sábado, 26 de maio de 2012

Varios olhares sobre Castro Alves



Responsável pela incorporação definitiva do negro à literatura brasileira, Castro Alves viveu intensamente. Morreu jovem, mas a tempo de transformar o coração machucado em criação lírica e ocupar lugar importante na literatura brasileira.

Nascido em 14 de março de 1847, na
Bahia, aos treze anos, presencia cena que o marcaria: um escravo castigado no tronco. Em 1862, parte com o irmão para o Recife, a fim de cursar Direito. Antônio sai, José fica trancado em casa lendo, fumando e bebendo conhaque. Deprimido, suicida-se em fevereiro de 1864.

Reprovado duas vezes, Castro Alves freqüenta teatros e, num deles, encontra sua maior paixão: a atriz Eugênia Câmara. Ele está com 16 anos, ela 26. Eugênia cede aos encantos do poeta. Vão morar juntos e ele escreve a peça Gonzaga, ou A Revolução de Minas. Ao lado da luta pela Independência, coloca o que mais lhe interessa: a abolição da escravatura. Em 1867, Gonzaga estréia com êxito em Salvador. Ele sofre de ciúmes ao ver Eugênia cercada por admiradores. Cansada dos ciúmes, ela o dispensa. É o fim do romance.

7 de setembro de 1868. Diante da aristocracia paulistana, o poeta declama O Navio Negreiro, em que se dirige ao pavilhão brasileiro hasteado pelos traficantes de escravos em seus navios: Antes te houvessem roto na batalha / Que servires a um povo de mortalha! (...) Andrada! Arranca esse pendão dos ares!...

Os colegas carregam Castro Alves pelas ruas. O Gonzaga repete o êxito de Salvador. Em 11 de novembro de 1868, sai para caçar nas matas do futuro bairro do Brás. Ao saltar um riacho, a espingarda dispara e lhe atinge o calcanhar. O ferimento à-toa piora devido à tuberculose.

Os médicos o transferem para o Rio e, lá, amputam-lhe o pé. Convalesce escrevendo e ruma para a Bahia. Organiza Espumas Flutuantes. No fim de junho de 1871, piora. Pede que ponham a cama perto da janela, para ver o sol. Delira. Num momento de lucidez, ora:

"Dai-me, meu Deus, mais dois anos para escrever tudo o que eu tenho na cabeça."

Que pena, não deu tempo. Morreu em 6 de julho de 1871.

Fonte: almanaquebrasil


Castro Alves

Castro Alves (Antônio Frederico de C. A.), poeta, nasceu em Muritiba, BA, em 14 de março de 1847, e faleceu em Salvador, BA, em 6 de julho de 1871. É o patrono da Cadeira n. 7, por escolha do fundador Valentim Magalhães.

Era filho do médico Antônio José Alves, mais tarde professor na Faculdade de Medicina de Salvador, e de Clélia Brasília da Silva Castro, falecida quando o poeta tinha 12 anos.

Por volta de 1853, ao mudar-se com a família para a capital, estudou no colégio de Abílio César Borges, futuro barão de Macaúbas, onde foi colega de
Rui Barbosa, demonstrando vocação apaixonada e precoce para a poesia.

Mudou-se em 1862 para o Recife, onde concluiu os preparatórios e, depois de duas vezes reprovado, matriculou-se na Faculdade de Direito em 1864.
Cursou o 1o ano em 1865, na mesma turma que Tobias Barreto.

Logo integrado na vida literária acadêmica e admirado graças aos seus versos, cuidou mais deles e dos amores que dos estudos.

Em 1866, perdeu o pai e, pouco depois, iniciou a apaixonada ligação amorosa com Eugênia Câmara, que desempenhou importante papel em sua lírica e em sua vida.
Nessa época Castro Alves entrou numa fase de grande inspiração e tomou consciência do seu papel de poeta social.

Escreveu o drama Gonzaga e, em 1868, vai para o Sul em companhia da amada, matriculando-se no 3o ano da Faculdade de Direito de São Paulo, na mesma turma de Rui Barbosa. No fim do ano o drama é representado com êxito enorme, mas o seu espírito se abate pela ruptura com Eugênia Câmara.

Durante uma caçada, a descarga acidental de uma espingarda lhe feriu o pé esquerdo, que, sob ameaça de gangrena, foi afinal amputado no Rio, em meados de 1869.

De volta à Bahia, passou grande parte do ano de 1870 em fazendas de parentes, à busca de melhoras para a saúde comprometida pela tuberculose. Em novembro, saiu seu primeiro livro, Espumas flutuantes, único que chegou a publicar em vida, recebido muito favoravelmente pelos leitores.

