quinta-feira, 10 de maio de 2012

Resenha - O garoto problema da ficcção




 A ficção brasileira atual se caracteriza pela alta produtividade de autores. Eles são fascinados pela violência pop e autocomplacentes com o próprio texto, escrito às pressas. Nesse canteiro de obras, ou de letras, juntam-se o romance urbano jovem e a literatura hip-hop da periferia. Ao lado dos escritores da moda, mantém-se a linhagem dos autores acadêmicos, zeladores do idioma. O carioca Paulo Lins parece não pertencer a nenhuma das searas. Seus temas são as comunidades excluídas, fato que o aproxima do primeiro grupo. Mas seu estilo segue os preceitos da correção do estilo. Lins oscila entre as duas correntes, e não se sente incluído em nenhuma delas. Escreve com cuidado e se diz seguidor de Guimarães Rosa.

“Lins abriu o caminho para a literatura dos excluídos e da violência, mas escreve dentro dos preceitos clássicos”, diz a teórica literária Heloísa Buarque de Hollanda. “Não é militante, não mora em comunidades carentes como fazem os literatos marginais. Parece um Graciliano Ramos de hoje. Tem estilo moderno e consciência social, mas é, no fundo, um intelectual clássico.”

“Sou um escritor social”, diz ele. “Abordo só temas que vivenciei de perto.” Aos 53 anos, ele é um acadêmico respeitado. Formado em letras pela UFRJ, deu cursos de cultura brasileira na Universidade Stanford, na Califórnia, e trabalha como roteirista. É casado e pai de três filhos. Nasceu no Estácio e cresceu na comunidade pobre de Cidade de Deus. Dos bairros do Rio de Janeiro, extrai material para sua ficção.

Além de adotar um estilo supostamente fora de moda, o romance social, ele escreve mais devagar que seus colegas. E é dado a bloqueios criativos. Após 15 anos da publicação do primeiro romance, o megassucesso Cidade de Deus, de 1997, acaba de lançar o segundo, Desde que o samba é samba (Planeta, 336 páginas, R$ 39,90), planejado antes mesmo de Cidade de Deus. “O sucesso é medonho”, afirma. “Duvidei de mim mesmo. Não tive só bloqueio criativo. Tive bloqueio até de leitura.”

Por essas razões, além da inveja que desperta, Lins é chamado por alguns críticos de garoto problema da ficção nacional. Ele se revelou incapaz de se promover e de produzir o volume de obras esperado de um escritor que se preze. O desconforto maior nos círculos literários é que, apesar da discrição e dos dilemas criativos, lançou o romance brasileiro mais marcante da virada do século, Cidade de Deus. Quando foi lançada, a obra desagradou a boa parte dos habitantes da comunidade que retrata, por detalhar a violência e o tráfico de drogas. Mas logo se tornou mundialmente conhecida com a adaptação para o cinema de Fernando Meirelles, sucesso de bilheteria de 2002. Foi traduzida para 19 idiomas e, em 15 anos, vendeu 110 mil exemplares no Brasil. “Cidade de Deus é uma obra fundamental na literatura brasileira”, diz Heloísa Buarque de Hollanda. “Foi o romance que abriu um nicho editorial, o primeiro a descortinar a visão de mundo de uma classe pobre que viria a ascender socialmente nos dias de hoje.” Segundo a crítica Bianca Ramoneda, Lins é um dos mais proeminentes ficcionistas brasileiros, ao lado de Milton Hatoum. “Ele é capaz de ir a lugares aonde ninguém vai”, diz. “Com sua lente enviesada, transporta o leitor para dentro do mundo da miséria, que não conseguimos enxergar.”
Personagens quase irreais (Foto: AE, arquivo/Cedoc e reprodução (2))
 

Lins passou os últimos sete anos embrenhado no cenário de seu romance histórico. Desde que o samba é samba gira em torno da origem do samba urbano e da umbanda, eventos que ocorreram no bairro Estácio, vizinho ao Morro de São Carlos, nos anos 1920. Consultou livros, vasculhou cartórios e delegacias de polícia e conversou com os moradores. Há três anos, encontrou a chave para o enredo ao subir o morro para se encontrar com uma ex-prostituta, Maria Aparecida, de 89 anos. Ela tinha muito para contar sobre uma lenda do bairro: Sílvio Fernandes, o Brancura. “Ela revelou detalhes da vida daquele tempo que escaparam aos historiadores”, diz Lins. Maria (que morreu pouco depois) afirmou que fora explorada por Brancura nos anos 1930. Explicou detalhes do negócio. Brancura chegou a ter mais de 50 prostitutas a seu serviço. Como outros proxenetas, desvirginava suas meninas e se esforçava para obter um desempenho perfeito na cama, para assim dominá-las. “Ele era o típico malandro”, afirma Lins. “Tinha de ser o melhor até com as mulheres que explorava.” Surgia o anti-herói do romance. Brancura seria um tipo banal na galeria dos malandros, não fosse ele o pioneiro do samba moderno, ao lado de outros músicos que ficaram conhecidos como “os bambas do Estácio” – Ismael Silva, Nilton Bastos, Bide e Baiaco, fundadores da primeira escola de samba, a Deixa Falar, em 1928. Os personagens formam um cordão de derrotados que conta a história da cultura popular do Brasil, ancorada na escravidão. “Até hoje essa gente do Estácio é excluída”, diz Lins.

No livro, narrado em terceira pessoa, Brancura se apaixona pela prostituta Valdirene. Ela se envolve com outros homens. Os dois protagonizam cenas de ciúmes, sexo e acessos de fé. Em torno deles circulam personagens reais cujas histórias Lins completa com fantasia (leia o quadro acima). Ismael Silva é descrito como o homossexual assumido que leva o amigo Mário de Andrade a prostíbulos para encontrar marinheiros musculosos. Os nomes deles estão disfarçados para evitar processos. Mantendo um estilo discreto, Lins se diz preparado para receber ataques dos campeões da moral dos personagens históricos, como Mário e Ismael.

“Hoje, existe censura, só que ninguém fala nela”, afirma. “É difícil escrever qualquer coisa, verdade ou ficção. Há um preconceito velado em relação a vultos pátrios que eram gays, como Mário ou Ismael. Afinal, temos ou não temos preconceito? Será que acreditamos mesmo na diversidade sexual?”

Desde que o samba é samba apresenta a crônica da malandragem que tentou vencer a miséria e o crime por meio do sincretismo religioso e da música. Paulo Lins demonstra que o samba, patrimônio da cultura brasileira, surgiu num caldo de sangue e sêmen. “Destravei após tantos anos lidando com um livro difícil”, diz. Nos últimos meses, escreveu o roteiro da série Subúrbio, com Luiz Fernando Carvalho, prevista para estrear em janeiro na TV Globo. Quando concluiu o trabalho, decidiu: “Vou converter o roteiro em meu novo romance”.

Luiz Antonio Giron / Revista Época

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