Eles morreram pela floresta
O assassinato de um casal de extrativistas no Pará mostra que defender o uso sustentável da Amazônia – e a lei – ainda é uma atividade de risco
Aline Ribeiro
O extrativista paraense José Cláudio Ribeiro da Silva, de 54 anos, cultivou uma extensa lista de desafetos ao longo da vida. Ao lado da mulher, Maria do Espírito Santo Silva, de 53, ele se dedicava a combater criminosos que invadiam suas terras para roubar madeira. O casal vivia em um assentamento extrativista próximo a Nova Ipixuna, sudeste do Pará, ainda abundante em árvores nobres da Amazônia. É uma área de conservação pública, onde famílias de coletores podem viver com atividades econômicas que não destruam a mata. Na reserva, as castanheiras e os açaizeiros garantem a sobrevivência das cerca de 500 famílias. Mas madeireiros e carvoeiros na região fazem dinheiro do corte de toras, explorando a riqueza florestal em curto prazo. E vinham ameaçando de morte o casal.
Na semana passada, Maria e Silva foram mortos a tiros, por volta das 7h30 da terça-feira, a 8 quilômetros de casa. Eles iam para a cidade quando reduziram a velocidade para passar sobre uma ponte. Os assassinos os esperavam do outro lado do igarapé. Pelos contornos da barbárie, a polícia suspeita que seja um crime encomendado. Um pedaço da orelha de Silva foi cortado. O mandante possivelmente queria uma prova concreta de que o casal se calou.
Silva e Maria moravam às margens do Rio Tocantins havia mais de 20 anos. Eram posseiros. Maria liderava um grupo de mulheres na fabricação de artesanato, licores, sabonetes e doces das frutas oferecidas pela floresta. Silva trabalhava com os produtos da castanha do Brasil colhida no quintal. Em comum, tinham o compromisso de proteger o que lhes dava o sustento. Eles tiveram de assumir um papel que era para ser do Estado. Acabou em tragédia.
Sob a liderança de Silva, os assentados combatiam os madeireiros e carvoeiros ilegais com ações implacáveis. Interditavam as estradas de acesso à área de floresta. Anotavam a placa dos caminhões. Furavam os pneus dos veículos. Denunciavam serrarias. A retaliação começou há pelo menos seis anos. Não raro, pistoleiros cercavam a casa de Silva para ameaçar o casal. Os nomes dele e da mulher estavam em uma lista da Comissão Pastoral da Terra (CPT), uma seleção de pessoas que precisam de proteção policial. Não era segredo que corriam perigo. Estavam ainda em uma relação encontrada com os assassinos da missionária americana Dorothy Stang, morta em 2005 por defender pequenos agricultores no Pará. A lista tinha 600 pessoas marcadas para morrer. E mostrava o preço da vida de cada uma. Pela morte de Silva e Maria, o mandante pagaria R$ 10 mil.
O governo brasileiro tem um serviço para proteger os defensores dos direitos humanos. Ele oferece desde ronda policial e assistência psicológica até escolta 24 horas, dependendo da gravidade. O Pará tem o maior efetivo do Brasil, com 17 policiais em quatro cidades. A despeito de sabidamente ameaçados, Silva e Maria não recebiam nenhum tipo de proteção. “Para alguém ser incluído no programa, precisa haver voluntariedade”, afirma o defensor público Márcio da Silva Cruz, coordenador do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos no Pará. “Aqui, nunca chegou um pedido deles.” Segundo João Batista Afonso, advogado da CPT, os dois haviam solicitado resguardo à delegacia de Nova Ipixuna mais de uma vez.
Em novembro passado, Silva foi uma das vedetes do TEDx Amazônia, um fórum internacional que discutiu a qualidade de vida no planeta. No fórum, Silva fez uma apresentação premonitória. “Vivo com a bala na cabeça”, disse. “Porque eu vou para cima. Denuncio os madeireiros e os carvoeiros. A mesma coisa que fizeram no Acre com o Chico Mendes querem fazer comigo. A mesma coisa que fizeram com a irmã Dorothy querem fazer comigo. Eu posso estar hoje aqui conversando com vocês e daqui a um mês desaparecer”. Silva só errou a data.