Daí por diante, apesar do declínio físico, produziu alguns dos seus mais belos versos, animado por um derradeiro amor, este platônico, pela cantora Agnese Murri.
Faleceu em 1871, aos 24 anos, sem ter podido acabar a maior empresa que se propusera, o poema Os escravos, uma série de poesias em torno do tema da escravidão.
Ainda em 1870, numa das fazendas em que repousava, havia completado A cascata de Paulo Afonso, que saiu em 1876 com o título A cachoeira de Paulo, e que é parte do empreendimento, como se vê pelo esclarecimento do poeta: "Continuação do poema Os escravos, sob título de Manuscritos de Stênio."

Duas vertentes se distinguem na poesia de Castro Alves: a feição lírico-amorosa, mesclada da sensualidade de um autêntico filho dos trópicos, e a feição social e humanitária, em que alcança momentos de fulgurante eloqüência épica.
Como poeta lírico, caracteriza-se pelo vigor da paixão, a intensidade com que exprime o amor, como desejo, frêmito, encantamento da alma e do corpo, superando completamente o negaceio de Casimiro de Abreu, a esquivança de Álvares de Azevedo, o desespero acuado de Junqueira Freire.

A grande e fecundante paixão por Eugênia Câmara percorreu-o como corrente elétrica, reorganizando-lhe a personalidade, inspirando alguns dos seus mais belos poemas de esperança, euforia, desespero, saudade. Outros amores e encantamentos constituem o ponto de partida igualmente concreto de outros poemas.

Enquanto poeta social, extremamente sensível às inspirações revolucionárias e liberais do século XIX, Castro Alves viveu com intensidade os grandes episódios históricos do seu tempo e foi, no Brasil, o anunciador da Abolição e da República, devotando-se apaixonadamente à causa abolicionista, o que lhe valeu a antonomásia de "Cantor dos escravos".

A sua poesia se aproxima da retórica, incorporando a ênfase oratória à sua magia. No seu tempo, mais do que hoje, o orador exprimia o gosto ambiente, cujas necessidades estéticas e espirituais se encontram na eloqüência dos poetas. Em Castro Alves, a embriaguez verbal encontra o apogeu, dando à sua poesia poder excepcional de comunicabilidade.

Dele ressalta a figura do bardo que fulmina a escravidão e a injustiça, de cabeleira ao vento.

A dialética da sua poesia implica menos a visão do escravo como realidade presente do que como episódio de um drama mais amplo e abstrato: o do próprio destino humano, presa dos desajustamentos da história. Encarna as tendências messiânicas do Romantismo e a utopia libertária do século. O negro, escravizado, misturado à vida cotidiana em posição de inferioridade, não se podia elevar a objeto estético. Surgiu primeiro à consciência literária como problema social, e o abolicionismo era visto apenas como sentimento humanitário pela maioria dos escritores que até então trataram desse tema. Só Castro Alves estenderia sobre o negro o manto redentor da poesia, tratando-o como herói, como ser integralmente humano.

Obras: Espumas flutuantes (1870); Gonzaga ou a Revolução de Minas (1876); A cachoeira de Paulo Afonso (1876); Os escravos, obra dividida em duas partes: 1. A cachoeira de Paulo Afonso; 2. Manuscritos de Stênio (1883). Obras completas Edição do cinqüentenário da morte de Castro Alves, comentada, anotada e com numerosos inéditos, por Afrânio Peixoto, em 2 vols.

Fonte: biblio


Castro Alves (Por MANUEL BANDEIRA)

