"Divergente" é mais um filme de ação baseado numa saga juvenil, gênero que conquistou o mundo – e começa a entrar em decadência
LUÍS ANTÔNIO GIRON, COM NINA FINCO
Em 2010, Veronica Roth tinha 21 anos e cursava o último ano
da faculdade de letras na Northwestern University, de Chicago, quando assinou um
contrato milionário com a editora HarperCollins, para publicar e adaptar para o
cinema um romance que ela ainda escrevia. “Foi chocante”, afirma Veronica. “Eu
disse: ‘Vocês querem fazer isso com este livro?’. Mas vocês não sabem nem mesmo
como ele vai terminar!” Nem precisava. O que Veronica produzira durante um curso
de escrita criativa bastava para o agente literário encaminhar com confiança os
originais – e obter a resposta imediata de um mercado sedento por produtos
daquele tipo, que logo ganhariam um nicho de sucesso garantido, a literatura adulta
jovem (Young Adult, ou YA), destinada ao público de faixa etária entre 15 e 25
anos. Tratava-se do primeiro volume inacabado de uma trilogia que tinha tudo
para se tornar um megassucesso literário e cinematográfico: uma história
ambientada no futuro sobre uma jovem, Beatrice “Tris” Prior, que se rebela
contra uma sociedade controladora e hiperorganizada.
O primeiro romance, Divergente, forneceu o título à saga adolescente
futurista e agourenta. Ele chegou às livrarias americanas em abril de 2011, com
direito a uma enorme campanha promocional. Na semana de lançamento, o livro
atingiu o sexto lugar da lista de livros mais vendidos do jornal The New
York Times e se manteve nas primeiras posições por seis meses. Era o auge
do sucesso de outras “sagas adultas jovens”, como Crepúsculo
(2006-2008), de Stephenie Meyer, e Jogos vorazes (2008), de
Suzanne Collins. Veronica foi então comparada às duas autoras que vendiam
milhões de exemplares com seus romances seriados – e no caso de Stephenie atraía
milhões de fãs ao cinema, com a adaptação da saga Crepúsculo, que
estreara três anos antes, em 2008. Jogos vorazes chegou aos cinemas em
2012. Ambos foram sucessos de bilheteria.
Veronica seguiu as pegadas das colegas mais velhas. O segundo e o terceiro
volumes de Divergente – Insurgente e Convergente –
viraram best-sellers nos Estados Unidos em 2012 e 2013, respectivamente. Boa parte do
sucesso se deveu, segundo Veronica, às redes
sociais e a centenas de blogs dedicados à saga espalhados pelo mundo – até
no Brasil. A trilogia vendeu 10 milhões de exemplares nos Estados Unidos e foi
lançada em 15 países. Os dois primeiros volumes atingiram 100 mil exemplares
vendidos no Brasil. Agora, a saga estreia nos cinemas americanos, ao mesmo tempo
que o último volume, Convergente (editora Rocco, 528 páginas, R$ 39,50,
tradução de Lucas Petersen), sai em versão brasileira, com tiragem de 30 mil
exemplares. O longa-metragem Divergente, dirigido por Neil Burger (de O
ilusionista) e estrelado por Shailene Woodley (como Tris), está programado
para entrar em cartaz no Brasil em 17 de abril.
O êxito da trilogia transformou Veronica em celebridade aos 25 anos. Ela
nasceu em Nova York, cresceu em Hong Kong e na Alemanha e hoje mora em Chicago
com o marido, o fotógrafo Nelson Fitch. Já não consegue andar pelas ruas. Sua
presença é sempre notada, até porque é bonita e imponente com seu 1,82 metro de
altura. Ela é a maior divulgadora da própria obra, pois mantém atualizados um
blog, um Twitter
e fan pages no Facebook. Ela prepara para julho um volume em e-book de
contos em torno de Divergente, sob o ponto de vista do personagem
Quatro, namorado de Tris. “No começo, achei difícil entregar minha obra para
adaptação”, diz. “A partir do segundo volume, ela deixa de ser sua. Pertence ao
leitor.”
O leitor se apossou facilmente do fenômeno. Para o estudante Claudio Silva do
Carmo, de 16 anos, um dos responsáveis pelo blog e fã-clube Sagas Brasil, que
abriga todos os tipos de séries de livros e filmes para jovens, o sucesso de
Divergente se deve à base sólida dos fãs de fantasia, que começaram a
gostar do gênero por causa da série Harry Potter, de J.K. Rowling.
