Margareth Menezes
Margareth MenezesCantora e Compositora
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O samba de roda foi o primeiro contato com as manifestações musicais ancestrais na minha vida. Minha mãe foi minha professora e a família de Ilha de Maré tinha uma grande ligação com a música. Meu avô e meus tios tocavam em um grupo regional e sempre que eu ia à ilha nas férias havia serenatas. Com o tempo, minhas influências foram se alastrando.
Já na adolescência, meu professor de teatro, Reinaldo Nunes, um homem de militância política, ensinou sobre a importância de questionar as coisas antes de aceitá-las. A partir daí minha cabeça mudou e os meus olhos se abriram. A ideia de questionar o porquê das coisas me dava gás para desenvolver minhas próprias definições. A arte era muito palatável para mim!
Quando comecei a trafegar pelos espaços onde se encontravam os movimentos artísticos de Salvador, me lembro de ver o Tony Tornado cantando (Na BR 3), em um festival na TV, e aquele foi meu primeiro grande impacto com um homem negro e moderno cantando na minha língua uma música afro e pop ao mesmo tempo. Aquele cabelo, aquele jeito de dançar. Eu era nova, mas a imagem foi muito marcante. No entanto, a minha primeira visão ao vivo de uma artista foi Clara Nunes. Meu pai e minha mãe a adoravam e um dia ela foi gravar um clipe no Monte Serrat, bairro de Salvador próximo à minha casa, e todos corremos pra ver. Ela cantava a música e chamava o nome de todos os Orixás, de pé numa murada na beira mar. Aquilo me marcou profundamente.
Esses dois momentos trazem uma referência de como a questão afro na música se descortinou para mim, em um primeiro momento, como música de protesto urbana e também falando sobre a relação da religiosidade e das tradições. Já estava em mim a vontade de cantar coisas que denunciassem o racismo. Sempre achei que através da música podemos fazer transformações. Na Bahia, tínhamos e temos o samba-reggae e, como diz Tonho Matéria, a arma é musical!
Quando comecei a me relacionar com os blocos afros, minha vida realmente mudou. O trabalho dos blocos afros é, sem dúvida, o movimento de ativismo musical mais poderoso do Brasil. A coragem, a inteligência e a resistência são as bases desse trabalho de militância admirável. As conquistas promovidas por esses guerreiros são realmente inovadoras. A atitude de pessoas que dedicam suas vidas à conquista de cidadania e oportunidade para as novas gerações. Uma luta desigual, sem violência física, mas com uma força de transformação incrível foi e é, para mim, o mais importante acontecimento desde a fundação do Movimento Negro Unificado, em 1978.
Defendo sempre a terminologia samba-reggae como rótulo de identidade desse universo de mistura rítmica criado para dar base à música feita nos blocos afros. O axé music, além de ter chegado de forma pejorativa e depois ser absorvido pelo mercado, não incluiu o perfil da música afro nas suas definições. Diferentemente da articulação da música pop carioca – ali muitos artistas defendem ou visitam as comunidades e as escolas de samba e ajudam a promover os nomes dos artistas da periferia –, aqui na Bahia raramente se vê os grandes artistas ou produtores da música baiana realizarem colaborações com os blocos afros.
O axé music se tornou um perfil musical altamente comercial, no qual a cultura afro não tem importância alguma a não ser para definir levadas percussivas e ser celeiro de hits carnavalescos. Já sofri muito preconceito devido a algumas posições que tive em relação a essa visão pequena da aplicação do legado afro brasileiro como se não tivesse valor comercial. Eu tenho uma sistemática negação em cantar qualquer música que faça leituras desrespeitosas ao povo afro, principalmente no que diz respeito à imagem da mulher negra.
Nos anos 90, um acontecimento comigo e com o Tonho Matéria marcou bastante. Em um programa de TV de Salvador, nós denunciamos a prática que havia na cidade durante o carnaval, feita pela a maioria dos blocos, de discriminar a pessoa pela raça. A pessoa mandava a foto para a inscrição ou quando ia se inscrever não era aceito. Era uma forma de só ter foliões de pele clara nos blocos e foi praticado durante anos sem nenhuma atitude por parte dos governos. Depois de muita luta, essa prática foi deixada de lado, mas nunca houve uma punição para esse crime.
Hoje, segundo o último CENSO, mais da metade da população se considera espontaneamente afro-brasileira ou mestiça. Portanto, é hora da sociedade mudar seus conceitos de nos olhar como minoria e admitir nosso progresso à luz do dia. Por outro lado, acho também que nosso papel não é mais o de ficar pedindo mais respeito e sim de se dar o respeito.
Se formos fazer um apanhado hoje da quantidade de artistas negros na música e nas artes brasileiras, veremos que já conquistamos esse país há muito tempo, só nos falta o reconhecimento. Faço aqui meu apelo à mídia e ao mercado de empresários baianos e brasileiros para modernizar essa visão sobre a possibilidade e rentabilidade da arte afro-brasileira. Não é a toa que estamos aqui comemorando 40 anos de Ilê, 35 anos de Olodum, do Malê deBalê, do Muzenza, entre outros e os meus 25 anos. É preciso reconhecer e respeitar, em nome das futuras gerações!
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