Aos quatorze dias do mês de março, no ano de 1847, nasceu Antônio de Castro Alves, na fazenda Cabaceiras, a sete léguas da vila de Curralinho, hoje cidade de Castro Alves.  Era filho do Dr. Antônio José Alves e D. Clélia Brasília da Silva Castro. Passou a infância no sertão natal, e em 1854 iniciou os estudos na capital baiana. Aos dezesseis anos foi mandado para o Recife.  Ia completar os preparatórios para se habilitar à matrícula na Academia de Direito. A liberdade aos 16 anos é coisa perigosa. O poeta achou a cidade insípida.  Como ocupava os seus dias? Disse-o em carta a um amigo da Bahia: "Minha vida passo-a aqui numa rede olhando o telhado, lendo pouco fumando muito. O meu ?cinismo? passa a misantropia. Acho-me bastante afetado do peito, tenho sofrido muito. Esta apatia mata-me. De vez em quando vou à Soledade." Que era a Soledade? Um bairro do Recife, onde o poeta tinha uma namorada.  O resultado dessa vadiagem foi a reprovação no exame de geometria. Mas em 1864 consegue o adolescente matricular-se no Curso Jurídico. Se era tido por mau estudante, já começava a ser notado como poeta Em 1862 escrevera o poema "A Destruição de Jerusalém", em 1863 "Pesadelo", "Meu Segredo", já inspirado pela atriz Eugênia Câmara, "Cansaço", "Noite de Amor", "A Canção do Africano" e outros. Tudo isso era, verdade seja, poesia muito ruim ainda.  O menino atirava alto. "A poesia", dizia, "é um sacerdócio ? seu Deus, o belo ? seu tributário, o Poeta." O Poeta derramando sempre uma lágrima sobre as dores do mundo. "É que", acrescentava, "para chorar as dores pequenas, Deus criou a afeição, para chorar a humanidade ? a poesia."  Mas, no dia 9 de novembro de 1864, ao toque da meia-noite, na sotéia em que morava, o poeta, que sem dúvida se balançava na rede, fumando muito, sentiu doer-lhe o peito, e um pressentimento sinistro passou-lhe na alma.  Pela primeira vez ia beber inspiração nas fontes da grande poesia: essa a importância do poema "Mocidade e Morte" na obra de Castro Alves. Uma dor individual, dessas para as quais "Deus criou a afeição", despertou no poeta os acentos supremos, que ele depois saberá estender às dores da humanidade, aos sofrimentos dos negros escravos (O Navio Negreiro), ao martírio de todo um continente (Vozes d"África). 

Não era mais o menino que brincava de poesia, era já o poeta-condor, que iniciava os seus vôos nos céus da verdadeira poesia. Naquela mesma noite escreve o poema, tema pessoal, logo alargado na antítese mocidade-morte, a mocidade borbulhante de gênio, sedenta de justiça, de amor e de glória, dolorosamente frustrada pela morte sete anos depois.

A versão primitiva do Poema foi conservada em autógrafo, documento precioso porque revela duas coisas: o poeta não se contentava com a forma em que lhe saíam os versos no primeiro momento da inspiração; na tarefa de os corrigir e completar procedia com segura intuição e fino gosto. 

Cotejada a primeira versão com a que foi publicada pelo poeta em São Paulo, por volta de 1868-69, verifica-se que todas as emendas foram para melhor. Baste um exemplo: o sexto verso da segunda oitava era na primeira versão "Adornada" com os prantos do arrebol, substituído na definitiva por "Que" banharam de prantos as alvoradas, verso que forma com o anterior um dístico de raro sortilégio verbal.

 "vem! formosa mulher ? camélia pálida,
Que banharam de pranto as alvoradas".

Quase a meio do curso, em 1867, o poeta, apaixonado pela portuguesa Eugênia Câmara, parte com ela para a Bahia, onde faz representar um mau drama em prosa ? "Gonzaga" ou a "Revolução de Minas".  Era sua intenção concluir o bacharelato em São Paulo, aonde chegou no ano seguinte.  A sua passagem pelo Rio assinalou-se pelos mesmos triunfos já alcançados em
Pernambuco.  Em São Paulo, nos fins de 1868, feriu-se num pé com um tiro acidental por ocasião de uma caçada, do que resultou longa enfermidade, em que teve o poeta que se submeter a várias intervenções cirúrgicas e finalmente à amputação do pé.  O depauperamento das forças conduziu-o à tuberculose pulmonar, a que sucumbiu em 1871 no sertão de sua província natal. 

Antes de regressar a ela, publicara, em 1870, o livro "Espumas Flutuantes", cantos por ele definidos como rebentando por vezes, ao estalar fatídico do látego da desgraça", refletindo por vezes "o prisma fantástico da ventura ou do entusiasmo".

Vulgarmente melodramático na desgraça, simples e gracioso na ventura, o que constituía o genuíno clima poético de Castro Alves era o entusiasmo da mocidade apaixonada pelas grandes causas da liberdade e da justiça ? as lutas da Independência na Bahia, a insurreição dos negros de Palmares, o papel civilizador da imprensa, e acima de todas a campanha contra a escravidão.  Mas este último tema não figurava nas "Espumas Flutuantes".  As composições em que o tratava deveriam formar o poema "Os Escravos", o qual teria como remate "A Cachoeira de Paulo Afonso", publicada postumamente. 

Deixava ainda o poeta outras poesias avulsas, que era seu propósito reunir em outro livro intitulado "Hinos do Equador".

Ao livro "Os Escravos" pertenceriam "Vozes dÁfrica" e "O Navio Negreiro", os dois poemas em que o poeta atingiu a maior altura de seu estro. 

O primeiro é uma soberba apóstrofe do continente escravizado, a implorar justiça de Deus. O que indignava o poeta era ver que o Novo Mundo, "talhado para as grandezas, pra crescer, criar, subir", a América, que conquistara a liberdade com formidável heroísmo, se manchava no mesmo crime da Europa.

