Monteiro Lobato, racismo e CNE
Coluna do Leitor
17 de novembro de 2010 às 11:22h
Por Cesar Augusto Baldi*
Nilma Lino Gomes não é uma “sicofanta”, uma “destas burocratas de Brasília” ou uma “doidona”, como foi classificada por alguns dos maiores jornais do País. Trata-se de uma pedagoga, com mestrado em Educação (UFMG), doutorado em Antropologia Social (USP) e pós-doutora pela Universidade de Coimbra. Uma das grandes pesquisadoras, no Brasil, sobre a discussão racial na educação. E foi classificada desta forma “elegante” (seria uma censura às suas posições?), em decorrência do Parecer CNE/CE nº 15/2010.[1]
De acordo com a grande imprensa, o Conselho Nacional de Educação teria incorrido em censura, pretendendo banir o livro de Monteiro Lobato ( “Caçadas de Pedrinho”), por entender inadequado o conteúdo da obra, por seu cunho racista.
Mas o que diz, realmente, o parecer tão combatido?
Primeiro, que recebeu uma denúncia e ouviu a opinião de todos os setores educacionais envolvidos, além da Ouvidoria da SEPPIR (Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial).
Segundo, que o MEC tem que respeitar os parâmetros para escolha de livros que ele mesmo determinou. E um deles é evitar livros que disseminem preconceitos e estereótipos.
Terceiro, que as políticas públicas– seja no ensino superior, seja na educação básica- devem formar professores capazes de “lidar pedagogicamente e criticamente com o tipo de situação narrada pelo requerente, a saber, obras consideradas clássicas presentes na biblioteca das escolas que apresentem estereótipos raciais”. O parecer, inclusive, cita bibliografia no sentido da necessidade de escolas e políticas públicas lidarem com narrativas, ilustrações e personagens que reforçam “lugares de subalternização do negro”. Não se esqueça, inclusive, que um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil é promover o bem de todos, “sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” ( art. 3º, IV, CF).
Quarto, que na hipótese de obras selecionadas apresentarem estereótipos, deveria a editora responsável pela publicação inserir no texto de apresentação uma nota explicativa e de esclarecimentos “sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos raciais na literatura”. Observe-se que o livro “Caçadas de Pedrinho”, objeto do parecer, já continha informação de que a aventura narrada ocorreu em tempo “em que os animais silvestres ainda não estavam protegidos pelo IBAMA” e “nem a onça pintada era uma espécie ameaçada de extinção”. Aliás, um procedimento instituído pelo parecer nº 03/2004 e Resolução CNE nº 01/2004. Haveria algum problema, neste caso, de explicitar a questão relacionada ao racismo, se houve tamanha preocupação, pela editora, com a questão ambiental?
Quinto, que a Secretaria de Educação do Distrito Federal orientasse as escolas sobre implementação de diretrizes curriculares para educação de relações étnico-raciais e práticas pedagógicas voltadas para a diversidade étnico-racial decorrentes. Em suma: que a legislação vigente sobre ensino de história e cultura afro-brasileira e africana fosse tomada em conta como eixo transversal. E cumprida.
Sexto, que as ações fossem realizadas em conjunto com o corpo docente e a comunidade escolar, dentro, portanto, de um incremento de participação e de discussão da própria temática de diretrizes curriculares.
Sétimo, que a literatura não está fora dos “conflitos, das tensões e das hierarquias sociais e raciais nas quais o trato à diversidade se realiza”.
As críticas ao parecer vieram fundamentalmente centradas nos seguintes pontos: a) Monteiro Lobato teria sido quase proibido e não se estaria livre de um processo de censura e de expurgo de livros por parte de um tribunal literário; b) o autor não teria se afastado da mentalidade que “predominava na elite de seu tempo”; c) banir autores somente seria admitido em “casos claros de repugnante racismo”(Lya Luft); d) a medida estaria em desacordo com “nossa maneira de convivência entre as etnias”; e) Tia Nastácia encarna a “divindade criadora”, projetando a “igualdade do ser humano a partir da consciência de sua cor” e que “se há quem se refira a ela como ex-escrava e negra é porque essa era a cor dela e essa era a realidade dos afro-descendentes no Brasil dessa época”(Academia Brasileira de Letras); f) tal iniciativa decorre do multiculturalismo “que reivindica a intervenção do Estado para autonomizar culturas, como se fossem minorias oprimidas em pé de guerra com a sociedade nacional”, uma “imitação servil dos Estados Unidos, país por séculos institucionalmente racista” (Aldo Rebelo).