“Nosso objetivo é fugir do mundo real e nos transformarmos em mil mundos”, diz.
“De bruxos, distópico ou qualquer outro onde possamos viver aventuras ou até
mesmo nos emocionar.”
Divergente observa o modelo de estrelato iniciado com a série
Harry Potter: a combinação de histórias seriadas, lançadas em vários
volumes para alimentar a expectativa do público e, em seguida, repetir o ciclo
no cinema, com direito a uma extensão e à participação das autoras como
consultoras do filme. No caso de Harry Potter, os sete romances viraram
oito filmes. Os leitores acostumados a acompanhar Potter logo abraçaram as sagas
jovens. A tetralogia Crepúsculo foi filmada em cinco longas-metragens.
A trilogia Jogos vorazes chegará a quatro partes no final de 2015. O
mesmo deverá ocorrer com Divergente, embora Veronica não confirme:
“Mesmo que estejam fazendo esse tipo de plano, fico na posição de espera para
ver no que vai dar”.
Quanto ao conteúdo, as sagas jovens também são regidas pela repetição e
saturação (leia no quadro abaixo). Segundo João Luis Ceccantini,
especialista em literatura infantil e juvenil da Universidade Estadual Paulista
(Unesp), as sagas começam bem para cair na monotonia. “O primeiro livro é mais
interessante, depois os outros ficam repetitivos”, afirma. “O autor tem uma boa
ideia, mas a indústria cultural quer estender o material ao máximo. Ao
transformar a literatura numa fórmula, a qualidade acaba diluída.” Para
Ceccantini, acontecem repetições flagrantes de saga para saga. “Todas as
histórias têm narrativas lineares, seguem uma linguagem muito direta e fazem uso
do personagem adolescente arquetípico – com tom heroico, mas também
características transgressoras.”
Esse tipo de trama busca envolver os adolescentes em desafios e dilemas
típicos da idade: escolhas profissionais, iniciação sexual, atitudes a assumir
diante da família e da vida nova na idade adulta. É diferente do romance juvenil
às antigas, ingênuo e voltado para aventuras e lições rudimentares de moral. As
sagas jovens abordam questões políticas e existenciais. É o caso de Tris Prior,
de Divergente. Aos 16 anos, ela descobre num teste vocacional que não
se enquadra em nenhuma das cinco facções em que a sociedade totalitária em que
vive se divide: Abnegação, Amizade, Audácia, Erudição ou Franqueza. A divisão
resultou de uma decisão governamental de eliminar a luta de classes. A única
luta possível é das virtudes. Tris, como qualquer adolescente atual, se vê
jogada ao mundo, tem de tomar decisões que marcarão sua vida, mesmo sem estar
equipada para o desafio. Exatamente como Katniss Everdeen, de Jogos
vorazes. A semelhança não passa de uma coincidência, segundo Veronica, já
que ela diz que pensou em sua história sem considerar a de Suzanne Collins. “Se
querem comparar com Jogos vorazes, tanto melhor, porque é uma história
incrível”, afirma Veronica. “Mas não acredito que o fenômeno se repetirá com
Divergente, já que Jogos vorazes era algo inesperado.”
As perspectivas de sucesso para Divergente no cinema são pouco
otimistas. Os números das adaptações para o cinema dos últimos dois anos de
romances jovens adultos mostram que a tendência é o esgotamento do gênero
(leia no quadro abaixo). “A cobrança pelo sucesso é dolorosa e
injusta”, disse a produtora Lucy Fisher à revista Entertainment Weekly.
“Recebemos ligações de colegas que trabalham com material jovem adulto, que
dizem: ‘É melhor vocês não ferrarem com a gente’. Se não fizermos sucesso, será
terrível para o gênero, ainda que nossa pretensão seja apenas fazer um bom
filme, que fuja dos lugares-comuns e das etiquetas”.
Divergente fornece material para a especulação sobre o fim do ciclo
de sucesso da literatura jovem adulta. Talvez a saga seja o canto do cisne desse
tipo de história. Os chavões que Divergente traz se repetiram tanto nos
últimos tempos, que os fãs podem ver tudo como algo que nada tem a ver com eles:
em vez do escapismo, a previsibilidade.
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