"Se eu perdesse a voz, estaria morto.” A entrevista do ex-presidente ao jornal Folha de S.Paulo dá a medida do drama que Lula viveu nos últimos seis meses. É um depoimento dramático, emocionado, a seu estilo. Sobre o tratamento: “Eu vim com um tumor de 3 centímetros e de repente estava recebendo uma bomba de Hiroshima dentro de mim. Preferia entrar em coma”. Sobre a morte: “Tem gente que fala que não tem medo de morrer, mas eu tenho. Se eu souber que a morte está na China, vou para a Bolívia”.
A voz, mais que o olhar, é fundamental para persuadir o outro, diz o psicanalista Joel Birman. “Para um líder político, a voz é ainda mais que isso. É um instrumento insubstituível para tocar as emoções, os sentimentos e os desejos do interlocutor e da massa.” Do ponto de vista simbólico e real, a perda da voz seria a perda da condição de liderança de Lula. Pelo ângulo da psicanálise, diz Birman, “perder a voz seria para Lula uma experiência de castração absoluta”. Ele se tornaria “um morto-vivo”.
O presidente que cometeu mais gafes na história do Brasil conseguia quase sempre roubar a cena ao abrir a boca. Num palanque regional ou num congresso internacional. Para políticos administradores, de gabinete, a voz não tem esse poder, é mais acessória. Para Lula, um presidente com 80% de popularidade, é diferente. Sua voz rouca, com erros de português, metáforas de futebol e piadas do povão, era o elo com a massa, na versão do sindicalista exaltado ou do lulinha paz e amor. O Brasil teve outros oradores inflamados. Carlos Lacerda foi um deles, mas se expressava com vigor também pela escrita. Lula não. Exerce uma liderança oral.
A maioria da população brasileira não domina a palavra escrita. O brasileiro lê em média quatro livros por ano – e não todos por inteiro. Num país assim, a voz é hipervalorizada como capital político. “A fala é todo-poderosa num país com tantas carências na educação. Vivemos, entre aspas, um analfabetismo nacional”, diz Birman.
Fiquei feliz com a ausência de tumor e o início da recuperação de Lula – como, imagino, se sentiram todos os homens e mulheres de boa vontade. Fernando Henrique Cardoso o visitou, em ato humano e de solidariedade, muito acima das divergências comezinhas, ideológicas e políticas. Para o Brasil das patrulhas burras e estreitas, é instrutivo ver Lula e FHC num aperto de mãos com sorrisos.
Uma de minhas colunas, em 2010, era dirigida a Lula. O título perguntava: “Por que não te calas?”. Traduzia meu incômodo com sua mania de tratar ditaduras de esquerda com mais benevolência que ditaduras de direita. Em visita a Cuba, Lula dissera, sobre os presos políticos dos irmãos Castro: “A greve de fome não pode ser utilizada como pretexto de direitos humanos para liberar as pessoas. Imagine se todos os bandidos presos em São Paulo entrarem em greve de fome e pedirem liberdade”.
Quando Lula adoeceu e ficou ameaçado de perder a voz, calando-se para sempre, o país ficou triste. Eu também. O silêncio que eu pedira ao então presidente era apenas o comedimento, o respeito a seus princípios. A maior gafe verbal de seu governo foi a defesa atabalhoada que fez de José Sarney, que “não poderia ser julgado como homem comum”. Logo Lula, o líder das pessoas comuns.
Lula sempre falou demais. E, por vezes, renegou seu passado de luta pela liberdade em nome do pragmatismo. Acusado de incoerência ao defender com paixão a volta da CPMF, imposto que chamara de roubo quando estava na oposição, Lula admitiu que era, sim, uma “metamorfose ambulante”. Em outros momentos, apoiei a verve abrasiva de Lula. No Nordeste, em comício, ele prometeu saneamento básico para “tirar o povo da ‘m...’”. Essa é uma boa luta.
É uma boa notícia para todos que Lula tenha recuperado a voz e se sinta curado. Principalmente para Fernando Haddad, mais mudo sadio que Lula doente. Lula disse que sua maior felicidade será o dia em que puder “comer pão com aquela casca dura”. Mas será feliz mesmo quando convencer Marta Suplicy a entrar na campanha de Haddad para a prefeitura de São Paulo.
A voz de Lula me lembrou um clássico do jornalista Gay Talese: o perfil de Frank Sinatra, escrito para a Esquire. “Sinatra resfriado é Picasso sem tinta, Ferrari sem combustível – só que pior. Porque despoja Sinatra de uma joia que não dá para pôr no seguro – a voz dele.” Em Sinatra, a falta da voz “mina as bases de sua confiança e afeta não apenas seu estado psicológico, mas parece provocar uma contaminação psicossomática que alcança dezenas de pessoas que trabalham para ele, bebem com ele, gostam dele, pessoas cujo bem-estar e estabilidade dependem dele.” Se substituirmos Sinatra por Lula, o texto de Gay Talese se torna brasileiro e atual.
Revista Época
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