Enquanto uma jovem de mochila vermelha estuda as lombadas dos clássicos nas prateleiras de literatura em inglês, três crianças na faixa dos 7 anos se divertem com os brinquedos embaixo de um boneco de dragão. Espalhados pelos 1 100 metros quadrados da loja, dois homens circulam - literalmente- pelas colunas onde ficam expostos os destaques, lançamentos e best-sellers, e uma senhora de mais idade se perde pelas estantes curvas repletas de livros. Ao centro, no mesmo espaço em que acontecerá uma noite de autógrafos dentro de algumas horas, um rapaz folheia a biografia de Steve Jobs sentado em uma poltrona azul-marinho. Já no café, ao fundo, duas mulheres de tailleur conversam à mesa de olho na tela de um laptop. Cenas como essas ilustram o agitado e eclético dia a dia da Cultura, eleita por VEJA RIO a melhor livraria da cidade. "Virou meu programa obrigatório de fim de semana, como a praia e o chope com os amigos, mesmo que eu não compre nada", diz Julia Villela, designer de 26 anos.
Para julgar os onze competidores, a reportagem visitou cada um dos estabelecimentos - no caso das redes, a loja maior - e analisou seu desempenho em treze quesitos. A ideia era fazer uma avaliação objetiva do atendimento, da abrangência do acervo e da qualidade de outros serviços oferecidos aos clientes. Assim, foram atribuídas notas 2, 1 ou 0 a cada item, que correspondem a uma performance muito boa, satisfatória ou ruim/inexistente (veja o quadro na págs. 22 e 23). Sem se identificar aos donos ou funcionários, o repórter observou ainda aspectos como o conforto do salão, a programação do espaço infantil, a possibilidade de levar livros para a cafeteria ou restaurante e a organização dos títulos em destaque. Também houve preocupação em comparar os preços e checar o funcionamento de cartões de fidelidade, da venda on-line e do serviço de encomenda com entrega em casa. Por fim, foram levados em consideração o conhecimento dos atendentes sobre o estoque e literatura, a facilidade do cliente em achar o que deseja e a variedade das obras - classificadas de acordo com a oferta de livros estrangeiros, didáticos, infantis, técnicos, de arte e de editoras independentes.
Fincada no 2º piso do Fashion Mall, em São Conrado, um ponto estratégico entre a Barra e a Zona Sul, a Cultura saiu-se muito bem em praticamente todas as categorias. Não por acaso, vem atraindo uma legião de cariocas desde a sua inauguração, em setembro, o que garantiu um faturamento 20% acima do planejado nos primeiros quatro meses de funcionamento no Rio. Suas estantes em formato de caracol abrigam cerca de 30 000 volumes, e a seleção, baseada em pesquisas de mercado, é bastante ampla e satisfatória. O atendimento é competente: não há exigência de nenhum diploma, mas todos os funcionários precisam conhecer literatura e estar familiarizados com autores nacionais e estrangeiros. Outros pontos a favor dizem respeito ao bolso. Tem wi-fi gratuita e os lançamentos são sempre vendidos com desconto. O único quesito em que a Cultura perdeu ponto foi na encomenda de livros, pois não faz entrega em domicílio.
Com treze unidades pelo Brasil, em cidades como Brasília, Salvador e Porto Alegre, a rede nascida em São Paulo e comandada pelo empresário Pedro Herz sintetiza um novo modelo de negócios que surgiu no setor há pouco mais de dez anos: a livraria que funciona também como espaço de lazer. Muito mais do que um ponto comercial cheio de livros espalhados em estantes - livros esses que hoje em dia podem ser facilmente adquiridos via internet por um preço às vezes menor e recebidos em casa —, essas lojas se preocupam em propiciar um ambiente agradável para que os frequentadores se sintam à vontade e propensos a voltar. Com esse objetivo, as comodidades e o leque de produtos oferecidos foram aumentando com o tempo, trazendo para suas dependências poltronas, sofás, CDs, DVDs, bares e até restaurantes. "Eu não sei se tenho um café que vende livros ou uma livraria que vende café", resume Claudio Bartolo, dono da Ponte de Tábuas, no Jardim Botânico, quinto lugar no ranking. Seja com literatura, seja com doces e salgadinhos, a ideia é entreter os clientes o máximo de tempo possível. "Nós somos hoje o que as praças eram lá atrás: um lugar onde as pessoas se encontram e discutem ideias. Tem até crianças brincando!", compara Rui Campos, dono da Travessa, que cravou a segunda posição, com pouquíssima diferença para a campeã.