O Pará é historicamente o Estado onde mais se mata por conflitos no campo. No ano passado, registrou 18 assassinatos (o dobro de 2009). Costuma frequentar também o topo da lista dos que mais derrubam floresta. As posições de liderança estão relacionadas. O desmatamento ilegal é uma ação conjunta de pecuaristas e madeireiros. Os primeiros invadem e tomam a área. Os outros fazem o corte raso das árvores, deixando o caminho livre para os bois. O assassinato de Maria e Silva repete a história de outros mártires da floresta. Gente que tentava interromper esse ciclo vicioso, como o seringueiro Chico Mendes, assassinado em 1988, e a irmã Dorothy Stang, morta em 2005. Acriano de Xapuri, Mendes lutou durante boa parte de seus 44 anos para garantir os direitos dos povos que vivem na mata (e da mata).
Ele foi um dos idealizadores do modelo de reserva extrativista no Brasil, reproduzido em diversos Estados (inspiração para a área onde morava o casal paraense). Nela, as famílias vivem da extração de castanhas, borracha, cupuaçu – e do que mais a floresta proporcionar. A porção de terra é um bem comum, e os trabalhadores se organizam em cooperativas para a exploração sustentável da floresta. Chico foi assassinado apesar de colocar de pé um sistema de produção que garantisse a sobrevivência dos recursos naturais. Maria e Silva morreram tentando fazer valer o modelo. “O desmatamento com conflito existe quando há uma nova região de ocupação, de grilagem”, afirma o pesquisador Paulo Barreto, do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). “Com o casal foi ainda pior. Eles já tinham assegurado o direito da terra, lutavam pela preservação.”
No mesmo dia do assassinato do casal, o Congresso brasileiro votou a mudança da legislação brasileira que define a ocupação do solo e a preservação das matas, o Código Florestal (leia Em Contexto). Por volta das 16 horas, o plenário viveu uma cena constrangedora. O deputado José Sarney Filho, líder do Partido Verde (PV), lia uma reportagem sobre a morte do casal. Associara a luta pela proteção do Código Florestal ao crime brutal. Das bancadas da Câmara dos Deputados, surgiu uma vaia. Vinha de alguns deputados ruralistas. A lei aprovada vai garantir a anistia de quem desmatou até 2008. Isso beneficia vários agricultores do Brasil que tentam regularizar sua propriedade, mas também ajuda alguns madeireiros e carvoeiros ilegais, como os que invadiam a reserva extrativista de Nova Ipixuna. Na semana passada, quem ameaçava o casal Silva teve motivos para comemorar.
Outros mártires ambientais -
O extrativista paraense José Cláudio Ribeiro da Silva, de 54 anos, cultivou uma extensa lista de desafetos ao longo da vida. Ao lado da mulher, Maria do Espírito Santo Silva, de 53, ele se dedicava a combater criminosos que invadiam suas terras para roubar madeira. O casal vivia em um assentamento extrativista próximo a Nova Ipixuna, sudeste do Pará, ainda abundante em árvores nobres da Amazônia. É uma área de conservação pública, onde famílias de coletores podem viver com atividades econômicas que não destruam a mata. Na reserva, as castanheiras e os açaizeiros garantem a sobrevivência das cerca de 500 famílias. Mas madeireiros e carvoeiros na região fazem dinheiro do corte de toras, explorando a riqueza florestal em curto prazo. E vinham ameaçando de morte o casal.
Na semana passada, Maria e Silva foram mortos a tiros, por volta das 7h30 da terça-feira, a 8 quilômetros de casa. Eles iam para a cidade quando reduziram a velocidade para passar sobre uma ponte. Os assassinos os esperavam do outro lado do igarapé. Pelos contornos da barbárie, a polícia suspeita que seja um crime encomendado. Um pedaço da orelha de Silva foi cortado. O mandante possivelmente queria uma prova concreta de que o casal se calou.
Silva e Maria moravam às margens do Rio Tocantins havia mais de 20 anos. Eram posseiros. Maria liderava um grupo de mulheres na fabricação de artesanato, licores, sabonetes e doces das frutas oferecidas pela floresta. Silva trabalhava com os produtos da castanha do Brasil colhida no quintal. Em comum, tinham o compromisso de proteger o que lhes dava o sustento. Eles tiveram de assumir um papel que era para ser do Estado. Acabou em tragédia.
Sob a liderança de Silva, os assentados combatiam os madeireiros e carvoeiros ilegais com ações implacáveis. Interditavam as estradas de acesso à área de floresta. Anotavam a placa dos caminhões. Furavam os pneus dos veículos. Denunciavam serrarias. A retaliação começou há pelo menos seis anos. Não raro, pistoleiros cercavam a casa de Silva para ameaçar o casal. Os nomes dele e da mulher estavam em uma lista da Comissão Pastoral da Terra (CPT), uma seleção de pessoas que precisam de proteção policial. Não era segredo que corriam perigo. Estavam ainda em uma relação encontrada com os assassinos da missionária americana Dorothy Stang, morta em 2005 por defender pequenos agricultores no Pará. A lista tinha 600 pessoas marcadas para morrer. E mostrava o preço da vida de cada uma. Pela morte de Silva e Maria, o mandante pagaria R$ 10 mil.