No "O Navio Negreiro" evocava o poeta os sofrimentos dos negros na travessia da África para o Brasil. Sabe-se que os infelizes vinham amontoados no porão e só subiam ao convés uma vez ao dia para o exercício higiênico, a dança forçada sob o chicote dos capatazes.

Em Castro Alves cumpre distinguir o lírico amoroso, que se exprimia quase sempre sem ênfase e às vezes com exemplar simplicidade, como no formoso quadro do poema "Adormecida", o poeta descritivo, pintando com admirável verdade e poesia a nossa paisagem, tal em "O Crepúsculo Sertanejo", cumpre distingui-lo do épico social desmedindo-se em violentas antíteses, em retumbantes onomatopéias. 

A este último aspecto há que levar em conta a intenção pragmática dos seus cantos, escritos para serem declamados na praça pública, em teatros ou grandes salas ?, verdadeiros discursos de poeta-tribuno. E há que reconhecer nele, mau grado os excessos e o mau-gosto ocasional, a maior força verbal e a inspiração mais generosa de toda a poesia brasileira.

Fonte: jornaldepoesia
MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE
CASTRO ALVES

Por Antonio Carlos Secchin

Morri no dia 6 de julho de 1871, às três e meia da tarde, na cidade de Salvador.
Nasci no dia 14 de março de 1847, na fazenda das Cabaceiras, perto de Curralinho, cidade que hoje tem o meu nome.
Não estranhem o fato de eu começar minhas memórias pela data da morte. Diante da eternidade, não há muita diferença entre o que é princípio e o que é fim: tudo se mistura, se apaga e se acaba na roda-viva dos séculos.
Meus pais foram o doutor Antônio José Alves e dona Clélia Castro, filha de um sargento que foi um dos heróis da Independência da Bahia, conquistada em 2 de julho de 1823.
Em muitas províncias os portugueses não acataram a proclamação do Sete de Setembro, e queriam nos manter atados à Coroa lusitana.
Na Bahia, meu avô materno José Antônio da Silva Castro ajudou a derrotar o general Madeira, comandante das tropas inimigas, para assim confirmar a independência do Brasil.
Papai foi um médico famoso. Estudou na Europa, de onde enviava cartas bem românticas à minha futura mãe.
Casaram-se, e logo encomendaram a prole: José Antônio foi o primeiro; eu, Antônio, o segundo; Guilherme, o terceiro; sem esquecer João, de morte
prematura. Essa seqüência masculina só foi quebrada em 1852, com o nascimento de Elisa.
A vida na fazenda começava a ficar limitada demais para a ambição de meu pai.
No começo de 1854, fomos morar em Salvador, no solar Boa Vista. Essa casa, que marcaria de forma definitiva a minha vida, era cheia de lendas e mistérios: uma linda moça, Júlia Feital, nela foi assassinada pelo noivo, que, louco de ciúmes, a teria fulminado com uma bala de ouro.
No solar nasceram minha querida irmã Adelaide e a caçula Amélia, em 1855, empatando em 3 x 3 o jogo entre homens e mulheres.
Além de praticar a ciência, papai era dado à pintura. Em 1856, foi um dos fundadores da Sociedade das Belas-Artes da Bahia, mesmo ano em que iniciei os estudos no Colégio Sabrão.
Mas logo me transferi para o Ginásio Baiano, do doutor Abílio César Borges, futuro Barão de Macaúbas.
Para a época (1858) as idéias do doutor eram o máximo: estudávamos várias matérias ao mesmo tempo, não recebíamos castigos físicos, éramos
incentivados a participar de torneios literários.
Para mim, que já trazia o amor à arte cultivado em família, foi uma espécie de preliminar (desculpem a imodéstia) para a glória futura.
Celebrávamos principalmente as datas cívicas, e esse amor prematuro aos feitos brasileiros deixou sementes que iriam germinar na minha poesia de adulto.
Eu já gostava de falar em público, de recitar poemas que, cuidadosamente, anotava num caderninho.
Mais tarde, tive a sabedoria de dar fim a essa poesia, impedindo que os primeiros textos de Cecéu (como eu era conhecido) fossem publicados em livro.
Desse período, a péssima notícia foi a morte de mamãe, em 1859, aos 33 anos.
Desesperado, meu irmão tentou o suicídio. Não gosto de falar disso. Diferente de outros poetas, me incomodaria retratar minha mãe nos poemas. E o mano teve uma reação de louco.
Loucura e morte eram os temas da moda: eu sofri os dois na carne.
A grande mudança, que me arrancou em definitivo das indecisões e devaneios do fim da infância, se deu em 1862, quando fomos, eu e José Antônio, morar no Recife para seguir os cursos preparatórios à Faculdade de Direito. Fomos trocando de endereço até nos estabelecermos numa "república" de estudantes.