Os argumentos dizem mais sobre o que ocultam do que, efetivamente, sobre o próprio parecer e suas conclusões.
Primeiro, porque reforçam a ideia de “harmonia social” e “democracia racial”, bem como a alegada inexistência de legislação racialista, ignorando o debate que tem sido feito desde a década de 1970 que denuncia as desigualdades de cunho racial no Brasil.[2]
Alexandre Emboaba da Costa destaca que tais argumentos tendem a: a) apontar a miscigenação como falta de racismo e como fator que influencia as relações sociais, esquecendo a articulação complexa entre classe, gênero, raça, sexualidade e espiritualidade : na “constituição desigual do desenvolvimento e das sociedades da América Latina”; b) divorciar o Brasil dos processos históricos de desenvolvimento global, construindo uma “especificidade histórica” como “algo isolado”, como se não houvesse qualquer inserção num sistema internacional de distribuição desigual de hierarquias; c) supervalorizar a ligação entre miscigenação e igualdade social como se fosse um processo estático, esquecendo tratar-se de “um sistema específico de dominação, com suas maneiras próprias de reproduzir a hierarquia e o poder”. Em suma: “em vez de proteger a miscigenação a qualquer custo”, necessário “examinar como as relações desiguais e hierárquicas foram reproduzidas dentro de um sistema que não visa à separação de raças como na América do Norte, mas uma suposta tendência à integração e à cordialidade.”[3]
Isto fica evidente com os dados constantes do Relatório de Desenvolvimento Humano Brasil- 2005 ( “Racismo, pobreza e violência”), elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento[4] :
“Entre os adultos, a porcentagem de negros com grau universitário observada no Brasil em 2001 (2,5%) foi atingida nos Estados Unidos em 1947- em plena era de segregação, intolerância e violência racial aberta, anterior ao crescimento do movimento por direitos civis e muito antes do surgimento das políticas de ação afirmativa na educação. A proporção dos brancos brasileiros com nível superior em 2001 ( 10,2%) foi alcançada pelos brancos norte-americanos em meados da década de 1960. No caso da África do Sul, em 1995, 2,2% da população negra de 30 a 49 anos de idade era portadora do grau universitário, enquanto no Brasil, no mesmo ano e na mesma faixa etária, esse índice atingia 2,9%. Como o regime do apartheid só terminou em 1994, conclui-se que o sistema universitário desse regime foi capaz de produzir, para a população negra, resultados muito semelhantes aos do sistema educacional supostamente integrado, universalista e racialmente democrático do Brasil”.
Uma pergunta a ser feita seria: não existindo nem a segregação dos EUA nem o apartheid da África do Sul, como foi possível ao Brasil, “democracia racial”, ter reproduzido o mesmo tipo de relações desiguais e hierárquicas?
Segundo, porque, ao discutir se Monteiro Lobato era ou não racista, procuram vincular o racismo ao momento em que o livro foi escrito e não assumir o caráter continuado de subalternização e discriminação de negros.
A inexistência de “raças”, conforme defendida por alguns, não impede – e nunca impediu- a prática do racismo que, conforme a Constituição, é “crime inafiançável e imprescritível” (art. 5º, XLII, CF) e seu repúdio deve reger as relações internacionais brasileiras (art. 4º, VIII, CF). E, portanto, obrigação constitucional, para todos os Poderes de Estado em todas as esferas, de: a) impedir qualquer conduta, prática ou atitude que incentive, prolifere ou constitua racismo; b) tomar todas as medidas cabíveis e possíveis para a erradicação de tal prática.
