domingo, 6 de maio de 2012

Te Contei, não ? - Villas Bôas, os heróis do Xingu - Aline Ribeiro


Poucas histórias são tão espetaculares quanto a dos irmãos Villas Bôas. Filhos de um advogado do interior paulista, Orlando, Cláudio e Leonardo, nascidos na década de 1910, tinham tudo para acabar na capital como altos funcionários do governo. Mas decidiram – mais por impulso juvenil do que por ideologia – partir para “aventuras tão ousadas e generosas que seriam impensáveis, se eles não as tivessem vivido”, como descreveu o antropólogo Darcy Ribeiro. Graças a seu ímpeto, a cultura (e a vida) de milhares de índios brasileiros foi resguardada.
Era começo dos anos 1940. Inspirada no modelo americano de ocupação, que não se preocupava com a sobrevivência física ou cultural dos índios, a ditadura de Getúlio Vargas planejava explorar os vazios demográficos brasileiros. Os cerca de 40 milhões de habitantes do país viviam restritos à faixa litorânea. O Brasil Central era algo tão remoto quanto a África. A disputa por espaços nacionais, em evidência na época da Segunda Guerra Mundial, justificava a expansão rumo às manchas brancas do mapa. Caberia a caboclos anônimos, de preferência obedientes e sem instrução, adentrar as terras e fincar bandeira.
A notícia da expedição ao oeste, batizada de Roncador-Xingu, chegou ao interior de São Paulo. Os irmãos Villas Bôas embarcaram em busca do desconhecido. Para garantir uma vaga na caravana, usaram de um subterfúgio: botaram vestes de peão e se declararam analfabetos – os recrutadores esperavam mateiros rudes, não jovens intelectuais de braços finos. Reprovados na primeira tentativa, foram aceitos na segunda. Tal como os bandeirantes, que desbravaram o Brasil no século XVII com o intuito de capturar índios, os irmãos partiram numa nova marcha às terras nunca alcançadas pelo homem branco. Desta vez, os índios não foram vítimas.
O enredo de aventura e drama dessa viagem é narrado no longa-metragem Xingu, que estreia nesta sexta-feira. Dirigido por Cao Hamburguer e produzido pela O2, o filme faz mais que reconstruir a saga dos Villas Bôas. Ele desnuda os dilemas éticos dos irmãos, que se questionavam sobre o impacto da chegada do branco na cultura indígena. “Pela primeira vez, essas figuras importantes para o Brasil foram colocadas num patamar digno de suas trajetórias”, diz o fotógrafo Pedro Martinelli, que conviveu com os irmãos por três anos. “É um filme benfeito, na medida. Sem clichês de índio pelado e pôr do sol.” 

A aventura na Floresta Amazônica, o desconhecido universo das tribos isoladas e a viagem a um Brasil distante da realidade urbana provocam empatia imediata. Trazem para o presente uma história sobre as quais as gerações atuais só ouviram falar. “A luta dos Villas Bôas era aprender a viver no planeta sem destruir, com respeito aos índios”, afirma Hamburguer. “É uma história atual e urgente.”
Os irmãos – interpretados pelos atores Felipe Camargo (Orlando), João Miguel (Cláudio) e Caio Blat (Leonardo) – de imediato assumem a liderança da expedição, e a aventura ganha um tom de seriedade. À medida que a tropa avançava, a presença de tribos isoladas torna-se mais constante. Eram civilizações sem contato com brancos. A responsabilidade de estabelecer uma ponte entre esses dois mundos era assustadora.
Os Villas Bôas tiveram uma postura impecável. Sob o lema “morrer se preciso for, matar jamais” – uma herança de Marechal Rondon, que três décadas antes havia enfrentado matas parecidas com os mesmos objetivos –, eles não só conquistaram a confiança dos índios, como foram eleitos para representá-los.
A epopeia teve alguns percalços. Sem caça e com falta de víveres, os homens da tropa passaram fome. Foram atormentados pelo esturro das onças famintas. Juntos, os irmãos tiveram malária mais de 200 vezes. Sem falar nas tentações da carne. Leonardo, o mais novo, infringiu uma regra clara da expedição: se apaixonou por uma índia. Foi expulso do grupo. O próprio Cláudio, o mais idealista deles, repetiu o erro do irmão. E acabou pai de um indiozinho

Ao final, os irmãos entraram para a história por confrontar os interesses do governo brasileiro e proteger as tribos da civilização. Sua principal conquista foi a criação do Parque Índigena do Xingu, em 1961, território do tamanho da Bélgica. “Uma reserva natural onde a flora e a fauna intocadas guardassem, para o futuro, um testemunho do Brasil do descobrimento”, escreveram. O parque continua um santuário. Além da mata exuberante, preserva 50 aldeias, 16 etnias e 6 mil índios. Não fosse a coragem de Orlando, Cláudio e Leonardo, esses povos provavelmente não teriam resistido.  

Revista Época

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