No ano seguinte publiquei no número 1 de um jornal acadêmico, A Primavera, meu primeiro poema contra a escravidão: "A canção do africano".
Devo dizer que, à época, estava repetindo o curso de geometria, pois tinha levado bomba em 1862. Como a grande maioria da humanidade, sempre tive graves problemas na hora de me entender com a matemática e seus derivados.
O consolo é que, para fazer poesia, quase nunca é preciso contar além de 12 sílabas, e esse número basta para acolher o universo inteiro.
Um grande prazer, não só meu, mas de todos os companheiros de geração, era o teatro. O divino Victor Hugo, fonte inesgotável de inspiração, já havia escrito muita coisa sobre o drama romântico. Exemplo desse drama era Dalila, de Octave Feuillet, que foi à cena
no teatro Santa Isabel com a atriz Eugênia Câmara.
Difícil descrever o impacto que a presença dela exerceu sobre mim. Digo apenas que ela foi a mulher mais importante de minha vida, a musa celeste que me arrastou, como um turbilhão, ao mais profundo fundo dos cafundós do inferno.
Mas isso é história para mais tarde: por enquanto, tenho apenas 16 anos,e corre o ano de 1864. Sou um rapaz bonito, talentoso, querido pelos colegas (apesar de me acharem orgulhoso em excesso) e marcado por duas novas perdas: a do ano letivo na Faculdade de Direito e a do meu irmão José, morto em fevereiro.
Quanto à primeira,paciência! Estive na Bahia, faltei mesmo mais do que devia, e as faltas não foram abonadas.
Mas meu irmão... Em outubro do ano anterior já dava sinais de desequilíbrio. O jeito foi mandá-lo ao Rio, a ver se melhorava. Acabou suicidando-se. Sofri, me lembrei da primeira tentativa; a segunda, desgraçadamente, dera certo. Loucura e morte se abraçaram, e comemoraram as bodas em cima do cadáver de José.
Para compensar tanto infortúnio, 1865 correspondeu a um período de grande felicidade. Repetente, já sabia as matérias do primeiro ano de Direito; sobrava-me tempo para desenvolver o projeto do livro Os escravos. Morava no bairro de Santo Amaro, em
companhia da dengosa Idalina, a quem homenageei n"As aves de arribação". Eu brincava
dizendo que estava muito bem instalado entre mortos e doidos: a casa ficava entre um
hospício e o cemitério.
Em 11 de agosto, obtive meu primeiro grande sucesso público: recitei "O século" na
sessão comemorativa da abertura dos cursos jurídicos; nove dias depois, foi a vez de "Aos
estudantes voluntários", no teatro Santa Isabel. Voluntários, é claro, da guerra do Paraguai:
até eu me alistei no Batalhão. "O século", que reservei para abrir meu livro Os escravos, é um
grito de crença na juventude e no futuro, é uma aposta na força do novo. Apesar do sangue
militar do avô materno, nunca fui um apologista da guerra. Cantei, sim, os feitos heróicos, as
batalhas vitoriosas contra a opressão - só em louvor do Dois de Julho escrevi cinco poemas.
Se acham que exagerei, saibam que num único livro de outro poeta, Félix da Cunha, há 7
poemas dedicados ao Sete de Setembro! Naquele tempo a palavra da poesia, além de ser
íntima, também devia ser cívica. Daí tantas confissões de amor à pátria num tom vibrante,
que os críticos, décadas depois, me censuraram. Mas não era com sussurros que se incendiava
o público: era com entusiasmo, dramaticidade, retórica. Eu tinha consciência de que fazia
alguns poemas para voz alta, e não para leitura com um chá no aconchego das cadeiras de
balanço. Mais tarde, num deles, lido na rua ("Pesadelo de Humaitá"), cheguei a anotar: "Não
se publica". Foram publicados... O poeta, quando muito, é o dono dos versos, mas não é
nunca o dono do destino do poema.
A guerra do Paraguai foi o último grande conflito externo que atingiu o reinado de D.
Pedro II. As lutas internas (a Cabanagem, a Sabinada, a Balaiada, a Farroupilha) já haviam
sido sufocadas e, derrotado o Paraguai, desenhou-se para o país um longo período de letárgica
e superficial tranqüilidade. Sim, porque agora o inimigo estava dentro de nós, em nossas
famílias, sorvendo o sangue e o suor de uma raça em tempos de suposta paz. Como acreditar
em paz, tendo ao lado os guerreiros negros vencidos pela escravidão? É certo que, desde 1850,
