domingo, 6 de maio de 2012

Te Contei, não ? - Quando a História vem à tona




Turistas, atletas e delegações estrangeiras ainda demoram a chegar, mas as Olimpíadas de 2016 já estão trazendo dividendos para a cidade do Rio de Janeiro. Em fevereiro deste ano, escavações feitas na Rua Sacadura Cabral, realizadas por conta do projeto Porto Maravilha, um conjunto de obras destinadas à revitalização da antiga Zona Portuária do Rio de Janeiro, operários da prefeitura descobriram três canhões no local.
As peças de artilharia pesada, muito semelhantes entre si, têm em média de 1,5 m a 1,7 m de comprimento e foram recolhidas pelo Patrimônio Histórico do Município, onde serão estudadas, tratadas e conservadas para, depois, serem expostas ao público em data ainda não marcada.

SURPRESA EM DOSE TRIPLA
O achado surpreendeu até os arqueólogos do Museu Nacional que fazem o monitoramento das obras. Por conta de um dispositivo legal, que exige a presença de profissionais do setor de Arqueologia quando são realizadas escavações próximas a um sítio de importância histórica, a equipe coordenada pela professora Tânia Andrade Lima, antropóloga do Museu Nacional, nem sonhava encontrar os canhões naquela área. "A descoberta foi absolutamente surpreendente e inusitada. Até porque nunca se soube da existência de nenhuma fortificação nas imediações", diz a antropóloga Tânia, responsável pelo monitoramento arqueológico das obras do Porto Maravilha.

Ainda existe muito estudo a ser feito para comprovar o fato, mas é bem possível que os canhões tenham mais de 400 anos, acredita Adler Omero, historiador do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), do Rio de Janeiro. Ao que tudo indica, as peças são de origem inglesa e do século 17. Mas existe uma possibilidade de serem do século 16, o que os tornaria os mais antigos do Brasil, informam os pesquisadores. "Do Rio de Janeiro, com certeza, são os mais remotos", constata a arqueóloga.

DISTANTES DA COSTA
O achado surpreendeu também pelo número dos canhões encontrados. "Temos registros que na cidade do Rio de Janeiro existiam, aproximadamente, 50 canhões para defender a orla marítima. Imagine, então, encontrar logo três em uma região que aparentemente não existiria nenhum", diz a professora Tânia.
A hipótese mais provável é que as peças fizessem parte de uma bateria do século 17 que existia nas imediações da Prainha, no bairro da Saúde. "Naquela época, o mar chegava até onde foram achados os canhões. Hoje a orla está mais distante, pois o mar recuou devido aos sucessivos aterros feitos para a construção do porto e por outras obras na reurbanização da cidade", supõe Tânia.

Os canhões também devem ter sido simplesmente despejados no mar depois de uma vida útil que dura, em média, 100 anos. "Cada um pesa em torno de 800 quilos a 1 tonelada. Seria uma dificuldade enorme transportá-los para outro lugar depois de desativados. O mais provável (e fácil) é que tenham sido lançados ao mar", diz ela.

A ORLA DO SÉCULO 17
As suposições dos arqueólogos e historiadores não são frutos de meras especulações, mas de fatos historicamente comprovados. As descobertas foram realizadas em uma das regiões mais antigas e históricas do Rio de Janeiro: o antigo bairro da Saúde que se estendia da Prainha, atual Praça Mauá, até a Gamboa.

Na faixa arenosa ao longo da orla, entre os morros da Conceição e do Livramento, atravessada pela Pedra da Prainha, atual Pedra do Sal, havia um caminho conhecido como São Francisco da Prainha. Com o passar do tempo, o caminho virou Rua da Saúde que depois foi renomeada como Rua Sacadura Cabral.

O cais de Valongo foi a porta de entrada para os últimos
africanos escravizados no Brasil. Estima-se que por ele
tenham passado cerca de 900 mil negros

Em 1704, o padre Francisco da Mota doou um trapiche (espécie de porto) à Ordem Terceira da Penitência ao pé do Morro da Conceição, à margem da Rua Sacadura Cabral. Em 1711, entretanto, durante a invasão francesa, o trapiche foi destruído. Após a invasão, houve a necessidade de instalar canhões em um local alto o suficiente para proteger o trecho da orla marítima que se estendia do Valongo à Praça Mauá (antigo cais do porto). Por isso, algumas fortificações foram construídas, entre elas a Fortaleza da Conceição.

AS PEDRAS DO CAIS
Mas o encontro com os canhões não foi a única surpresa dos arqueólogos do Museu Nacional. Durante as escavações para a drenagem portuária ocorridas em abril do ano passado, a mesma equipe comandada pela arquevestígios de dois cais, um construído em cima do outro.

O tesouro arqueológico estava escondido sob a Avenida Barão de Tefé na Zona Portuária há pelo menos cem anos. Primeiro, surgiu o Cais da Imperatriz, construído para receber Tereza Cristina quando chegou ao Brasil para se casar com o imperador Dom Pedro II, em 1843.

