sexta-feira, 18 de abril de 2014

Te Contei, não ? - Trovas sagradas de um rei musical

  • Todo o repertório de música medieval que chegou aos nossos dias foi registrado em um sistema de notação desenvolvido por Guido D’Arezzo, um monge do século XI. Seu objetivo era que os cantores pudessem ler a música assim como liam um texto. Para isso, criou uma pauta com quatro linhas (depois seriam cinco) onde as notas musicais eram colocadas de tal maneira que não deixavam dúvidas quanto à sua altura. O sistema mostrou-se tão eficiente que vigora até hoje.
    Graças ao advento da escrita musical, podemos conhecer obras como as Cantigas de Santa Maria. Registradas no século XIII, portanto há cerca de 800 anos, elas são um testemunho da criação artística e do momento político vivido pela Europa da época.
    A busca por uma representação dos sons musicais está em sintonia com a velha necessidade humana de comunicar seus pensamentos, de deixar suas marcas. Para os reis, essa era uma necessidade ainda maior, pois dela dependia a manutenção do seu poder político. Ao longo da Idade Média, quando em muitos reinos ocorreu a centralização do poder na figura do rei, cresceu sua preocupação em legitimar-se perante a nobreza e a Igreja. As artes e as ciências eram aliadas da realeza nesse processo.
    Afonso X de Leão e Castela (1221-1258), que recebeu a alcunha de Rei Sábio, mantinha em sua corte uma escola de tradutores formada por estudiosos das três principais religiões da Europa (cristianismo, judaísmo e islamismo). Eles traduziram para as línguas ocidentais a Bíblia e textos de cientistas islâmicos da Antiguidade clássica. O rei ainda foi responsável pela instalação de um observatório astronômico em Toledo, e congregou em sua corte vários cientistas, fornecendo meios de estudo e investigação para a elaboração do El libro del saber de Astronomia, baseado no sistema ptolomaico, no qual a Terra estaria no centro do universo, sendo considerada imóvel. À sua volta girariam o Sol, a Lua e os planetas. Este sistema esteve vigente até o século XVI. Baseando-se em cálculos de cientistas árabes, criou tabelas que mostram as posições astronômicas dos planetas, as Tabelas Afonsinas.
    Afonso X era mais que um promotor das artes. Também se aventurava como músico e trovador. Participou da criação de 44 cantigas de amor e de amigo, além das 426 cantigas de Santa Maria. Não se sabe quantas poesias e músicas compôs pessoalmente, pois mantinha em sua corte uma equipe de artistas que certamente o ajudou nessa empreitada. O fato é que o rei considerava muito importante o livro das cantigas de Santa Maria, revestindo-o de um caráter sagrado, como uma relíquia capaz de produzir milagres. Em certa ocasião, quando estava doente, mandou que trouxessem o livro para que fosse colocado sobre seu corpo, de modo a obter a cura.
    As Cantigas de Santa Maria provinham de um movimento artístico-cultural surgido no século XII na região da Occitânia, atual Provença, no sul da França, e que se espalharia por toda a Europa durante o período medieval: o movimento trovadoresco. Sua principal característica é a preferência pela escrita nas línguas vernáculas, ou seja, originárias do latim e desenvolvidas durante a Idade Média – como as que deram origem ao português, ao castelhano, ao francês e ao italiano. O primeiro trovador que se conhece foi Guilherme IX, conde de Poitiers e duque de Aquitânia (1071-1127).
    Tanto a música quanto a poesia trovadorescas faziam parte de um jogo que se desenvolveu nas cortes ao sul do rio Loire. Conhecido como o jogo do “amor cortês” (fin amour), centrava-se numa narrativa em que o amante cobiça a esposa de seu senhor, transferindo para ela a devoção, as atitudes e o serviço de um vassalo. Tais maneiras corteses originadas na França se espalharam por toda a Europa, fazendo surgir canções em honra de poderosas damas da sociedade feudal.
    Nas Cantigas de Santa Maria, o objeto de culto do trovador não é mais a figura da dama da corte, e sim a Virgem Maria. A imagem da Virgem ganhou um lugar de destaque cada vez maior no culto cristão, refletindo a crescente necessidade de conceder espaço ao elemento feminino. O culto a Maria se amplia ainda mais a partir do século XII, com a produção de várias coletâneas de milagres marianos. Para compor suas cantigas de Santa Maria, Afonso X utilizou fontes comuns a outras compilações da época, como as de Gautier de Coincy e Gonzalo de Berceo. Mas o trabalho do rei se destaca pela dimensão e pela riqueza de seus manuscritos, dos quais sobreviveram quatro, sendo dois repletos de iluminuras, o Códice Rico e o Códice de Florença (incompleto), que trazem todas as poesias ilustradas, compondo narrativas em quadros. Um dos manuscritos, conhecido como Códice Príncipe ou Manuscrito dos músicos, traz, antes de cada canção, iluminuras de músicos tocando uma série de instrumentos do período. Este manuscrito preservou as melodias de todas as 426 cantigas.
    A obra divide-se em dois tipos. As cantigas de louvortêm caráter sacro, são poesias líricas e amorosas que exaltam as virtudes e a beleza da Virgem Maria. Já as cantigas de milagressão poesias narrativas de caráter didático.O milagre é uma narrativa curta em que ocorre a intervenção de um santo (no caso, a Virgem Maria) provocando um acontecimento maravilhoso em favor de alguém. A cada dez cantigas de milagres – como era X o número do rei Afonso – segue-se uma cantiga de louvor.
    Assim como todo o repertório monódico (canções escritas a uma só voz) do século XIII, a leitura musical dessas cantigas é simples do ponto de vista da melodia. Não se pode dizer o mesmo, no entanto, em relação ao aspecto rítmico: são muitas as incertezas na interpretação, o que faz com que alguns musicólogos deixem de lado este rico repertório por considerá-lo ilegível.
    As músicas das Cantigas foram editadas em sua totalidade pelo musicólogo catalão Higino Anglés entre os anos 1943 e 1964. Para sua edição, Anglés toma por base as melodias anotadas no Códice Príncipe, ao qual acrescenta as variantes que aparecem no Códice Rico. As transcrições de Anglés pretendem representar não apenas as melodias, mas também o ritmo, o que ele fez segundo diversos critérios, entre eles a utilização de elementos rítmicos encontrados na música folclórica e popular tradicional. O trabalho é alvo de críticas de musicólogos, que o acusam de desviar-se das “regras medievais de notação mensural” – contidas em tratados que definiam a duração dos sons musicais, ou seja, o ritmo. O musicólogo português Manuel Pedro Ferreira observa, porém, que não existem regras de notação mensural que possam ser aplicadas de forma generalizada no século XIII, uma vez que “havia uma série de sistemas de notação mensural distintos, que por vezes se defrontavam, cada um no seu lugar, tempo, influência e campo de aplicação”. Mesmo apresentando problemas, a transcrição de Higino Anglés constitui o esforço maior que já foi feito no sentido de trazer as Cantigas de Santa Maria para o conhecimento de um grande público.
    A grandeza e a riqueza da obra das Cantigas de Santa Maria reflete a força do movimento mariano nas sociedades ibéricas da Idade Média. Algumas de suas histórias ficaram tão marcadas na memória popular que sobreviveram por muito tempo, podendo ser encontradas até mesmo no Brasil, adaptadas em contos populares e na literatura de cordel. Um cordel muito famoso no Brasil, intitulado “História da Imperatriz Porcina”, por exemplo, é baseado na quinta Cantiga de Santa Maria de Afonso X.
    As melodias preservadas fazem dessa coletânea uma das principais fontes para o conhecimento da música medieval ibérica. As iluminuras nos mostram também outras características típicas daquela sociedade, tais como as vestimentas usadas por homens e mulheres, judeus, árabes e cristãos, ou mesmo o tipo de construção utilizado nos casarios, por exemplo. As narrativas de milagres descortinam as mentalidades, ou seja, valores, crenças e superstições da população e até da nobreza, ou seja, as Cantigas de Santa Maria constituem um material riquíssimo de estudos da sociedade ibérica do século XIII.
    Lenora Pinto Mendesé autora da tese “A música no teatro de Gil Vicente: a função do espetáculo no projeto político da Dinastia de Avis (1465-1536)”, (UFF, 2005).