já se proibira o tráfico de escravos. Pouco antes de minha morte, eu ainda comemoraria, em
1869, a proibição da venda de seres humanos em pregão público. Mas era pouco. Para mim,
abolição e república eram palavras quase irmãs: uma puxava a outra, naturalmente. Alguns
poetas falavam mal do Governo; para eles, uma troca de Gabinete resolveria a contento a
questão. Eu não queria trocar um Gabinete: queria mudar de regime. Abaixo a monarquia!
Chamaram-me de "o poeta dos escravos", e eu me orgulho do epíteto. Acho, porém, que ele
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não diz tudo: sempre quis ser "o poeta da
liberdade". A escravidão era uma das
mazelas, talvez a mais horrenda, que
devíamos combater em prol da liberdade.
Mas, além da liberdade social, era preciso
lutar pela econômica, pela política, pela
(por que não?) afetiva... Muitos dizem que
minha obra está composta de uma parte
política e de uma parte lírica. Eu penso
que vigora sempre o mesmo amor à
humanidade, sob roupagens diversas: amor
coletivo e amor pessoal, e não saberia dizer
qual o mais importante.
Mas voltemos às minhas dores: em
1866, eu, que já era semi-órfão, tornei-me
órfão por inteiro. Assisti a morte de papai
em janeiro, na Bahia, durante as férias da
Faculdade. Procurei não transportar o
peso de tantas perdas para a minha poesia.
Particularmente, achava exagerado o gosto
pelo doentio que os poetas da geração
anterior à minha desenvolveram. Eu
queria apostar na vida, mas vivia perdendo
a aposta... De vez em quando, porém, eu
ganhava. E o prêmio, no caso, não foi pequeno: o amor de Eugênia Câmara. Após um longo
período de indecisões e recuos, que nunca soube com clareza se eram meus ou dela,
finalmente consegui arrancá-la do empresário com quem vivia, e levei-a, junto com a filha,
para morar comigo num subúrbio do Recife. Dediquei-lhe muitos poemas, alguns recitados
em público, e que, na paixão do amor ou no desespero da perda, testemunham a intensidade
da nossa relação: "Dalila", "Meu segredo", "Amemos", "O vôo do gênio", "A uma atriz",
"Fatalidade", "O adeus de Teresa", "O gondoleiro do amor". Para ela escrevi, no fim do ano, o
drama Gonzaga ou a revolução de Minas, onde falo de liberdade, escravidão, traição, paixões...
em suma, de tudo que atormentava ou deliciava minha existência, e se confundia com a
própria Eugênia, para quem, é evidente, eu havia reservado o papel principal. Sonhava vê-la
em cena interpretando meu texto com seu talento fulgurante, decerto bem superior ao da
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concorrente Adelaide Amaral, atriz aclamada pelo poeta Tobias Barreto. Durante algum
tempo, aliás, minha sina foi entrar em conflito com Tobias. Começamos como amigos -
temos inclusive poesias dedicadas um ao outro; passamos a colegas, tornamo-nos rivais e
acabamos inimigos. Intrigas pessoais e literárias. O Tobias era feio, velho, escrevia mal e
declamava pior ainda. Nos recitativos ficava nervoso, tinha um jeito desastrado, não
controlava a voz. Já eu, que possuía domínio cênico, entrava vestido de negro, com uma flor
na lapela, óleo nos cabelos, madeixas minuciosamente espontâneas e pó-de-arroz no rosto,
para parecer mais pálido. Por modéstia, não direi que freqüentemente as moças ficavam tão
próximas do delírio quanto os rapazes, da inveja. Mas nem depois de morto eu descansei do
Tobias: um historiador literário, Sílvio Romero, sergipano como o poeta, resolveu promovêlo
postumamente às minhas custas, afirmando a superioridade do conterrâneo sobre mim.
Até hoje, todos só se lembram de Barreto por isso, naturalmente para discordar de Romero
(aqui, sou o primeiro da fila).
Continuava devotado às causas sociais. Fundei, com Rui Barbosa e outros colegas da
Faculdade, uma sociedade abolicionista e participei de um comício republicano dissolvido
pela polícia, quando criei de improviso os versos de "O povo do poder". No terreno
sentimental e seria desse modo até o fim - vivia em sobressaltos. A companhia teatral de
Eugênia iria excursionar ao sul do país, e necessitava de sua maior estrela; nessas
circunstâncias, eu não poderia acompanhá-la. Para meu alívio, Eugênia rompeu com o
empresário e decidiu ficar definitivamente (até quando?) comigo. Motivado, arrematei o
Gonzaga em fevereiro de 1867 e deixei o Recife, aonde nunca mais voltaria, na direção da
