Perdoar não é só questão de generosidade. Nem é fácil. A história daquela senhora sempre me impressionou. O marido a abandonou, deixando para trás uma casa cheia de contas para pagar e dois filhos pequenos. Ela podia ter se descabelado, entrado em depressão ou deixado a peteca cair com aquela responsabilidade toda. Que nada.Manteve a tranqüilidade até quando soube que o ex-marido estava casado com outra mulher, com quem teve mais filhos. Quando o ex-marido morreu, deixou também a segunda família à míngua. A senhora foi até lá e pegou os outros filhos do ex-marido para criar. Ela perdoou a traição e seguiu em frente. Ainda bem, senão eu não estaria escrevendo este texto aqui hoje. Essa velhinha é a minha bisavó, que viveu até os 93 anos, tempo suficiente para deixar para os bisnetos um exemplo claro de que perdoar vale, sim, a pena.
Sabe por quê? Porque o perdão é uma ferramenta necessária para a evolução da humanidade. No século passado, a França brigou com a Inglaterra, que lutou contra a Alemanha, que guerreou com os Estados Unidos, que bombardearam o Japão, que atacou a China, que teve rusgas com a Rússia. E nem por isso o mundo parou – graças ao perdão. Claro, há interesses bem concretos que ajudam a explicar por que um país não corta relações com o outro. Mas a mágoa, quando fica, acaba servindo de desculpa para novas guerras. E as nações, se ficam isoladas, progridem mais devagar ou simplesmente não evoluem.
Entre as pessoas ocorre coisa parecida. Com o perdão, o conflito é superado e a vida continua – em outra sintonia, mais leve e melhor. Não é só uma questão de generosidade, embora ela seja bem importante. É questão de admitir que todos erram, às vezes sem intenção, às vezes por pura fraqueza. E saber que, concedendo o perdão, você tem muito a ganhar, inclusive do ponto de vista de seu bemestar emocional e físico.
Oferecer a outra face
Nas religiões, a idéia de perdoar é bem antiga – apareceu antes mesmo do cristianismo. “Dentro do velho judaísmo, as doenças eram vistas como conseqüência do pecado de alguém da família, que podia ser perdoado por Deus”, diz o teólogo e padre católico Edélcio Serafim Ottaviani. Hoje, o ato de perdoar, para os judeus, não é exclusividade divina, mas continua sendo central na religião. “No Yom Kippur, o Dia do Perdão, a gente jejua e faz uma manifestação de remorso pelo que fizemos de errado. É o dia mais importante do calendário judeu, porque é impossível viver sem perdão”, diz o rabino Henry Sobel, presidente do rabinato da Congregação Israelita Paulista. “Antes de pedir perdão a Deus na sinagoga, temos a obrigação de pedir perdão aos nossos semelhantes. Deus perdoa somente quando nós perdoamos uns aos outros”, afirma.
No catolicismo, que herdou parte da doutrina judaica, o perdão está em uma das principais orações repetidas pelos fiéis, o pai-nosso: “Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tenha ofendido”. Mesmo assim, é mais comum encontrar um católico pedindo perdão a Deus do que oferecendo perdão a um vizinho briguento. Os cristãos ensinam que, para quem pede perdão, é indispensável o arrependimento sincero. “Não basta admitir superficialmente as próprias faltas e ser perdoado, é preciso também fazer um ato de ressarcimento, a penitência, que relembre o pecador da gravidade de sua falta”, diz o padre Edélcio. Para quem perdoa, a generosidade é indispensável – até para oferecer a outra face.
Nas religiões orientais, como o budismo, o perdão é mais humanizado, porque as fraquezas humanas são consideradas parte do jogo. “Todos nós somos entes profanos. Temos que nos aceitar uns aos outros com nossas mazelas”, diz o monge budista Ricardo Mário Gonçalves. Assim, perdoar outra pessoa também é uma forma de admitir – e assimilar – nossos próprios erros.