Imaginar que o racismo seja combatido apenas quando “evidente” ou “caso flagrante” significa partir do pressuposto de que um “tribunal branco” vai estabelecer qual o “sofrimento desnecessário” a partir do qual é possível à vítima da discriminação requerer um tratamento digno. É semelhante à discussão se a pena de morte somente é cruel quando ocorrer por lapidação, mas não por cadeira elétrica ou choque; ou se a tortura é necessária quando o acusado é “reconhecidamente” malvado ou se é imprescindível para obtenção de dados fundamentais ao Estado. Não é preciso lembrar o grau de “coincidência” a ascendência negra e os “autos de resistência”, as averiguações pela polícia e as torturas ou maus tratos em prisões. Justamente porque não se reconhece enquanto racismo é que piadas como a do Danilo Gentilli, do CQC- “King Kong, um macaco que depois que vai para cidade e fica famoso, pega uma loira. Quem ele acha que é? Jogador de futebol?”- passam apenas para uma brincadeira de mau gosto. Afinal, respondeu ele, “não disse a cor do jogador. Disse que a loira saiu com o cara porque era famoso. A cabeça de vocês é que tem preconceito”[5]… Realmente, a associação entre negro, jogador de futebol e macaco é tão incomum que os clubes europeus cujas torcidas simularam sons de macaco para determinados jogadores foram punidos por… racismo. Não é mesmo?
O racismo não “era” uma mentalidade presente apenas naquele tempo, mas uma realidade que permanece na mesma elite que se imagina não preconceituosa e “formadora de opinião.”
Terceiro, porque, em momento algum, os críticos salientam a necessidade de discutir as melhores formas para uma educação que seja crítica, antirracista- e, acrescente-se- “descolonial”. Abdias do Nascimento, em pronunciamento sobre a questão, salientou ser o momento também para discutir-se, em sala de aula, o bullying, “novo nome de uma antiga prática a que gerações de negrinhas e de negrinhos vêm sendo submetidos desde sempre nas escolas brasileiras.”[6]
Quarto, ao salientar-se que a referência a ex-escrava e negra era apenas decorrente do momento histórico, seria interessante imaginar se seria possível Dona Benta ser negra e, ao mesmo tempo, a contadora de histórias europeias e do conhecimento científico dentro da casa, e a tia Nastácia uma senhora branca, empregada doméstica, contadora de casos de folclore. Ou a mesma Dona Benta negra contadora de histórias populares ser tida como detentora de conhecimento científico e uma tia Nastácia branca narrando contos de Grimm ser tida como “contadora” de superstições. Seria possível? A “tia” era subalterna porque negra ou negra porque subalterna? Não se trata somente de luta por justiça social e histórica, mas também por “justiça cognitiva, por um estatuto epistemológico que não subalternize os conhecimentos e práticas negros, indígenas e de comunidades tradicionais.
Quinto, porque o multiculturalismo não é uma cópia servil dos EUA e tampouco uma autonomização de culturas. Exceto para aqueles que entendem que a pluralidade cultural deve ser entendida como ausência de cruzamentos de culturas, de alteração de parâmetros e, fundamentalmente, de interculturalidade. Ou que fazem elogio da miscigenação, que é tanto mais defendida e palatável, quanto mais branca for na essência, e que os elementos indígenas e negros demonstrem a “harmonia” desta “mistura genial”. Como “coadjuvantes”, é claro.
Os distintos movimentos negros e indígenas-talvez não seja do conhecimento destes críticos- desde a década de 1970 não vem defendendo a assimilação nem o aniquilamento das identidades, mas sim um processo de reconhecimento efetivo da diversidade cultural, que, em alguns países, passa pela discussão da plurinacionalidade, do constitucionalismo intercultural e da “descolonização do conhecimento” ( como Equador e Bolívia).
Imaginar uma simples cópia é desconhecer toda esta rica discussão e mesmo a criação de novos conceitos, como “amefricanidade” de Lélia Gonzalez e de “quilombismo” de Abdias do Nascimento, para revigoramento das lutas nacionais por reconhecimento da imensa demodiversidade, sociodiversidade e pluriculturalidade nacional. Por este motivo foram incluídas a proteção das manifestações culturais de indígenas e afro-brasileiros ( art. 215, § 1º, CF), a fixação de datas comemorativas de alta significação de segmentos étnicos nacionais ( art. 215, § 2º, CF) e a proteção dos quilombos ( art. 216, § 5º, CF e art. 68-ADCT). São direitos constitucionalmente reconhecidos depois de muitos anos – e séculos- de lutas. A comemoração do 20 de novembro não é uma reprodução do dia de Martin Luther King, ainda que as energias emancipatórias dos dois movimentos possam ser solidárias.