Bahia, levando minha mulher e uma certeza: iríamos conseguir encenar o texto em Salvador.
Depois de curto período no hotel Figueredo, instalamo-nos no solar Boa Vista, casa
de minha infância, então semi-abandonada pela família. O impacto desse reencontro eu
registrei no poema "A Boa Vista". Ao lado de Eugênia, eu sentia minha carreira se fortalecer.
Nesse período, esbocei A cachoeira de Paulo Afonso, que só seria publicada cinco anos após meu
falecimento. Um grande sucesso foi a declamação de "Quem dá aos pobres, empresta a
Deus", numa sessão beneficente no mês de outubro, em prol das famílias dos mortos na
guerra do Paraguai. Mas a verdadeira consagração ocorreu no dia 7 de setembro, quando
finalmente subiu à cena, no teatro São João, o meu Gonzaga, tendo à frente do elenco Eugênia
e, no papel de Tomás Antônio Gonzaga o esquecido Eliziário Pinto, ator e poeta, cujo belo
"Festim de Baltazar" permaneceu como uma espécie de filho único do autor, reproduzido em
muitas antologias do começo do século XX. Pobre Eliziário, de tanto brilho naquele 7 de
setembro, e hoje sem qualquer migalha no festim da literatura...
Imaginam um autor delirantemente aplaudido após a estréia? Multipliquem por
mil, e ainda será pouco. Fui chamado à cena depois de cada ato, sob estrondosa ovação. Não
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satisfeita, a multidão carregou-me em triunfo, sobre os ombros, até minha casa. Era a glória,
mas baiana. Quem sabe eu não seria bafejado pela consagração nacional?
Decidi prosseguir os estudos de Direito, interrompidos na temporada em Salvador,
na cidade de São Paulo. Incluí no roteiro de viagem uma visita ao Rio de Janeiro, onde
tencionava conhecer nosso maior escritor, o cearense José de Alencar. Em fevereiro de 1868
já estávamos no Rio, Eugênia e eu. Munido de uma carta de apresentação, visitei Alencar,
então residindo na Tijuca, sabendo que tocava numa corda sensível do mestre: li para ele o
Gonzaga. Meu anfitrião era um obcecado pela construção de um teatro brasileiro, mesmo
tendo fracassado na tentativa. Pregava um teatro baseado em nossa História exatamente o
que eu fizera, ao invocar em meu drama a Inconfidência Mineira. A receptividade foi muito
boa, a ponto de Alencar encaminhar-me a outro talento que se firmava na literatura
fluminense: o jovem Machado de Assis, a quem visitei no domingo de carnaval. O resultado
desses encontros se traduziu nas crônicas publicadas no Correio Mercantil, a de José em 22 de
fevereiro e a de Joaquim em 1 de março, ambas muito favoráveis ao Gonzaga. Isso contribuiu
para que, em São Paulo, minha acolhida superasse toda expectativa. Lá cheguei em fins de
março. Joaquim Nabuco, bem mais tarde, diria que eu era "o eleito da mocidade" e que
representava "a dignidade e a independência das letras". Outro colega chamou-me "mais um
semideus do que um poeta". Lúcio de Mendonça, que seria o fundador da Academia
Brasileira de Letras, escreveu que quando eu me exibia à multidão "era grande e belo como um
Deus de Homero". Creio que há algum exagero nisso tudo, mas, para corresponder a tanto
carinho, ofereci à Paulicéia o melhor do que dispunha: meus versos. Em abril, compus a
"Tragédia no mar", que todos insistem em conhecer pelo subtítulo, "O navio negreiro"; eu
recitaria esses versos no dia 7 de setembro, no Grêmio Literário da Faculdade de Direito de
São Paulo. Em junho declamei, no teatro São José, a "Ode ao dous de julho", meu mais
conhecido poema sobre a data, e, no mesmo mês, escrevi "Vozes d'África". Para culminar,
Gonzaga foi representado com o maior ator da época, Joaquim Augusto.
Tudo estaria perfeito, não fossem as cada vez mais constantes desavenças com
Eugênia. Cenas violentas, ciúmes, brigas, precárias reconciliações. Sopravam-me histórias
de adultério. No entanto, sei que ela me amou, como sei que, talvez, meu amor tenha sido
insuficiente para sua paixão. Não a recrimino. Em determinado momento, largou a carreira
para me seguir. Agora me largava para seguir a si própria. Abatido, desgostoso, procurei
refúgio em algumas distrações: caçadas, por exemplo. Maldito dia de novembro, quando fui
ao Brás. Sem querer, ao transpor uma vala, acionei o gatilho e a bala se cravou no meu pé
esquerdo. Resultado: plantei ali a semente de chumbo da minha morte. Nunca me curei de