Na prática, seguir a ética das religiões não é tão fácil assim. “A gratidão e o perdão são sentimentos de pessoas muito nobres, que estão dispostas a compreender o outro”, diz o psiquiatra Wimer Bottura Junior, diretor científico da Associação Brasileira de Medicina Psicossomática. Haja desprendimento, se você pensar o perdão só como uma questão de ser boa-praça ou de seguir preceitos religiosos. Por isso, você não vai encontrar neste texto nenhuma frase do tipo “perdoar é simples, basta tentar”. Aprender a perdoar está na lista das tarefas complicadas, que exigem dedicação, mas que trazem aquele gostinho especial das empreitadas difíceis: leveza de espírito, alívio, paz e até benefícios para a saúde. Quer tentar?
Ira inicial
Você estava tão empolgado com aquele novo plano de vendas que contou a um colega sua brilhante idéia. E, antes que você percebesse, o tal colega foi ao chefe e apresentou o projeto como se fosse dele. O que fazer? Começando pelo começo: bote para fora a raiva. Sim, é normal sentir raiva, esse sentimento feio que tentamos esconder sempre que dá. Desabafe, grite, chore e conte para alguém de confiança, como sua mãe, seu marido ou sua namorada. Fingir que nada aconteceu e guardar a ira só para você não ajuda em nada. “Há dois tipos de raiva. Uma fica dentro de mim me remoendo e me paralisando, e a outra me impulsiona para a reação”, diz a psicóloga Adriana Carbone, de São Paulo. Esse segundo tipo é que vai ajudar a superar a sensação de ter sido enganado.
Em um segundo momento, quando a poeira tiver baixado um pouco, é hora de relembrar a história e tentar entender, tintim por tintim, o que aconteceu. É bom recordar os fatos sem se vitimizar ou demonizar a pessoa que magoou você. “Se a pessoa precisa perdoar alguém, é porque se sentiu agredida. É preciso, então, pensar: eu fui mesmo agredido ou só me senti agredido? Porque muitas vezes as pessoas se sentem agredidas sem terem sido de fato”, diz Wimer.Outra dica é dosar sua expectativa em relação aos outros. “Muitas vezes, as pessoas magoadas acham que os outros não cumprem as suas expectativas. Mas ela pode ser uma pessoa que espera demais. Assim, com freqüência os outros não vão corresponder.”
E nada de se colocar no papel de coitadinho – é preciso assumir também sua parcela de responsabilidade na tal história que tanto o chateou. “Perdoar o outro que me magoou é reconhecer em mim onde foi que eu negligenciei”, diz a psicóloga Adriana Carbone. “No geral, alguma coisa eu fiz ou deixei de fazer para que o outro fizesse o que me chateou. Se eu dei confiança demais para uma pessoa e ela abusou, não é apenas porque ela é uma traíra, mas também porque eu dei espaço.” Mas atenção: chamar a responsabilidade para si é diferente de se culpar. “Se você olha para dentro de si, naturalmente vai enxergar uma série de limitações. A partir de uma autocrítica profunda, você aumenta sua dose de autoconsciência e vai dissolvendo seus erros”, diz o monge Ricardo Gonçalves.
Muita calma nessa hora, porque esse processo pode levar algum tempo e é incômodo – nem sempre é agradável reconhecer que também deslizamos e abrimos uma brecha para que a agressão acontecesse.
Ver o outro lado
Depois que já relembrou a situação e entendeu direitinho seu papel, vale a pena dedicar um tempo para refletir sobre a atitude de quem feriu você. “Pode parecer piegas, mas tenho que enxergar as semelhanças e as diferenças entre mim e o outro, para ter uma multiplicidade de visões”, diz Adriana Carbone. É a velha história de se colocar no lugar do outro.