A luta não é por autonomia de culturas, mas sim contra todas as formas de sexismo, racismo e colonialismo ( tanto interno quanto externo) e por um novo patamar de relação entre igualdade e diferença, em que os conhecimentos e práticas distintos do padrão hegemônico (branco, ocidental, heterossexual, proprietário, adulto) não sejam considerados atrasados, resíduos, improdutivos, ignorantes. É a recuperação de vozes de sofrimento silenciadas, suprimidas, invisibilizadas.
Em 2006, uma campanha publicitária destacava: “levamos nosso afilhado de três anos numa festa e uma criança, da mesma idade, disse pra ele: minha mãe detesta gente preta e eu também.”. O mote da campanha era então- tanto quanto hoje- muito atual: “Onde você guarda o seu racismo? Não guarde, jogue fora!”[7]
Em momentos como este, é que se percebe o quanto é institucionalizado o racismo que sequer se vê como discriminação e que permite a manutenção de um processo contínuo de inferiorização de negros e indígenas. A luta contra os racismos é um ritual doloroso: é como colocar a mão em vespeiro ou formigueiro. Mas ela tem que começar a ser realizada. E se não for sequer em escolas e universidades, vai ser onde?
*César Augusto Baldi, mestre em Direito ( ULBRA/RS), doutorando Universidad Pablo Olavide ( Espanha), servidor do TRF-4ª Região desde 1989, é organizador do livro “Direitos humanos na sociedade cosmopolita” ( Ed. Renovar, 2004).
[1] Disponível no site: http://blog.centrodestudos.com.br/2010/11/03/cacadas-de-pedrinho-e-o-cne/
[2] HASENBALG, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2005; SILVA, Nelson do Valle. Extensão e natureza das desigualdades raciais no Brasil. IN: LYNN, Huntley & GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo ( org). Tirando a máscara: ensaios sobre o racismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 33-51.
[3] COSTA, Alexandre Emboaba. Mobilizando a ancestralidade afro-brasileira para a transformação das relações sociais e o desenvolvimento global. Disponível em: http://www.orunmila.org.br/blog/?p=167
[4] Disponível no site http://www.pnud.org.br/rdh
[5] Disponível em: http://www.mulheresreais.blog.br/?p=416
[6] Disponível em: xa.yimg.com/kq/…/11_08_ABDIAS_PARECER+15_2010_CNE.doc.pdf [7] www.dialogoscontraoracismo.org.br
Coluna do Leitor
17 de novembro de 2010 às 11:22h
Por Cesar Augusto Baldi*
Nilma Lino Gomes não é uma “sicofanta”, uma “destas burocratas de Brasília” ou uma “doidona”, como foi classificada por alguns dos maiores jornais do País. Trata-se de uma pedagoga, com mestrado em Educação (UFMG), doutorado em Antropologia Social (USP) e pós-doutora pela Universidade de Coimbra. Uma das grandes pesquisadoras, no Brasil, sobre a discussão racial na educação. E foi classificada desta forma “elegante” (seria uma censura às suas posições?), em decorrência do Parecer CNE/CE nº 15/2010.[1]
De acordo com a grande imprensa, o Conselho Nacional de Educação teria incorrido em censura, pretendendo banir o livro de Monteiro Lobato ( “Caçadas de Pedrinho”), por entender inadequado o conteúdo da obra, por seu cunho racista.
Mas o que diz, realmente, o parecer tão combatido?
Primeiro, que recebeu uma denúncia e ouviu a opinião de todos os setores educacionais envolvidos, além da Ouvidoria da SEPPIR (Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial).
Segundo, que o MEC tem que respeitar os parâmetros para escolha de livros que ele mesmo determinou. E um deles é evitar livros que disseminem preconceitos e estereótipos.
Terceiro, que as políticas públicas– seja no ensino superior, seja na educação básica- devem formar professores capazes de “lidar pedagogicamente e criticamente com o tipo de situação narrada pelo requerente, a saber, obras consideradas clássicas presentes na biblioteca das escolas que apresentem estereótipos raciais”. O parecer, inclusive, cita bibliografia no sentido da necessidade de escolas e políticas públicas lidarem com narrativas, ilustrações e personagens que reforçam “lugares de subalternização do negro”. Não se esqueça, inclusive, que um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil é promover o bem de todos, “sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” ( art. 3º, IV, CF).