todo, e à ferida do pé se acrescentaram problemas infecciosos e pulmonares. Sem Eugênia,
prostrado ao leito em seis meses de sofrimento, disse adeus a São Paulo e fui tratar-me no Rio,
Blecaute
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em maio de 1869. Os médicos concluíram que a única alternativa seria a amputação do terço
inferior da perna, e eu concordei: ficaria com menos matéria do que o resto da humanidade.
Ainda permaneci no Rio até o fim do ano, quando decidi retornar à Bahia. Com o navio se
afastando da Guanabara, visualizei, repentinamente, duas tristezas: a da noite, que descia dos
céus, e a da solidão, que subia do oceano. Entre mar e céu, vaga e vento, brotou-me um nome,
Espumas flutuantes, para assim chamar o livro que reuniria meus poemas. Em Salvador,
aquecido pelo calor dos trópicos e da família, cheguei a sonhar que me curaria. Dediquei-me
com afinco à preparação da obra; em fevereiro de 1870 redigi o "Prólogo", em que aludi aos
tempos felizes no Sul, à transitoriedade da dor e da alegria. Fiz questão de assinalar data e
local de muitos poemas, como se, com isso, estivesse dizendo que escrevi o que a vida me
ditou, e a cada dia o ditado foi diverso.
Encarreguei o amigo Augusto Guimarães de acompanhar a publicação do livro em
seus detalhes: tipografia, papel, tiragem, e meti-me no interior da Bahia, de volta a
Curralinho, em busca de sossego mental e regeneração física. Revi Leonídia Fraga,
namoradinha de infância, que me inspirou "O hóspede". Na fazenda Santa Isabel dei por
encerrada A cachoeira de Paulo Afonso.
Retornei a Salvador em setembro. À medida que me enfraquecia, o livro ganhava
corpo: nasceu forte e belo. Em novembro despachei para o Rio os primeiros exemplares das
Espumas flutuantes. Nessa altura, a doença abandonava a marcha lenta e já galopava, feroz, no
meu corpo. Recolhi-me em definitivo ao abrigo da família, e só abri uma exceção no dia 1 de
fevereiro de 1871, quando, combalido, arranquei forças para declamar em público um poema
em solidariedade às crianças vítimas da guerra franco-prussiana. Na minha vida pessoal, fui
ainda aquinhoado com um amor diverso de todos os que até então vivera: apaixonei-me por
Agnèse Murri, viúva, jovem, linda, italiana. Professora de canto e piano da mana Adelaide, foi
a casta musa para quem compus "Noite de maio", "Versos para música", "Remorsos", "Gesso e
bronze", "Aquela mão", "Longe de ti", "Em que pensas?". Nunca foi minha, mas, na memória
inesgotável do desejo, será minha para sempre.
Seis de julho de 1871, três e vinte da tarde. Daqui a dez minutos vou morrer. Peço à
mana que me ajude a levantar da cama, quero ir à janela e ver ainda uma vez o sol. Com
grande esforço apóio-me ao parapeito; a respiração ofegante, o suor, o suor, essa dor no peito.
Imóvel, sinto que a luz do sol se escurece, ou talvez seja eu que esteja escurecendo dentro do
dia que insiste em brilhar. Três e meia. Castro Alves não existe mais.
Bem. E depois? Cada um seguiu seu rumo. Leonídia, por exemplo, se casou cinco
anos após minha morte. O solar Boa Vista virou hospício, e um dia internou uma mulher
velhinha e doida Leonídia. Quando faleceu, encontraram em seus pertences cópias
amarelecidas de versos meus. Agnèse voltou para a Itália, e hoje em dia deve estar regendo o
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coro dos querubins.
Versos publicados, esquecidos, fracassados, traduzidos, improvisados, não escritos.
Talvez a biografia de um poeta seja a soma de seus versos e a multiplicação de seus sonhos.
Em meio a tantas tempestades, ouso dizer que fui feliz. Tive a bênção de ser o último poeta a
casar povo e poesia, e já estava bem morto à época do divórcio. Por isso, se ainda quiserem
saber de mim, não me ouçam mais tratem de ouvir meus versos, porque, em minha vida, eu
afirmei:
Último trono é o poema!
Último asilo a Canção!

Antonio Carlos Secchin (Rio de Janeiro). Ensaísta, poeta e Professor de Literatura. Membro da Academia Brasileira de
Letras. Publicou: 50 Poemas Escolhidos pelo Autor (Galo Branco, 2006), Memórias de um leitor de poesia e outros ensaios
(Topbooks/ABL, 2010) entre outros. O texto acima foi publicado juntamente com antologia de Castro Alves, pela
Fundação Banco do Brasil/ Organização Odebrecht em 1997.
Fonte: Revista Blecaute

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