Foi o que fez a secretária Kelly Ramos com o motorista bêbado que a atropelou quando ela tinha 15 anos. “Fiquei sabendo que ele era bicheiro e já tinha sido preso. Fiz um esforço para pensar no lado dele. Eu não sabia o que esse homem passava, devia ser tão infeliz”, relembra. Quando ela foi aos tribunais para o julgamento do agressor, já o tinha perdoado. Ninguém se iluda: não foi de uma hora para outra. Ela admite que por um bom tempo sentia raiva do motorista, mas conseguiu superá-lo ao pensar que aquela ira toda não a levaria a lugar algum. Mesmo após perdoar o motorista, ela levou o julgamento até o fim, pois não queria que outras pessoas acabassem sob as rodas do “barbeiro” inconseqüente.
O perdão de Kelly não significa que ela tenha esquecido a gravidade do acidente. “Perdoar não é esquecer. Isso seria negar sua história de vida, perder sua realidade”, diz o psicólogo Alexandre Rivero. Também é importante perceber que o principal beneficiado é sempre aquele que perdoa – é ele quem ganha paz ao tirar o peso da mágoa de seu coração.
Kelly não esperou o motorista pedir perdão para perdoá-lo. E muitas vezes as pessoas que nos magoam não pedem perdão mesmo. Nesse caso, elas podem simplesmente nem ter se dado conta de que nos machucaram ou são simplesmente inseguras. “Algumas pessoas se sentem fragilizadas e não conseguem assumir que são um ser em construção. O problema é que, quando a pessoa está vulnerável, ela fica mais rígida e arrogante. Quando a pessoa passa uma imagem muito inatingível, por trás dessa imagem existe um medo muito grande de ser percebido como frágil”, afirma Alexandre Rivero.
Agora, vamos combinar: não é o caso de se policiar e querer perdão por tudo. Nos pequenos atrasos ou deslizes cotidianos, um pedido de desculpas resolve. Sim, preste atenção na maneira como muitos de nós usam as duas expressões, com significados ligeiramente diferentes. Perdão em geral se aplica a coisas mais sérias, que exigem uma reflexão – e uma superação – mais elaborada. Desculpas são, digamos, algo mais light. “Pedir desculpas é pedir que a culpa seja atenuada ou eliminada”, esclarece o psicólogo Antonio Carlos Amador Pereira, da PUC de São Paulo.
É bom ter em mente que, em princípio, tudo pode ser perdoado. Mas é claro que isso exige que cada um flexibilize seus limites pessoais e esqueça palavras como “nunca” ou “sempre”. Para perdoar de verdade, abra mão de preconceitos e idéias empoeiradas. “Não há nada que não possa ser perdoado, mesmo o assassinato de crianças ou as atrocidades do holocausto. O que acontece é que algumas pessoas têm mais facilidade para perdoar do que outras”, diz o psicólogo Frederic Luskin, da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. Se você não é desse grupo de pessoas superflexíveis, considere o perdão um desafio e vá em frente. E, pode reparar, em matéria de perdão, quanto maior o esforço, maior o ganho.
Lições para o futuro
Extrair ensinamentos positivos daquilo que até pouco tempo atrás parecia uma tragédia é o passo seguinte. Lembra do colega que, vamos dizer, se adiantou a você na empresa? Talvez você agora veja que precisa ser mais discreto no ambiente de trabalho ou que deve escolher melhor com quem partilhar esse tipo de informação. É assim que o trauma é superado: deixando de olhar o passado e usando o aprendizado para situações futuras. Isso não significa esquecer o que ocorreu, mas interpretar o fato de outra forma.
Mais uma vez, há algumas dicas para saber se no fundo, no fundo, o rancor já passou. Primeiro, verifique se você ainda tem raiva ou se deseja se vingar do agressor. Se a resposta for sim, ainda que discretamente, você ainda não chegou lá. Deliciar-se com a punição do outro também não é um bom indicador do perdão sincero. Se você rolou de rir quando o colega que passou a mão na sua idéia foi mandado embora, você é normal, tudo bem, mas ainda está preso ao episódio. A indiferença também não resolve. “Se a pessoa que te magoou não significa nada para você, é sinal de que você ainda não perdoou”, diz Adriana Carbone.