A pavimentação do cais estava bastante danificada por conta de obras viárias feitas anteriormente. Porém, mais ou menos a 60 cm abaixo desse primeiro sítio, os arqueólogos descobriram os vestígios do Cais do Valongo que, entre 1811 e 1831, transformou-se no ponto de chegada de centenas de milhares de africanos que eram vendidos para outras regiões do país.

Entretanto, ao contrário do que foi anunciado em abril de 2011, a descoberta dos dois cais não foi tão surpreendente como aconteceu com os canhões: "Já desconfiávamos da existência do Cais da Imperatriz naquela região. Por isso, antes do início das obras no antigo porto, apresentamos um projeto ao Iphan, não de monitoramento, mas de escavação do possível sítio arqueológico. Depois de aprovado, começamos a monitorar os trabalhos e, realmente, o Cais da Imperatriz estava lá, na área em que havia sido mapeado", revela a pesquisadora.

A HISTÓRIA SOTERRADA
Os arqueólogos e historiadores sabiam da existência do Valongo, mas desconheciam sua localização exata, até porque o local foi literalmente soterrado na época da construção do Cais da Imperatriz: "Aconteceu ali um enorme processo de apagamento da história da escravidão, na medida em que o Valongo, com uma área de 2 mil metros quadrados, ficou debaixo de quase um metro de terra e entulho", explica Tânia.

O Cais do Valongo foi construído em 1811 e se tornou o maior porto de entrada de escravos de todo o continente americano. Calcula-se que cerca de 1 milhão de escravos chegaram ao Brasil por esse cais.

"O complexo do Valongo foi criado para tirar os negros do centro do Rio, onde eram vendidos na Rua Direita. Os escravos eram vistos como ameaça à saúde, carregadores de doenças e um perigo à ordem pública", explica o historiador Cláudio Honorato, autor do estudo Valongo: o Mercado de Escravos do Rio de Janeiro (Universidade Federal Fluminense, UFF, 2008).

O CEMITÉRIO DOS PRETOS NOVOS
Em pouco tempo, o local se transformou em um dos mais movimentados do Rio, pois mantinha mais de 50 casas onde os negros recém-chegados viviam amontoados, em condições desumanas, antes de serem vendidos. O tráfego era intenso não só pelo aumento da demanda de mão de obra escrava para a construção da nova cidade imperial, mas também por causa da extração do ouro vindo de Minas Gerais ou para a agricultura cafeeira no Estado de São Paulo e também pelo alto índice de mortalidade entre os escravos.

Depois das chuvas, o cheiro no Cemitério dos Pretos Novos
sepultados à flor da terra era tão horrível que, por resolução
das autoridades locais, o local foi aterrado

Após 60 dias de viagem pelo mar, os africanos exaustos e doentes ainda tinham de enfrentar a falta de comida, de roupas e de moradia apropriadas, o que resultava em um verdadeiro massacre, com muitos deles mortos antes mesmo de serem vendidos. Calcula-se que mais de 4% dos escravos morriam no primeiro momento, entre o desembarque, a quarentena e a exposição no mercado, vítimas da combinação de fraqueza pela viagem, doenças e castigos físicos.

Eram tantos os mortos que foi preciso designar nas imediações um local para enterrá-los. O destino final dos que não resistiam aos sofrimentos da viagem era o Cemitério dos Pretos Novos, como ficou conhecida uma área de 110 m2, situada no antigo caminho da Gamboa, conhecida como a Rua do Cemitério, mais tarde, como Rua da Harmonia e, hoje, como Rua Pedro Ernesto. Os pesquisadores calculam que o cemitério abrigou mais de 20 mil corpos até ser fechado em 1830, por causa de reclamações da vizinhança que temia o cheiro exalado pelos cadáveres que ficavam à flor da terra.

Para facilitar o trabalho, os canhões, que pesavam quase
uma tonelada cada um, depois de desativados eram simplesmente
lançados ao mar para evitar uso indevido

DISCURSO SILENCIOSO
A descoberta revelou muito mais do que as pedras lavradas do calçamento de seu cais. Com o trabalho de escavações, foram encontrados milhares de pequenas peças, guardadas no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). São búzios, cachimbos, pedrarias, louças, ornamentos e uma infinidade de objetos que contam parte da história dos escravos que chegaram naquele local.

"Na literatura arqueológica, esses objetos pessoais são chamados de 'os invisíveis', pois contam as histórias das pessoas, falam de suas angústias e temores, de seus medos e sofrimentos. Os amuletos, por exemplo, eram os últimos recursos desesperados para a proteção do corpo sofrido e da vida de cada um dos escravos que passaram por lá", relata a arqueóloga Tânia Andrade Lima.

Como não tinham nada de seu, precisavam fazer algo para si mesmos. Um pedaço de vidro achado por acaso era trabalhado, reutilizado e transformado para fazer as vezes de navalha para se barbearem. "E por aí os escravos contaram suas histórias, em um discurso silencioso. Foi o que deixaram de herança para os seus descendentes depois de 200 anos de silêncio", finaliza Tânia.


Revista Leituras da História

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