    Santo remédio

    Em algumas cantigas, Afonso X fala na primeira pessoa e apresenta acontecimentos de sua vida. Depois de ser “curado” pelo livro das Cantigas de Santa Maria, escreveu mais um texto. Dessa vez, sobre a graça recebida. Abaixo, um trecho: 
    Muito faz grand’erro, e em torto jaz,
    a Deus quen lle nega o bem que lle faz.

    (...)Poren  vos direi o que passou per mi,
    jazend’ em Bitoira enfermo assi
    que todos cuidavam que morress’ ali
    e non atendian de mi bom solaz.

    Muito faz grand’erro, e em torto jaz,...

    Ca hua door me fillou atal
    que eu bem cuidava que era mortal,
    e braadava: “Santa Maria, Val,
    e por ta virtud’ aqueste mal desfaz.”

    Muito faz grand’erro, e em torto jaz,...

    E os físicos mandavan-me põer
    panos caentes, mas nono quix fazer,
    mas mandei o Livro  dela aduzer;
    e poseran-mio, e logo jouv’ en paz,

    Muito faz grand’erro, e em torto jaz,...

    Que non braadei senti nulla ren
    da door, mas\senti-me logo mui bem;
    e dei ende graças poren,
    ca tenno bem que de meu mal lle despraz.

    Muito faz grand’erro, e em torto jaz,(...)

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