O ideal é que ambos, vítima e agressor, se considerem no mesmo patamar. A terapeuta familiar Maria Amália Faller Vitale, professora da PUC de São Paulo, ilustra a situação com uma metáfora: o agressor tem uma dívida moral com a vítima. Se a vítima nunca o perdoar, vai continuar sempre endividado, com uma conta impagável. “O perdão se traduz em uma ação que permite o reequilíbrio em uma relação”, diz Maria Amália. Mas essa é uma conta diferente, pois o pagamento da dívida depende do credor, e não do endividado.
E a reconciliação?
Terminada a hipoteca, cabe a você decidir se quer se reconciliar com quem o feriu. “O perdão não significa que eu vá voltar a me relacionar com a pessoa. Se ela faz coisas que não me agradam, eu me afasto”, diz o psicólogo Alexandre Rivero. “Você consegue reconhecer o perdão quando você se sente feliz com você, mesmo antes de se sentir melhor com o outro”, completa Adriana Carbone.
O teste final para saber se seu coração perdoou mesmo o agressor é, segundo a receita do psicólogo Frederic Luskin, recontar o episódio depois. Se de repente você perceber que deixou de ser a vítima coitadinha e passou a ser uma espécie de protagonista da sua própria história, alguém que enfrentou a mágoa e ainda conseguiu ficar em paz consigo mesmo, você pode acreditar que encontrou o pote de ouro atrás do arco-íris. “O perdão é uma coisa difícil, quase impossível, mas, quando eu perdoei, foi como se um anjo tivesse tirado um peso do meu coração. E ficou tudo azul”, diz Kelly, depois de ter superado a raiva por seu atropelamento.
Os benefícios não param por aí. A saúde também sorri para quem perdoa. “A falta do perdão gera mágoa e sentimentos que deixam feridas abertas dentro das pessoas. Quando falamos em perdão, falamos em fechar feridas. Há pesquisas que mostram que há pessoas com câncer que são ressentidas, com muitas mágoas”, diz o psiquiatra Wimer Bottura. Mais específico ainda, um estudo publicado por Fred Luskin mostra que quem exercita o perdão fica menos nervoso, menos estressado, tem maior vitalidade física, e, ufa, mais confiança na sua capacidade de lidar com os problemas da vida.
Na época da minha bisavó, não existia nenhuma dessas pesquisas. Mas hoje, sabendo de tudo isso, dá para desconfiar que perdoar tem algo a ver com ela ter vivido tantos anos.
Revista Vida Simples
Sabe por quê? Porque o perdão é uma ferramenta necessária para a evolução da humanidade. No século passado, a França brigou com a Inglaterra, que lutou contra a Alemanha, que guerreou com os Estados Unidos, que bombardearam o Japão, que atacou a China, que teve rusgas com a Rússia. E nem por isso o mundo parou – graças ao perdão. Claro, há interesses bem concretos que ajudam a explicar por que um país não corta relações com o outro. Mas a mágoa, quando fica, acaba servindo de desculpa para novas guerras. E as nações, se ficam isoladas, progridem mais devagar ou simplesmente não evoluem.
Entre as pessoas ocorre coisa parecida. Com o perdão, o conflito é superado e a vida continua – em outra sintonia, mais leve e melhor. Não é só uma questão de generosidade, embora ela seja bem importante. É questão de admitir que todos erram, às vezes sem intenção, às vezes por pura fraqueza. E saber que, concedendo o perdão, você tem muito a ganhar, inclusive do ponto de vista de seu bemestar emocional e físico.
Oferecer a outra face
Nas religiões, a idéia de perdoar é bem antiga – apareceu antes mesmo do cristianismo. “Dentro do velho judaísmo, as doenças eram vistas como conseqüência do pecado de alguém da família, que podia ser perdoado por Deus”, diz o teólogo e padre católico Edélcio Serafim Ottaviani. Hoje, o ato de perdoar, para os judeus, não é exclusividade divina, mas continua sendo central na religião. “No Yom Kippur, o Dia do Perdão, a gente jejua e faz uma manifestação de remorso pelo que fizemos de errado. É o dia mais importante do calendário judeu, porque é impossível viver sem perdão”, diz o rabino Henry Sobel, presidente do rabinato da Congregação Israelita Paulista. “Antes de pedir perdão a Deus na sinagoga, temos a obrigação de pedir perdão aos nossos semelhantes. Deus perdoa somente quando nós perdoamos uns aos outros”, afirma.
