômulo. O trabalho de lobby só deu resultado mais de
um ano depois. No princípio do governo de João Baptista Figueiredo, Roberto
Carlos conseguiu autorização para montar a Rádio Terra, que manteve durante 15
anos em Belo Horizonte – sem que o público nem mesmo os empresários do setor
soubessem de sua participação.
Essa passagem desconhecida da biografia de Roberto Carlos foi o ponto
culminante de suas boas relações com o poder ao longo de duas décadas de
ditadura no país. Nos anos de chumbo, ele foi condecorado com a Medalha do
Pacificador, ocupou cargos em conselhos do governo, livrou-se da censura com a
ajuda do ministro da Justiça e foi contratado pelo Exército para atuar em
inúmeros shows em homenagem à Revolução. Embora sempre tenha levado uma carreira
de empresário paralela à de músico – na época da ditadura, ele tinha boate,
postos de gasolina e uma locadora de automóveis –, a rádio foi um negócio
bastante vantajoso, já que não teve de pagar nem um centavo pela concessão.
Seu sócio na emissora, Cayon Gadia,
morreu em 2007. A mulher dele, Regina Blanco Ferreira, de 72 anos, relembra o
caso. “Eles iam a Brasília falar com o presidente Figueiredo e com o Golbery
(do Couto e Silva). Cayon ficou impressionado de ver o prestígio de Roberto
”, diz. Roberto Carlos nega. Em resposta a ÉPOCA por e-mail, ele informa que
apenas aceitou o convite recebido pelo sócio e que não se lembra da ajuda de
nenhum político ou militar para conseguir a concessão. “Que eu saiba não. Quem
tratou de tudo foi o próprio Cayon Gadia”, diz.
Roberto Carlos já era funcionário do Ministério da Educação e Cultura quando
os militares tomaram o poder, em 1964. Tinha 23 anos e trabalhava como
assistente de relações-públicas na rádio MEC, no Rio de Janeiro. “Ele fazia
serviços diversos. Pegava endereços que eu precisava ou ligava quando eu tinha
de falar com alguém. Logo pedia para ir embora, porque precisava fazer seus
shows”, diz a jornalista Noemi Flores, sua chefe na época, hoje com 92 anos.
Depois que mudou de função, Noemi diz que nunca mais viu Roberto Carlos por lá.
O nome dele continuou constando como funcionário até que sua exoneração fosse
publicada, em 1970.
Em maio de 1967, Roberto Carlos
já era uma espécie de unanimidade nacional, quando foi recebido para uma
audiência a portas fechadas com o ministro da Justiça, Luiz Antônio da Gama e
Silva. Ele era um revolucionário ardoroso, redator e locutor do AI-5, medida
mais dura do regime. Precisamente em 1968, ano do AI-5, o cantor lançou seu
primeiro filme, Roberto Carlos em ritmo de aventura. O longa-metragem
de ação não trazia nenhuma referência crítica ao regime, mas seu trailer foi
barrado pela Censura, por questões burocráticas. Os produtores não conseguiram
enviar a tempo uma cópia integral do filme, pré-requisito para que o trailer
fosse liberado. Diante do impasse, o ministro Gama e Silva enviou um telegrama
urgente à Divisão de Censura da Polícia Federal, que atuava sob seu comando. Ele
pedia ao chefe da Censura para “abrir uma exceção” e liberar o trailer sem
assistir ao filme. “Se trata de uma história cujo protagonista é o mais admirado
e popular artista brasileiro”, afirmou o ministro. O trailer foi liberado no dia
seguinte.
Em 1971, Roberto Carlos mandou um
telegrama de condolências ao ministro da Aeronáutica, marechal Márcio Melo,
lamentando a morte de três militares num acidente, durante um show da
Esquadrilha da Fumaça. Nesse mesmo ano, um comunicado do Serviço Nacional de
Informações (SNI) criticava a imprensa por “atingir a honra” de diversos
artistas por meio de “noticiário difamatório”. “A incidência deste desgaste
recai seguidamente sobre determinados artistas que se uniram à Revolução de 1964
no combate à subversão e outros que estão sempre dispostos a uma efetiva
cooperação com o Governo”, diz o informe. Entre os artistas, aparece o nome de
Roberto Carlos e de seu empresário na época, Marcos Lázaro.
Roberto Carlos realizou shows durante as Olimpíadas do
Exército, em 1971 e 1972, na Presidência do general Emílio Garrastazu Médici. Os
jogos serviam para aproximar os militares da população, enquanto o regime
iniciava ações duras contra opositores. O ano de 1972 marca a desarticulação da
Guerrilha do Araguaia, que deixou 62 mortos na região amazônica. Foi também o
ano em que Roberto Carlos ganhou sua primeira nomeação no governo, para
participar da Comissão Nacional Anti-Tóxico, do Ministério da Educação e
Cultura. O objetivo da comissão era elaborar projetos para o combate às drogas.
A escolha dos integrantes foi feita pelo então coronel Jarbas Passarinho,
ministro da Educação na época. Com 31 anos, Roberto Carlos era o integrante mais
jovem. “Nos reuníamos periodicamente em Brasília, para que cada conselheiro
apresentasse sua proposta. Não vi o Roberto Carlos em nenhuma reunião”, diz
Lygia Maria Bastos, hoje com 94 anos, então deputada estadual pela Arena, o
partido do governo.