Quarto, que na hipótese de obras selecionadas apresentarem estereótipos, deveria a editora responsável pela publicação inserir no texto de apresentação uma nota explicativa e de esclarecimentos “sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos raciais na literatura”. Observe-se que o livro “Caçadas de Pedrinho”, objeto do parecer, já continha informação de que a aventura narrada ocorreu em tempo “em que os animais silvestres ainda não estavam protegidos pelo IBAMA” e “nem a onça pintada era uma espécie ameaçada de extinção”. Aliás, um procedimento instituído pelo parecer nº 03/2004 e Resolução CNE nº 01/2004. Haveria algum problema, neste caso, de explicitar a questão relacionada ao racismo, se houve tamanha preocupação, pela editora, com a questão ambiental?
Quinto, que a Secretaria de Educação do Distrito Federal orientasse as escolas sobre implementação de diretrizes curriculares para educação de relações étnico-raciais e práticas pedagógicas voltadas para a diversidade étnico-racial decorrentes. Em suma: que a legislação vigente sobre ensino de história e cultura afro-brasileira e africana fosse tomada em conta como eixo transversal. E cumprida.
Sexto, que as ações fossem realizadas em conjunto com o corpo docente e a comunidade escolar, dentro, portanto, de um incremento de participação e de discussão da própria temática de diretrizes curriculares.
Sétimo, que a literatura não está fora dos “conflitos, das tensões e das hierarquias sociais e raciais nas quais o trato à diversidade se realiza”.
As críticas ao parecer vieram fundamentalmente centradas nos seguintes pontos: a) Monteiro Lobato teria sido quase proibido e não se estaria livre de um processo de censura e de expurgo de livros por parte de um tribunal literário; b) o autor não teria se afastado da mentalidade que “predominava na elite de seu tempo”; c) banir autores somente seria admitido em “casos claros de repugnante racismo”(Lya Luft); d) a medida estaria em desacordo com “nossa maneira de convivência entre as etnias”; e) Tia Nastácia encarna a “divindade criadora”, projetando a “igualdade do ser humano a partir da consciência de sua cor” e que “se há quem se refira a ela como ex-escrava e negra é porque essa era a cor dela e essa era a realidade dos afro-descendentes no Brasil dessa época”(Academia Brasileira de Letras); f) tal iniciativa decorre do multiculturalismo “que reivindica a intervenção do Estado para autonomizar culturas, como se fossem minorias oprimidas em pé de guerra com a sociedade nacional”, uma “imitação servil dos Estados Unidos, país por séculos institucionalmente racista” (Aldo Rebelo).
Os argumentos dizem mais sobre o que ocultam do que, efetivamente, sobre o próprio parecer e suas conclusões.
Primeiro, porque reforçam a ideia de “harmonia social” e “democracia racial”, bem como a alegada inexistência de legislação racialista, ignorando o debate que tem sido feito desde a década de 1970 que denuncia as desigualdades de cunho racial no Brasil.[2]
Alexandre Emboaba da Costa destaca que tais argumentos tendem a: a) apontar a miscigenação como falta de racismo e como fator que influencia as relações sociais, esquecendo a articulação complexa entre classe, gênero, raça, sexualidade e espiritualidade : na “constituição desigual do desenvolvimento e das sociedades da América Latina”; b) divorciar o Brasil dos processos históricos de desenvolvimento global, construindo uma “especificidade histórica” como “algo isolado”, como se não houvesse qualquer inserção num sistema internacional de distribuição desigual de hierarquias; c) supervalorizar a ligação entre miscigenação e igualdade social como se fosse um processo estático, esquecendo tratar-se de “um sistema específico de dominação, com suas maneiras próprias de reproduzir a hierarquia e o poder”. Em suma: “em vez de proteger a miscigenação a qualquer custo”, necessário “examinar como as relações desiguais e hierárquicas foram reproduzidas dentro de um sistema que não visa à separação de raças como na América do Norte, mas uma suposta tendência à integração e à cordialidade.”[3]
Isto fica evidente com os dados constantes do Relatório de Desenvolvimento Humano Brasil- 2005 ( “Racismo, pobreza e violência”), elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento[4] :
“Entre os adultos, a porcentagem de negros com grau universitário observada no Brasil em 2001 (2,5%) foi atingida nos Estados Unidos em 1947- em plena era de segregação, intolerância e violência racial aberta, anterior ao crescimento do movimento por direitos civis e muito antes do surgimento das políticas de ação afirmativa na educação. A proporção dos brancos brasileiros com nível superior em 2001 ( 10,2%) foi alcançada pelos brancos norte-americanos em meados da década de 1960. No caso da África do Sul, em 1995, 2,2% da população negra de 30 a 49 anos de idade era portadora do grau universitário, enquanto no Brasil, no mesmo ano e na mesma faixa etária, esse índice atingia 2,9%. Como o regime do apartheid só terminou em 1994, conclui-se que o sistema universitário desse regime foi capaz de produzir, para a população negra, resultados muito semelhantes aos do sistema educacional supostamente integrado, universalista e racialmente democrático do Brasil”.