No catolicismo, que herdou parte da doutrina judaica, o perdão está em uma das principais orações repetidas pelos fiéis, o pai-nosso: “Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tenha ofendido”. Mesmo assim, é mais comum encontrar um católico pedindo perdão a Deus do que oferecendo perdão a um vizinho briguento. Os cristãos ensinam que, para quem pede perdão, é indispensável o arrependimento sincero. “Não basta admitir superficialmente as próprias faltas e ser perdoado, é preciso também fazer um ato de ressarcimento, a penitência, que relembre o pecador da gravidade de sua falta”, diz o padre Edélcio. Para quem perdoa, a generosidade é indispensável – até para oferecer a outra face.
Nas religiões orientais, como o budismo, o perdão é mais humanizado, porque as fraquezas humanas são consideradas parte do jogo. “Todos nós somos entes profanos. Temos que nos aceitar uns aos outros com nossas mazelas”, diz o monge budista Ricardo Mário Gonçalves. Assim, perdoar outra pessoa também é uma forma de admitir – e assimilar – nossos próprios erros.
Na prática, seguir a ética das religiões não é tão fácil assim. “A gratidão e o perdão são sentimentos de pessoas muito nobres, que estão dispostas a compreender o outro”, diz o psiquiatra Wimer Bottura Junior, diretor científico da Associação Brasileira de Medicina Psicossomática. Haja desprendimento, se você pensar o perdão só como uma questão de ser boa-praça ou de seguir preceitos religiosos. Por isso, você não vai encontrar neste texto nenhuma frase do tipo “perdoar é simples, basta tentar”. Aprender a perdoar está na lista das tarefas complicadas, que exigem dedicação, mas que trazem aquele gostinho especial das empreitadas difíceis: leveza de espírito, alívio, paz e até benefícios para a saúde. Quer tentar?
Ira inicial
Você estava tão empolgado com aquele novo plano de vendas que contou a um colega sua brilhante idéia. E, antes que você percebesse, o tal colega foi ao chefe e apresentou o projeto como se fosse dele. O que fazer? Começando pelo começo: bote para fora a raiva. Sim, é normal sentir raiva, esse sentimento feio que tentamos esconder sempre que dá. Desabafe, grite, chore e conte para alguém de confiança, como sua mãe, seu marido ou sua namorada. Fingir que nada aconteceu e guardar a ira só para você não ajuda em nada. “Há dois tipos de raiva. Uma fica dentro de mim me remoendo e me paralisando, e a outra me impulsiona para a reação”, diz a psicóloga Adriana Carbone, de São Paulo. Esse segundo tipo é que vai ajudar a superar a sensação de ter sido enganado.
Em um segundo momento, quando a poeira tiver baixado um pouco, é hora de relembrar a história e tentar entender, tintim por tintim, o que aconteceu. É bom recordar os fatos sem se vitimizar ou demonizar a pessoa que magoou você. “Se a pessoa precisa perdoar alguém, é porque se sentiu agredida. É preciso, então, pensar: eu fui mesmo agredido ou só me senti agredido? Porque muitas vezes as pessoas se sentem agredidas sem terem sido de fato”, diz Wimer.Outra dica é dosar sua expectativa em relação aos outros. “Muitas vezes, as pessoas magoadas acham que os outros não cumprem as suas expectativas. Mas ela pode ser uma pessoa que espera demais. Assim, com freqüência os outros não vão corresponder.”
