O Estado de S.Paulo
Já há alguns anos o autismo tem representado uma grave crise pública nos Estados Unidos. O caráter emergencial aumentou no fim de março, quando um respeitado estudo relatou que a possibilidade de uma criança ser diagnosticada com autismo aumentou em 20%. De acordo com o estudo, uma em cada 88 crianças foi diagnosticada com autismo em 2008. Dois anos antes, a proporção era de uma criança a cada 110. Em 2002, o diagnóstico era dado a uma em cada 155 crianças.
Ninguém sabe se o rápido aumento na incidência desse diagnóstico decorre do fato de a doença ter perdido seu estigma social, de o chamado "espectro" do distúrbio ter sido alargado, ou de um número cada vez maior de pessoas realmente apresentarem autismo. (Alguns países têm maneiras mais indiretas de lidar com a doença. Na Coreia do Sul, quando os médicos encontram o distúrbio, eles o atribuem à negligência e ao abuso por parte dos pais. Assim, as crianças são poupadas de um temível estigma.) A causa por trás da crescente incidência do autismo não importa tanto. Os pais estão aterrorizados.
Em 1998, um médico britânico chamado Andrew Wakefield publicou um estudo numa importante revista científica de medicina afirmando que certas vacinas dadas durante a infância causavam o autismo. O resultado foi um grande movimento de pais que se recusaram a vacinar os filhos. Embora a pesquisa de Wakefield tenha sido totalmente desacreditada e suas afirmações, refutadas - entre outras, pela própria revista que as publicou -, o movimento contra a vacinação continua a prosperar com a força de um culto. Um conhecido meu, crítico, romancista e poeta extremamente talentoso, ainda se recusa a vacinar os filhos pequenos. Em vez disso, ele e a mulher levam as crianças nas viagens que fazem pelo mundo, conhecendo lugares onde doenças já eliminadas no Ocidente ainda sobrevivem.
Uma criança autista pode partir o coração de pais amorosos, trazer sofrimento aos irmãos, acabar com os laços que unem as famílias. Corremos o risco de parecer levianos na tentativa de refletir a respeito do significado cultural da doença. Mas a incrível vulnerabilidade sentida agora pelos pais pede para ser analisada num contexto mais amplo.
O espectro do autismo é bastante amplo, com crianças com incapacidade na fala ou no funcionamento mental num dos extremos, e aquelas no outro extremo sofrendo da síndrome de Asperger, um quadro altamente funcional caracterizado pela obsessão por objetos como trens e aspiradores de pó, pela dificuldade na interação social e pela incapacidade de ler as emoções dos demais. Mas os dois traços partilhados por crianças de todo o espectro do autismo são uma facilidade radical para a distração e a falta de empatia. Por acaso, estas são qualidades que hoje afligem a população em geral.
Faz cerca de 60 anos que assistir televisão se tornou um modo de vida, mas a consciência leva certo tempo para ser transformada. Somente agora estamos sentindo os efeitos decorrentes de mergulhar a cabeça numa tela, de sermos reduzidos a receptores passivos de ondas de inanidade, de termos a atenção puxada para lá e para cá por imagens em rápida sucessão. Cada vez mais vejo-me conversando com pessoas que começam a assoviar para si mesmas enquanto estou falando. (É claro que isto pode ser decorrência da qualidade do meu papo; este tema fica para outra coluna.) Cada vez mais ouvimos falar no aumento do número de divórcios, assassinatos em massa em escolas e ambientes de trabalho, ou simplesmente nas sociopatias mais mundanas, como a ingratidão e a traição. Assustadoramente, as propriedades clínicas do autismo parecem ser a vanguarda de uma epidemia oculta e mais comum.
Poderíamos dizer que a internet cumpriu a promessa anômica da televisão. O afastamento das demais pessoas tem agora uma estrutura que se sustenta sozinha: podemos estar ao mesmo tempo sozinhos e acompanhados pelos outros. Na internet, a distração absoluta se assemelha ao envolvimento absoluto. E, quando estamos na rede, a falta de empatia é um estado de espírito que permeia tudo. Um número cada vez maior de pessoas parece tentado, pela tela e pela solidão, a maldizer, aterrorizar e até destruir outros que estão presentes no mundo online apenas como fantasmas, como projeções da atormentada imaginação de outrem.
É claro que não estou dizendo que existe um elo entre a TV, os computadores e o autismo. Está se tornando cada vez mais evidente que o autismo e os distúrbios a ele relacionados têm a ver com um gene defeituoso, com uma trágica falha na estrutura genética que nada tem a ver com o ambiente nem com o histórico genético dos pais. E, no mínimo, a crescente incidência do autismo tem a ver com a aplicação desse diagnóstico a um comportamento que era antes considerado apenas estranho ou excêntrico. De acordo com a definição clínica atual, Dom Quixote, Werther e Pierre Bezukhov, personagem de Tolstoi, eram todos portadores de Asperger. Provavelmente, 80% dos personagens de Dickens existem em algum ponto do espectro do autismo.
Mas o que se tornou claro é que o autismo é a contraparte patológica de um fenômeno sociológico. Se ambas as realidades contêm algo além de uma coincidência, ou se são atributos significativos de uma sociedade em transformação, é um segredo que, por enquanto, permanece trancado no futuro.