Uma pergunta a ser feita seria: não existindo nem a segregação dos EUA nem o apartheid da África do Sul, como foi possível ao Brasil, “democracia racial”, ter reproduzido o mesmo tipo de relações desiguais e hierárquicas?
Segundo, porque, ao discutir se Monteiro Lobato era ou não racista, procuram vincular o racismo ao momento em que o livro foi escrito e não assumir o caráter continuado de subalternização e discriminação de negros.
A inexistência de “raças”, conforme defendida por alguns, não impede – e nunca impediu- a prática do racismo que, conforme a Constituição, é “crime inafiançável e imprescritível” (art. 5º, XLII, CF) e seu repúdio deve reger as relações internacionais brasileiras (art. 4º, VIII, CF). E, portanto, obrigação constitucional, para todos os Poderes de Estado em todas as esferas, de: a) impedir qualquer conduta, prática ou atitude que incentive, prolifere ou constitua racismo; b) tomar todas as medidas cabíveis e possíveis para a erradicação de tal prática.
Imaginar que o racismo seja combatido apenas quando “evidente” ou “caso flagrante” significa partir do pressuposto de que um “tribunal branco” vai estabelecer qual o “sofrimento desnecessário” a partir do qual é possível à vítima da discriminação requerer um tratamento digno. É semelhante à discussão se a pena de morte somente é cruel quando ocorrer por lapidação, mas não por cadeira elétrica ou choque; ou se a tortura é necessária quando o acusado é “reconhecidamente” malvado ou se é imprescindível para obtenção de dados fundamentais ao Estado. Não é preciso lembrar o grau de “coincidência” a ascendência negra e os “autos de resistência”, as averiguações pela polícia e as torturas ou maus tratos em prisões. Justamente porque não se reconhece enquanto racismo é que piadas como a do Danilo Gentilli, do CQC- “King Kong, um macaco que depois que vai para cidade e fica famoso, pega uma loira. Quem ele acha que é? Jogador de futebol?”- passam apenas para uma brincadeira de mau gosto. Afinal, respondeu ele, “não disse a cor do jogador. Disse que a loira saiu com o cara porque era famoso. A cabeça de vocês é que tem preconceito”[5]… Realmente, a associação entre negro, jogador de futebol e macaco é tão incomum que os clubes europeus cujas torcidas simularam sons de macaco para determinados jogadores foram punidos por… racismo. Não é mesmo?
O racismo não “era” uma mentalidade presente apenas naquele tempo, mas uma realidade que permanece na mesma elite que se imagina não preconceituosa e “formadora de opinião.”
Terceiro, porque, em momento algum, os críticos salientam a necessidade de discutir as melhores formas para uma educação que seja crítica, antirracista- e, acrescente-se- “descolonial”. Abdias do Nascimento, em pronunciamento sobre a questão, salientou ser o momento também para discutir-se, em sala de aula, o bullying, “novo nome de uma antiga prática a que gerações de negrinhas e de negrinhos vêm sendo submetidos desde sempre nas escolas brasileiras.”[6]
Quarto, ao salientar-se que a referência a ex-escrava e negra era apenas decorrente do momento histórico, seria interessante imaginar se seria possível Dona Benta ser negra e, ao mesmo tempo, a contadora de histórias europeias e do conhecimento científico dentro da casa, e a tia Nastácia uma senhora branca, empregada doméstica, contadora de casos de folclore. Ou a mesma Dona Benta negra contadora de histórias populares ser tida como detentora de conhecimento científico e uma tia Nastácia branca narrando contos de Grimm ser tida como “contadora” de superstições. Seria possível? A “tia” era subalterna porque negra ou negra porque subalterna? Não se trata somente de luta por justiça social e histórica, mas também por “justiça cognitiva, por um estatuto epistemológico que não subalternize os conhecimentos e práticas negros, indígenas e de comunidades tradicionais.