E nada de se colocar no papel de coitadinho – é preciso assumir também sua parcela de responsabilidade na tal história que tanto o chateou. “Perdoar o outro que me magoou é reconhecer em mim onde foi que eu negligenciei”, diz a psicóloga Adriana Carbone. “No geral, alguma coisa eu fiz ou deixei de fazer para que o outro fizesse o que me chateou. Se eu dei confiança demais para uma pessoa e ela abusou, não é apenas porque ela é uma traíra, mas também porque eu dei espaço.” Mas atenção: chamar a responsabilidade para si é diferente de se culpar. “Se você olha para dentro de si, naturalmente vai enxergar uma série de limitações. A partir de uma autocrítica profunda, você aumenta sua dose de autoconsciência e vai dissolvendo seus erros”, diz o monge Ricardo Gonçalves.
Muita calma nessa hora, porque esse processo pode levar algum tempo e é incômodo – nem sempre é agradável reconhecer que também deslizamos e abrimos uma brecha para que a agressão acontecesse.
Ver o outro lado
Depois que já relembrou a situação e entendeu direitinho seu papel, vale a pena dedicar um tempo para refletir sobre a atitude de quem feriu você. “Pode parecer piegas, mas tenho que enxergar as semelhanças e as diferenças entre mim e o outro, para ter uma multiplicidade de visões”, diz Adriana Carbone. É a velha história de se colocar no lugar do outro.
Foi o que fez a secretária Kelly Ramos com o motorista bêbado que a atropelou quando ela tinha 15 anos. “Fiquei sabendo que ele era bicheiro e já tinha sido preso. Fiz um esforço para pensar no lado dele. Eu não sabia o que esse homem passava, devia ser tão infeliz”, relembra. Quando ela foi aos tribunais para o julgamento do agressor, já o tinha perdoado. Ninguém se iluda: não foi de uma hora para outra. Ela admite que por um bom tempo sentia raiva do motorista, mas conseguiu superá-lo ao pensar que aquela ira toda não a levaria a lugar algum. Mesmo após perdoar o motorista, ela levou o julgamento até o fim, pois não queria que outras pessoas acabassem sob as rodas do “barbeiro” inconseqüente.
O perdão de Kelly não significa que ela tenha esquecido a gravidade do acidente. “Perdoar não é esquecer. Isso seria negar sua história de vida, perder sua realidade”, diz o psicólogo Alexandre Rivero. Também é importante perceber que o principal beneficiado é sempre aquele que perdoa – é ele quem ganha paz ao tirar o peso da mágoa de seu coração.
Kelly não esperou o motorista pedir perdão para perdoá-lo. E muitas vezes as pessoas que nos magoam não pedem perdão mesmo. Nesse caso, elas podem simplesmente nem ter se dado conta de que nos machucaram ou são simplesmente inseguras. “Algumas pessoas se sentem fragilizadas e não conseguem assumir que são um ser em construção. O problema é que, quando a pessoa está vulnerável, ela fica mais rígida e arrogante. Quando a pessoa passa uma imagem muito inatingível, por trás dessa imagem existe um medo muito grande de ser percebido como frágil”, afirma Alexandre Rivero.
Agora, vamos combinar: não é o caso de se policiar e querer perdão por tudo. Nos pequenos atrasos ou deslizes cotidianos, um pedido de desculpas resolve. Sim, preste atenção na maneira como muitos de nós usam as duas expressões, com significados ligeiramente diferentes. Perdão em geral se aplica a coisas mais sérias, que exigem uma reflexão – e uma superação – mais elaborada. Desculpas são, digamos, algo mais light. “Pedir desculpas é pedir que a culpa seja atenuada ou eliminada”, esclarece o psicólogo Antonio Carlos Amador Pereira, da PUC de São Paulo.
É bom ter em mente que, em princípio, tudo pode ser perdoado. Mas é claro que isso exige que cada um flexibilize seus limites pessoais e esqueça palavras como “nunca” ou “sempre”. Para perdoar de verdade, abra mão de preconceitos e idéias empoeiradas. “Não há nada que não possa ser perdoado, mesmo o assassinato de crianças ou as atrocidades do holocausto. O que acontece é que algumas pessoas têm mais facilidade para perdoar do que outras”, diz o psicólogo Frederic Luskin, da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. Se você não é desse grupo de pessoas superflexíveis, considere o perdão um desafio e vá em frente. E, pode reparar, em matéria de perdão, quanto maior o esforço, maior o ganho.