O governo brasileiro tem um serviço para proteger os defensores dos direitos humanos. Ele oferece desde ronda policial e assistência psicológica até escolta 24 horas, dependendo da gravidade. O Pará tem o maior efetivo do Brasil, com 17 policiais em quatro cidades. A despeito de sabidamente ameaçados, Silva e Maria não recebiam nenhum tipo de proteção. “Para alguém ser incluído no programa, precisa haver voluntariedade”, afirma o defensor público Márcio da Silva Cruz, coordenador do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos no Pará. “Aqui, nunca chegou um pedido deles.” Segundo João Batista Afonso, advogado da CPT, os dois haviam solicitado resguardo à delegacia de Nova Ipixuna mais de uma vez.
Em novembro passado, Silva foi uma das vedetes do TEDx Amazônia, um fórum internacional que discutiu a qualidade de vida no planeta. No fórum, Silva fez uma apresentação premonitória. “Vivo com a bala na cabeça”, disse. “Porque eu vou para cima. Denuncio os madeireiros e os carvoeiros. A mesma coisa que fizeram no Acre com o Chico Mendes querem fazer comigo. A mesma coisa que fizeram com a irmã Dorothy querem fazer comigo. Eu posso estar hoje aqui conversando com vocês e daqui a um mês desaparecer”. Silva só errou a data.
O Pará é historicamente o Estado onde mais se mata por conflitos no campo. No ano passado, registrou 18 assassinatos (o dobro de 2009). Costuma frequentar também o topo da lista dos que mais derrubam floresta. As posições de liderança estão relacionadas. O desmatamento ilegal é uma ação conjunta de pecuaristas e madeireiros. Os primeiros invadem e tomam a área. Os outros fazem o corte raso das árvores, deixando o caminho livre para os bois. O assassinato de Maria e Silva repete a história de outros mártires da floresta. Gente que tentava interromper esse ciclo vicioso, como o seringueiro Chico Mendes, assassinado em 1988, e a irmã Dorothy Stang, morta em 2005. Acriano de Xapuri, Mendes lutou durante boa parte de seus 44 anos para garantir os direitos dos povos que vivem na mata (e da mata).
Ele foi um dos idealizadores do modelo de reserva extrativista no Brasil, reproduzido em diversos Estados (inspiração para a área onde morava o casal paraense). Nela, as famílias vivem da extração de castanhas, borracha, cupuaçu – e do que mais a floresta proporcionar. A porção de terra é um bem comum, e os trabalhadores se organizam em cooperativas para a exploração sustentável da floresta. Chico foi assassinado apesar de colocar de pé um sistema de produção que garantisse a sobrevivência dos recursos naturais. Maria e Silva morreram tentando fazer valer o modelo. “O desmatamento com conflito existe quando há uma nova região de ocupação, de grilagem”, afirma o pesquisador Paulo Barreto, do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). “Com o casal foi ainda pior. Eles já tinham assegurado o direito da terra, lutavam pela preservação.”
No mesmo dia do assassinato do casal, o Congresso brasileiro votou a mudança da legislação brasileira que define a ocupação do solo e a preservação das matas, o Código Florestal (leia Em Contexto). Por volta das 16 horas, o plenário viveu uma cena constrangedora. O deputado José Sarney Filho, líder do Partido Verde (PV), lia uma reportagem sobre a morte do casal. Associara a luta pela proteção do Código Florestal ao crime brutal. Das bancadas da Câmara dos Deputados, surgiu uma vaia. Vinha de alguns deputados ruralistas. A lei aprovada vai garantir a anistia de quem desmatou até 2008. Isso beneficia vários agricultores do Brasil que tentam regularizar sua propriedade, mas também ajuda alguns madeireiros e carvoeiros ilegais, como os que invadiam a reserva extrativista de Nova Ipixuna. Na semana passada, quem ameaçava o casal Silva teve motivos para comemorar.
Outros mártires ambientais -
* Chico Mendes - Dezembro de 1988
* Dorothy Stang - Fevereiro de 2005
* Dionísio Ribeiro - Fevereiro de 2005
Revista ÉPOCA - 30 de maio de 2011
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