Em 1973, Roberto Carlos foi agraciado com a Medalha
do Pacificador, honraria concedida a militares ou civis que de alguma forma
contribuíam com o Exército. Mais tarde, a medalha ficou famosa por homenagear os
torturadores do regime. Ele a recebeu em São Paulo, das mãos do general
linha-dura Humberto de Souza Mello. Segundo a justificativa publicada no Boletim
do Exército, a medalha foi concedida “pela inestimável colaboração prestada ao
Exército”, em especial durante a realização de sua IV Olimpíada. Os jogos
aconteceram no Recife naquele ano, e Roberto Carlos foi a grande atração do show
de encerramento. Depois de receber a medalha, ele se apresentou durante a
exposição O Brasil de hoje, que enumerava as realizações do governo ao
longo de nove anos de ditadura. O músico Martinho da Vila também participou do
evento.
Dois anos depois, o jornalista Vladimir Herzog foi torturado até
a morte nas instalações do Exército em São Paulo. Sua morte desencadeou uma onda
de insatisfação na classe média. Também em 1975, no mês de março, Roberto Carlos
apareceu cantando num programa de televisão comemorativo ao 11º aniversário do
golpe militar, transmitido em cadeia nacional. O programa contou com
pronunciamento de vários políticos ligados à Arena. Também participaram do
programa os músicos Jair Rodrigues e Eliseth Cardoso.
Em 1976, Roberto Carlos recebeu a Ordem do Rio Branco, reconhecimento do
governo brasileiro pelos serviços prestados à nação. Quem entregou a medalha foi
o presidente Ernesto Geisel. Naquele mesmo ano, ganhou seu segundo cargo no
governo, desta vez no Conselho Nacional de Direito Autoral, que dava a palavra
final em disputas relativas a direitos autorais no país. Os conselheiros
participavam de reuniões quinzenais em Brasília. Recebiam passagem aérea,
hospedagem e um jeton por reunião. Roberto Carlos ficou três anos na função.
“Ele não ia a todas as reuniões, mas era um conselheiro frequente. Não abria a
boca. Enquanto os outros conselheiros discutiam, ele apenas se sentava na
cadeira. No final ia embora, sem falar praticamente nada”, diz Divaina Borges,
então secretária do conselho. Um dos projetos apresentados por Roberto Carlos
sugeria a criação de uma entidade que representasse os compositores de jingles
publicitários. Os pareceres assinados por ele não foram preservados pelo
ministério. “Ele olhava as questões com olhos de grande arrecadador que era, já
que recebia direitos autorais como compositor, intérprete e editor”, diz o
jurista Carlos Fernando Mathias de Souza, então presidente do
conselho.
Roberto Carlos continuava na função quando criou a sociedade
Rádio Terra Ltda., em fevereiro de 1979. Segundo o contrato de fundação, as
transmissões teriam propósito educativo, cultural e informativo, mas também
“cívico e patriótico”. O documento diz que a empresa poderia abrir sucursais ou
filiais em todo o país. “Nos corredores do ministério, sabia-se que o desejo
deles era criar uma rede de emissoras de rádio em algumas capitais brasileiras”,
diz Rômulo Furtado, ex-secretário-geral do ministério. A concessão foi publicada
no Diário Oficial em agosto de 1980. Os dois sócios conseguiram apenas
uma emissora e levaram quatro anos para colocá-la no ar. Antes disso, Cayon
Gadia saiu do negócio. “Ele não gostava de falar muito do assunto. Dizia apenas
que pessoas próximas ao Roberto Carlos ficaram com ciúme da sociedade”, diz sua
viúva, Regina Blanco. Sua parte foi vendida para José Carlos Romeu, radialista
que apresentava shows de Roberto Carlos, e Sérgio Orensztejn, sócio de Roberto
Carlos em uma locadora de automóveis.
Roberto Carlos foi à missa de
inauguração e praticamente não voltou à rádio, que também não tocava músicas
suas. “Ele queria deixar claro que era um negócio do empresário, não do
artista”, diz Marco Aurélio Jarjour, que entrou na sociedade e hoje é o dono da
emissora. Roberto Carlos vendeu sua parte em 1994. “Não houve motivo especial.
Marco Aurélio se interessou em comprar minha parte, e aceitei a proposta”,
disse Roberto Carlos por e-mail.
Roberto Carlos nunca fez músicas
exaltando o regime, como a dupla Dom e Ravel. Ao longo da ditadura, manteve uma
postura apolítica. Para o governo, era uma posição conveniente. “O perfil do
Roberto Carlos era avaliado como positivo pelo regime. Se os militares
conseguissem colar sua imagem à de um grande ídolo popular como ele, que ainda
por cima não criticava a ditadura, seria interessante para eles. Mas isso não
chega a constituir um apoio ou conivência. Houve ingenuidade política”, diz o
historiador Carlos Fico. Uma concessão como a Rádio Terra, nos dias de hoje,
vale em torno de R$ 2 milhões, segundo a Associação Brasileira de Emissoras de
Rádio e Televisão.
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