Lições para o futuro
Extrair ensinamentos positivos daquilo que até pouco tempo atrás parecia uma tragédia é o passo seguinte. Lembra do colega que, vamos dizer, se adiantou a você na empresa? Talvez você agora veja que precisa ser mais discreto no ambiente de trabalho ou que deve escolher melhor com quem partilhar esse tipo de informação. É assim que o trauma é superado: deixando de olhar o passado e usando o aprendizado para situações futuras. Isso não significa esquecer o que ocorreu, mas interpretar o fato de outra forma.
Mais uma vez, há algumas dicas para saber se no fundo, no fundo, o rancor já passou. Primeiro, verifique se você ainda tem raiva ou se deseja se vingar do agressor. Se a resposta for sim, ainda que discretamente, você ainda não chegou lá. Deliciar-se com a punição do outro também não é um bom indicador do perdão sincero. Se você rolou de rir quando o colega que passou a mão na sua idéia foi mandado embora, você é normal, tudo bem, mas ainda está preso ao episódio. A indiferença também não resolve. “Se a pessoa que te magoou não significa nada para você, é sinal de que você ainda não perdoou”, diz Adriana Carbone.
O ideal é que ambos, vítima e agressor, se considerem no mesmo patamar. A terapeuta familiar Maria Amália Faller Vitale, professora da PUC de São Paulo, ilustra a situação com uma metáfora: o agressor tem uma dívida moral com a vítima. Se a vítima nunca o perdoar, vai continuar sempre endividado, com uma conta impagável. “O perdão se traduz em uma ação que permite o reequilíbrio em uma relação”, diz Maria Amália. Mas essa é uma conta diferente, pois o pagamento da dívida depende do credor, e não do endividado.
E a reconciliação?
Terminada a hipoteca, cabe a você decidir se quer se reconciliar com quem o feriu. “O perdão não significa que eu vá voltar a me relacionar com a pessoa. Se ela faz coisas que não me agradam, eu me afasto”, diz o psicólogo Alexandre Rivero. “Você consegue reconhecer o perdão quando você se sente feliz com você, mesmo antes de se sentir melhor com o outro”, completa Adriana Carbone.
O teste final para saber se seu coração perdoou mesmo o agressor é, segundo a receita do psicólogo Frederic Luskin, recontar o episódio depois. Se de repente você perceber que deixou de ser a vítima coitadinha e passou a ser uma espécie de protagonista da sua própria história, alguém que enfrentou a mágoa e ainda conseguiu ficar em paz consigo mesmo, você pode acreditar que encontrou o pote de ouro atrás do arco-íris. “O perdão é uma coisa difícil, quase impossível, mas, quando eu perdoei, foi como se um anjo tivesse tirado um peso do meu coração. E ficou tudo azul”, diz Kelly, depois de ter superado a raiva por seu atropelamento.
Os benefícios não param por aí. A saúde também sorri para quem perdoa. “A falta do perdão gera mágoa e sentimentos que deixam feridas abertas dentro das pessoas. Quando falamos em perdão, falamos em fechar feridas. Há pesquisas que mostram que há pessoas com câncer que são ressentidas, com muitas mágoas”, diz o psiquiatra Wimer Bottura. Mais específico ainda, um estudo publicado por Fred Luskin mostra que quem exercita o perdão fica menos nervoso, menos estressado, tem maior vitalidade física, e, ufa, mais confiança na sua capacidade de lidar com os problemas da vida.
Na época da minha bisavó, não existia nenhuma dessas pesquisas. Mas hoje, sabendo de tudo isso, dá para desconfiar que perdoar tem algo a ver com ela ter vivido tantos anos.
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