"Millôr, que tudo sabe, querendo saber mais.”A frase faz parte de uma ilustração do cartunista e amigo Jaguar, pregada no apartamento de Millôr Fernandes, em Ipanema, no Rio de Janeiro. Millôr, morto após sofrer um AVC na quarta-feira 28, perseguia o conhecimento. Jornalista, escritor, ilustrador, dramaturgo e tradutor, ele viveu seus 88 anos construindo sua individualidade como homem e artista. “Ganhei medalha de ouro no concurso para mim mesmo”, dizia. A começar pelo nome. Seus pais, Francisco e Maria Viola, queriam que o filho se chamasse Milton. No registro em cartório, o “n” foi confundido com um “r”, e o corte da letra “t”, com um acento circunflexo do “o”. Ainda assim, ele foi chamado de Milton até os 17 anos, quando viu sua certidão de nascimento e decidiu adotar o nome oficial. Criou-se assim um nome único, para um homem único.
Millôr obteve êxito de crítica e de público em todos os lugares e áreas por que passou. O pano de fundo de seu início de carreira foram os anos de ouro da intelectualidade carioca. Ele conviveu com alguns dos maiores pensadores e artistas: Vinicius de Moraes, Nelson Rodrigues, Paulo Francis. Todos estavam apenas começando. Em 1938, aos 15 anos, conseguiu emprego na revista A Cigarra, após vencer um concurso de crônicas. Um dia, a revista ficou com um buraco, devido à desistência de um anunciante. Já ciente do talento do jovem para o humor, o editor Francisco Chateaubriand pediu que ele ocupasse as páginas. Livremente. Millôr assinou Vão Gogo e ganhou o espaço. Em pouco tempo, era diretor de redação.
Daí, não parou mais. Em 1941, sua coluna “Pif Paf”, no auge da revista O Cruzeiro, fez história. Mas o humor que lhe rendeu o sucesso também lhe custou o emprego. Numa sátira de 1963, criticou a obra divina (Essa pressa leviana/Demonstra o incompetente/Fazer o mundo em sete dias/Com a eternidade pela frente). Millôr nunca se cansou de falar de sua descrença – que teve origem na morte precoce do pai e da mãe. Millôr ainda foi um dos pais do lendário O Pasquim. Depois de trabalhar na televisão e escrever para o teatro – colecionando prêmios –, juntou-se a outros jornalistas para desafiar a ditadura militar. Em 1970, chegaram à tiragem de 200 mil exemplares. Naquele ano, quase toda a equipe foi presa. Millôr, livre, assumiu a direção do jornal e manteve todas as seções, escrevendo no estilo dos colegas. Coisa de gênio. Gênio, aliás, talvez seja uma palavra gasta em tempos de superlativos exagerados. Mas é como o classificam todos os que conviveram com ele. Um frasista sem qualquer esforço, um emissor de opiniões sempre originais. “Millôr acreditava na inteligência de seu público”, disse a crítica Barbara Heliodora. No dia seguinte a sua morte, seus 285 mil seguidores no Twitter repetiram suas frases à exaustão. “O otimista não sabe o que o espera”; “Brasil, um filme pornô com trilha de bossa nova”; “Como são admiráveis as pessoas que nós não conhecemos bem” – foram algumas.
Millôr foi tradutor de Shakespeare e afirmava ter inventado o frescobol – segundo ele, o único esporte sem vencedor. Àvido leitor de gibis quando garoto, dizia que essa fora sua “maior influência intelectual”. Tudo era fonte e matéria-prima para sua ação. O mundo era seu playground, sua tela, sua página em branco. “Eu também não sou um homem livre”, disse ele. “Mas muito poucos estiveram tão perto.”
Revista Época
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