Evidentemente, isso não significa que as antigas e tradicionais livrarias cariocas tenham perdido seu charme ou estejam liquidadas. A sexagenária Leonardo da Vinci, no centro da cidade, continua atraindo leitores "ao termo da espiral/que disfarça o caminho/com espadanas de fonte", como escreveu Carlos Drummond de Andrade em um poema dedicado à casa. O pesquisador musical Ricardo Cravo Albin, 67 anos, é um deles. Sempre que pode, ele passa ali algumas horas à procura de bons títulos. "O que mais me agrada é o cheiro de papel misturado com mofo", diz ele. A questão é que nem todos os fregueses têm o mesmo prazer olfativo ou acham graça em transitar por corredores apertados e estantes abarrotadas. O conceito mudou, e, para os novos estabelecimentos, será difícil entrar nessa competição copiando o modelo do passado. "Para mim, precisa ser um ponto de encontro. Uma grande loja de departamentos cultural", afirma a cantora Roberta Sá.
A despeito do estilo moderno ou clássico, o que garante a fidelidade do consumidor é a combinação entre o bom atendimento e a qualidade dos títulos. A Timbre, no Shopping da Gávea, é um exemplo de loja que não lança mão de pirotecnias para seduzi-lo. Seu trunfo reside numa seleção competente de obras e na capacidade de quem está atrás do balcão. "A troca entre o comprador e o livreiro é essencial, e lá eles sempre têm boas dicas para dar", atesta o cantor Leo Jaime, frequentador assíduo do endereço. Essa proximidade não tem ligação direta com o tamanho do estabelecimento. Para manter o clima intimista em suas grandes e numerosas filiais, a Travessa orienta os funcionários a procurar os livros pedidos nas estantes, antes de consultar o computador. Lá, o processo de seleção de pessoal é feito diretamente pelos donos, que avaliam o candidato por seu grau de curiosidade. A preocupação faz sentido, pois os funcionários têm atribuições como a escolha das obras expostas nas vitrines e mesas. "Eles precisam se envolver, saber sobre o que estão falando", explica o proprietário, Campos.
Os primeiros registros de uma livraria na cidade datam de 1792. As pioneiras foram duas casas especializadas em literatura médica e religiosa. Mas somente em 1808, com a chegada de dom João VI e sua bagagem de 60 000 títulos da Biblioteca Real de Portugal, é que o hábito da leitura começou a se difundir na então acanhada capital da colônia. Na primeira metade do século passado, com a tradição já arraigada na cultura carioca, fazia sucesso a José Olympio, na Rua do Ouvidor, que também funcionava como editora. Muitos jovens autores passavam por ali na expectativa de encontrar com José Lins do Rego ou Graciliano Ramos. Um deles, o jornalista Joel Silveira, teve um conto rasgado por um mal-humorado Graciliano. Apesar de ser o centro da vida intelectual do Rio naqueles tempos, a livraria não era um lugar confortável. "Era escura, quente e oferecia como assento apenas alguns bancos de madeira. Não havia ventiladores, cafezinho ou água", conta a jornalista Lucila Soares, autora do livro Rua do Ouvidor 110 e neta de Olympio.
Com a popularização dos e-books, alguns especialistas preveem o fim das livrarias daqui a alguns anos. Nos Estados Unidos, as edições eletrônicas abocanharam 10% do mercado. Dos cinquenta livros mais vendidos no país, 32 deles fazem mais sucesso nos leitores digitais do que no papel. Os efeitos disso já estão sendo sentidos nas gigantes de lá, e as ações da maior rede americana, a Barnes & Noble, caíram 50% em um ano. No Brasil, a tecnologia ainda engatinha, mas as editoras estão prestes a fechar contratos para comercializar as obras no universo digital. "De fato, temos um dilema. É muito caro manter uma megalivraria de cinco andares, e as pequenas que não encontram seu nicho estão em extinção", diz Célia Portella, diretora da Biblioteca Nacional. Felizmente, os cariocas, por ora, não precisam se preocupar. Como atesta o ranking de VEJA RIO, temos ótimas opções na cidade - e todas elas cheias de leitores, em sua maioria satisfeitos.
Revista Veja
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