No começo, eram seis cachorros. Vira-latas, cerca de 30 quilos cada um. Todos tinham a próstata naturalmente aumentada, resultado de uma doença característica do envelhecimento. Cada cão era anestesiado, entubado e conduzido de maca pelos corredores de um hospital da Universidade Harvard. No comando das rodinhas, na primavera de 2007, estava o radiologista Francisco Carnevale, nascido e crescido no bairro da Casa Verde, na Zona Norte de São Paulo.
O que o levou do Hospital das Clínicas, na capital paulista, a Boston, nos Estados Unidos, foi uma pergunta teimosa. Daquelas que funcionam como poderoso estimulante. Seria possível aliviar, sem cirurgia, sintomas que causam dor e constrangimento a tantos homens?
A partir dos 45 anos, muitos começam a sofrer de crescimento da próstata. É uma doença benigna, diferente do câncer. A glândula aumenta por razões hormonais, comprime a uretra e obstrui o fluxo de urina. No jargão médico, é chamada de hiperplasia prostática benigna (HPB). Aos 60 anos, um quarto dos homens tem a doença. Aos 80, metade enfrenta sintomas que variam entre desagradáveis e incapacitantes. Jato urinário fraco, sensação de esvaziamento incompleto da bexiga, aumento da frequência urinária, perdas involuntárias de urina...
Em 75% dos casos, o tratamento é feito apenas com remédios. Quando eles não funcionam, a solução é cirúrgica. A técnica mais usada é uma intervenção conhecida como ressecção transuretral prostática (RTU) (leia o quadro abaixo). Carnevale queria entender se seria possível fazer diferente. Só saberia se cuidasse bem daqueles cachorros. Com muita atenção e guiado por imagens de raios X, introduzia um tubo plástico fininho (de 1 milímetro de diâmetro) na artéria da virilha dos cães. Por esse caminho, chegava às artérias da próstata. Ali, aplicava minúsculas bolinhas de resina. Minúsculas mesmo. Cada esfera media de 300 a 500 micras (1 mícron mede 1 milésimo de 1 milímetro). O resultado foi animador: o tamanho da próstata dos animais diminuiu cerca de 40%.
Em homens ocorreria o mesmo? Provavelmente sim. Em 2006, Carnevale lera um relato de caso interessante numa revista científica. Durante uma cirurgia tradicional de próstata, um paciente começara a sangrar. Um radiologista fora chamado para tentar estancar a hemorragia aplicando essas minúsculas bolinhas de resina nas artérias da próstata. O resultado foi inesperado. Além do sangramento ter sido interrompido, a próstata aumentada murchou. Nos meses seguintes, as dificuldades de controle da urina praticamente desapareceram.
A injeção de pequenas esferas plásticas para obstruir artérias ou vasos – um processo chamado de embolização – já era consagrada no tratamento de outros problemas, como os tumores benignos no útero (miomas). Assim que obteve a autorização do Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas, Carnevale e uma equipe do Departamento de Urologia começaram a testar a estratégia em homens no estágio mais avançado da doença. Todos usavam sonda na uretra e estavam à espera da cirurgia convencional.
Um deles é James Spies, professor de radiologia intervencionista da Universidade Georgetown, em Washington. Ele é conhecido nos Estados Unidos por ter operado um mioma uterino da ex-secretária de Estado Condoleezza Rice. Spies ficou entusiasmado com o que viu no Brasil. “Carnevale está fazendo um grande trabalho. Acredito que essa técnica tem um grande potencial, mas ainda é preciso muito estudo para garantir que é segura e eficaz”, disse Spies a ÉPOCA. “Estou preparando um protocolo de pesquisa e espero conseguir repetir os resultados que ele obteve.”
Uma das grandes vantagens da embolização das artérias da próstata é ser realizada apenas com anestesia local. O paciente volta para casa no mesmo dia. Com a cirurgia tradicional, 90% dos homens voltam a urinar bem e continuam assim mesmo depois de dez anos. É um procedimento seguro, mas requer internação de até três dias. Outra vantagem da técnica de Carnevale é não comprometer a função sexual. A cirurgia convencional (RTU) não costuma provocar impotência, mas os pacientes passam a apresentar o que os médicos chamam de ejaculação retrógrada. O sêmen deixa de ser ejaculado naturalmente e, durante as relações sexuais, cai na bexiga. De lá, é expelido pela urina.
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“Os homens não querem ficar com ejaculação retrógrada para resolver um problema urinário. Quando se submetem ao novo procedimento, me dizem que recuperaram a vontade de viver”, diz Carnevale. Além dos 11 voluntários do estudo original, outros pacientes particulares experimentaram a novidade. No total, já são cerca de 40.
A maioria dos homens tratados faz questão de levar a mulher ao consultório e dizer que a harmonia voltou ao lar. “Antes ela não podia dormir porque eu acordava várias vezes durante a noite para ir ao banheiro. Agora isso acabou”, diz o médico ginecologista Manoel Augusto Soares. “Três meses depois do procedimento, minha próstata diminuiu 40%. E a técnica não atrapalhou minha sexualidade.”
Otimismo não falta, mas, como em tudo em medicina, é preciso tempo. O grupo de pacientes submetidos à técnica é pequeno. Insuficiente para garantir o que quer que seja. “A embolização das artérias da próstata ainda é uma técnica experimental, não reconhecida pela comunidade dos urologistas. Precisamos de mais estudos antes de indicá-la à população”, diz o presidente da Sociedade Brasileira de Urologia, Aguinaldo Cesar Nardi.
A nova técnica não é isenta de riscos. Se as microesferas não forem aplicadas adequadamente (com material correto, na quantidade e na velocidade certas), os vasos dos órgãos próximos da próstata podem ser afetados. Isso pode prejudicar a circulação sanguínea na bexiga, no reto e no pênis. Numa situação extrema, isso pode provocar a morte do tecido atingido (necrose).
Carnevale sabe que tem um longo caminho pela frente antes de sua invenção ganhar credibilidade. “Precisamos da chancela dos urologistas para que ela comece a ser recomendada habitualmente”, diz. O professor aposentado Carlos Nilson da Costa, de 70 anos, decidiu correr o risco de ser um dos primeiros a se submeter à novidade. Ex-secretário de Educação do Amapá, ele viveu um episódio dramático no final do ano passado. Durante um voo entre Macapá e São Paulo, não conseguiu esvaziar a bexiga. Precisou ser socorrido assim que chegou ao Aeroporto de Congonhas. Uma sonda foi colocada na uretra até que ele pudesse ser submetido à embolização. “Hoje estou 75% melhor. É bastante.”
Desde que o Viagra amenizou a ameaça da impotência, a próstata ocupou o espaço de maior preocupação de saúde no campo da intimidade masculina. Surgiu uma nova esperança – que precisa ser comprovada por diferentes grupos. Se funcionar, terá sido obra de uma rede de inquietos a serviço da ciência. A começar pelos vira-latas.
Revista Época
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