Quinto, porque o multiculturalismo não é uma cópia servil dos EUA e tampouco uma autonomização de culturas. Exceto para aqueles que entendem que a pluralidade cultural deve ser entendida como ausência de cruzamentos de culturas, de alteração de parâmetros e, fundamentalmente, de interculturalidade. Ou que fazem elogio da miscigenação, que é tanto mais defendida e palatável, quanto mais branca for na essência, e que os elementos indígenas e negros demonstrem a “harmonia” desta “mistura genial”. Como “coadjuvantes”, é claro.
Os distintos movimentos negros e indígenas-talvez não seja do conhecimento destes críticos- desde a década de 1970 não vem defendendo a assimilação nem o aniquilamento das identidades, mas sim um processo de reconhecimento efetivo da diversidade cultural, que, em alguns países, passa pela discussão da plurinacionalidade, do constitucionalismo intercultural e da “descolonização do conhecimento” ( como Equador e Bolívia).
Imaginar uma simples cópia é desconhecer toda esta rica discussão e mesmo a criação de novos conceitos, como “amefricanidade” de Lélia Gonzalez e de “quilombismo” de Abdias do Nascimento, para revigoramento das lutas nacionais por reconhecimento da imensa demodiversidade, sociodiversidade e pluriculturalidade nacional. Por este motivo foram incluídas a proteção das manifestações culturais de indígenas e afro-brasileiros ( art. 215, § 1º, CF), a fixação de datas comemorativas de alta significação de segmentos étnicos nacionais ( art. 215, § 2º, CF) e a proteção dos quilombos ( art. 216, § 5º, CF e art. 68-ADCT). São direitos constitucionalmente reconhecidos depois de muitos anos – e séculos- de lutas. A comemoração do 20 de novembro não é uma reprodução do dia de Martin Luther King, ainda que as energias emancipatórias dos dois movimentos possam ser solidárias.
A luta não é por autonomia de culturas, mas sim contra todas as formas de sexismo, racismo e colonialismo ( tanto interno quanto externo) e por um novo patamar de relação entre igualdade e diferença, em que os conhecimentos e práticas distintos do padrão hegemônico (branco, ocidental, heterossexual, proprietário, adulto) não sejam considerados atrasados, resíduos, improdutivos, ignorantes. É a recuperação de vozes de sofrimento silenciadas, suprimidas, invisibilizadas.
Em 2006, uma campanha publicitária destacava: “levamos nosso afilhado de três anos numa festa e uma criança, da mesma idade, disse pra ele: minha mãe detesta gente preta e eu também.”. O mote da campanha era então- tanto quanto hoje- muito atual: “Onde você guarda o seu racismo? Não guarde, jogue fora!”[7]
Em momentos como este, é que se percebe o quanto é institucionalizado o racismo que sequer se vê como discriminação e que permite a manutenção de um processo contínuo de inferiorização de negros e indígenas. A luta contra os racismos é um ritual doloroso: é como colocar a mão em vespeiro ou formigueiro. Mas ela tem que começar a ser realizada. E se não for sequer em escolas e universidades, vai ser onde?
*César Augusto Baldi, mestre em Direito ( ULBRA/RS), doutorando Universidad Pablo Olavide ( Espanha), servidor do TRF-4ª Região desde 1989, é organizador do livro “Direitos humanos na sociedade cosmopolita” ( Ed. Renovar, 2004).
[1] Disponível no site: http://blog.centrodestudos.com.br/2010/11/03/cacadas-de-pedrinho-e-o-cne/
[2] HASENBALG, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2005; SILVA, Nelson do Valle. Extensão e natureza das desigualdades raciais no Brasil. IN: LYNN, Huntley & GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo ( org). Tirando a máscara: ensaios sobre o racismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 33-51.
[3] COSTA, Alexandre Emboaba. Mobilizando a ancestralidade afro-brasileira para a transformação das relações sociais e o desenvolvimento global. Disponível em: http://www.orunmila.org.br/blog/?p=167
[4] Disponível no site http://www.pnud.org.br/rdh
[5] Disponível em: http://www.mulheresreais.blog.br/?p=416
[6] Disponível em: xa.yimg.com/kq/…/11_08_ABDIAS_PARECER+15_2010_CNE.doc.pdf [7] www.dialogoscontraoracismo.org.br
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