Já há alguns anos o autismo tem representado uma grave crise pública nos Estados Unidos. O caráter emergencial aumentou no fim de março, quando um respeitado estudo relatou que a possibilidade de uma criança ser diagnosticada com autismo aumentou em 20%. De acordo com o estudo, uma em cada 88 crianças foi diagnosticada com autismo em 2008. Dois anos antes, a proporção era de uma criança a cada 110. Em 2002, o diagnóstico era dado a uma em cada 155 crianças.
Ninguém sabe se o rápido aumento na incidência desse diagnóstico decorre do fato de a doença ter perdido seu estigma social, de o chamado "espectro" do distúrbio ter sido alargado, ou de um número cada vez maior de pessoas realmente apresentarem autismo. (Alguns países têm maneiras mais indiretas de lidar com a doença. Na Coreia do Sul, quando os médicos encontram o distúrbio, eles o atribuem à negligência e ao abuso por parte dos pais. Assim, as crianças são poupadas de um temível estigma.) A causa por trás da crescente incidência do autismo não importa tanto. Os pais estão aterrorizados.
Em 1998, um médico britânico chamado Andrew Wakefield publicou um estudo numa importante revista científica de medicina afirmando que certas vacinas dadas durante a infância causavam o autismo. O resultado foi um grande movimento de pais que se recusaram a vacinar os filhos. Embora a pesquisa de Wakefield tenha sido totalmente desacreditada e suas afirmações, refutadas - entre outras, pela própria revista que as publicou -, o movimento contra a vacinação continua a prosperar com a força de um culto. Um conhecido meu, crítico, romancista e poeta extremamente talentoso, ainda se recusa a vacinar os filhos pequenos. Em vez disso, ele e a mulher levam as crianças nas viagens que fazem pelo mundo, conhecendo lugares onde doenças já eliminadas no Ocidente ainda sobrevivem.
Uma criança autista pode partir o coração de pais amorosos, trazer sofrimento aos irmãos, acabar com os laços que unem as famílias. Corremos o risco de parecer levianos na tentativa de refletir a respeito do significado cultural da doença. Mas a incrível vulnerabilidade sentida agora pelos pais pede para ser analisada num contexto mais amplo.
O espectro do autismo é bastante amplo, com crianças com incapacidade na fala ou no funcionamento mental num dos extremos, e aquelas no outro extremo sofrendo da síndrome de Asperger, um quadro altamente funcional caracterizado pela obsessão por objetos como trens e aspiradores de pó, pela dificuldade na interação social e pela incapacidade de ler as emoções dos demais. Mas os dois traços partilhados por crianças de todo o espectro do autismo são uma facilidade radical para a distração e a falta de empatia. Por acaso, estas são qualidades que hoje afligem a população em geral.
Faz cerca de 60 anos que assistir televisão se tornou um modo de vida, mas a consciência leva certo tempo para ser transformada. Somente agora estamos sentindo os efeitos decorrentes de mergulhar a cabeça numa tela, de sermos reduzidos a receptores passivos de ondas de inanidade, de termos a atenção puxada para lá e para cá por imagens em rápida sucessão. Cada vez mais vejo-me conversando com pessoas que começam a assoviar para si mesmas enquanto estou falando. (É claro que isto pode ser decorrência da qualidade do meu papo; este tema fica para outra coluna.) Cada vez mais ouvimos falar no aumento do número de divórcios, assassinatos em massa em escolas e ambientes de trabalho, ou simplesmente nas sociopatias mais mundanas, como a ingratidão e a traição. Assustadoramente, as propriedades clínicas do autismo parecem ser a vanguarda de uma epidemia oculta e mais comum.
Poderíamos dizer que a internet cumpriu a promessa anômica da televisão. O afastamento das demais pessoas tem agora uma estrutura que se sustenta sozinha: podemos estar ao mesmo tempo sozinhos e acompanhados pelos outros. Na internet, a distração absoluta se assemelha ao envolvimento absoluto. E, quando estamos na rede, a falta de empatia é um estado de espírito que permeia tudo. Um número cada vez maior de pessoas parece tentado, pela tela e pela solidão, a maldizer, aterrorizar e até destruir outros que estão presentes no mundo online apenas como fantasmas, como projeções da atormentada imaginação de outrem.
É claro que não estou dizendo que existe um elo entre a TV, os computadores e o autismo. Está se tornando cada vez mais evidente que o autismo e os distúrbios a ele relacionados têm a ver com um gene defeituoso, com uma trágica falha na estrutura genética que nada tem a ver com o ambiente nem com o histórico genético dos pais. E, no mínimo, a crescente incidência do autismo tem a ver com a aplicação desse diagnóstico a um comportamento que era antes considerado apenas estranho ou excêntrico. De acordo com a definição clínica atual, Dom Quixote, Werther e Pierre Bezukhov, personagem de Tolstoi, eram todos portadores de Asperger. Provavelmente, 80% dos personagens de Dickens existem em algum ponto do espectro do autismo.
Mas o que se tornou claro é que o autismo é a contraparte patológica de um fenômeno sociológico. Se ambas as realidades contêm algo além de uma coincidência, ou se são atributos significativos de uma sociedade em transformação, é um segredo que, por enquanto, permanece trancado no futuro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário