domingo, 6 de maio de 2012

Te Contei, não ? Vanguarda à brasileira, em Berlim



Não se deixe enganar pela imagem serena de uma face com mistura de traços negros e árabes, de pele com pouca melanina, emoldurada por vastos dreads. O ator, dançarino e pedagogo,Wagner Carvalho, apesar da docilidade nas ações, não tem nada a ver com serenidade. Ele é um turbilhão, que fala e vive no mesmo ritmo de seus pensamentos, principalmente quando está organizando o Brasil Move Berlim - um dos mais respeitados e prestigiados festivais de dança contemporânea da Europa - realizado a cada dois anos. "Procuramos colocar na programação o que há de mais instigante em dança brasileira, principalmente fora do eixo Rio-São Paulo. Se bem que, na 5ª versão, realizada no ano passado, havia duas companhias do Rio de Janeiro. Mas fomos buscar grupos em Teresina, Natal, Recife, Salvador e Maceió", revela Carvalho, diretor do festival, que tem como parceiro de curadoria o alemão BjörnDirkSchlüter.

O evento, com duração de 10 dias, não se limita a apresentações nos palcos das salas de espetáculos, mas se complementa com debates, workshops e, principalmente, performances em locais públicos como praças e shopping centers. "As companhias selecionadas fogem em muito do que está por aí e não poderiam ficar confinadas nos teatros para o público seleto que os frequenta. Minha história teatral se originou no Teatro do Oprimido, de Augusto Boal, e é nas ruas que essa linguagem artística se faz mais eficaz", diz.

A história da ancestralidade de Wagner Carvalho, porém, vem de muito mais longe: "Do Quilombo da Mata do Tição, na cidade mineira de Jaboticatubas, onde até hoje se fala em quimbundo, nos rituais de candombe, nos inquinces", explica Wagner, que descobriu o teatro de Bertold Brecht, aos 12 anos, quando morava no bairro Santa Luzia, em Belo Horizonte. O mais velho dos quatro irmãos - três meninos e uma menina -, ele atuava no Núcleo de Estudos Teatrais (NET)-, que se destacava no cenário artístico engajado mineiro, quando ganhou uma bolsa do Instituto Goethe para estudar teatro em Berlim. "Atuei na montagem de (Jae, o açougueiro), de Brecht, no BerlinerEnsemble, companhia criada por esse dramaturgo excepcional. Foram fragmentos alinhavados por Th omaz Heise, de um texto que Brecht não terminou", comenta.
"O teatro engajado é o instrumento que escolhi para marcar minha existência no mundo", afirma Carvalho. E foi através de uma linguagem artística que mescla dança, teatro e improvisação que ele conquistou seu espaço na Alemanha, segundo descreve:
"A gente não cabe no contexto do teatro alemão, com sua hochdeutsche (língua acadêmica). Então, o corpo se tomou meu instrumento de conscientização. Fui para lá em 1990, por três meses, com uma performance que me rendeu convite para alguns retornos, entre 90 e 92. Foram encontros de jovens criadores e, depois, oficinas culturais e workshops."

O contraste da Berlim que ele conheceu, com o cotidiano belorizontino, encontrado ao retornarapós os três primeiros meses, provocou nele longas crises existenciais: "Eu chorava diariamente. Depois de viver um exercício de cidadania em Berlim, onde eu pude ser artista e negro, foi terrível retornar à minha cidade complexa, com um povo extremamente pacato diante das injustiças sociais. O poeta Ricardo Aleixo chama BH de Velho Horizonte", comenta.

Em 1992, ele criou com o produtor musical, percussionista e ator, Gil Amâncio um projeto intitulado Primitivos, trabalhando sobre a afro-ascendência de ambos, e partiram juntos para a Alemanha. "Gil foi num processo experimental.
Eu já sabia que ia para ficar. Não cheguei de gaiato. Me preparei muito. A burocracia alemã é muito dura. O NET me deu a base para me estabelecer naquele país. Além de minha negritude, levei comigo a minha mineirice: a calma e a perspicácia, não procurando ser taxativo de imediato", confessa.

Coordenar o Núcleo de Estudos Teatrais, com cerca de 500 alunos e 12 professores, fazia com que Wagner vivesse tenso em Belo Horizonte. "Eu era considerado xiita, numa cidade racista. A Alemanha me relaxou, me deixou mais calmo e livre para enfrentar o excesso de disciplina exigido para fazer arte naquele país. Em Berlim eu posso ser negro. A gente sabe onde pode ou não pode ir.

Tudo é muito definido geograficamente. Há sim as áreas neonazistas, onde muitos foram atacados, mas no restante da cidade se está muito seguro e livre."

Curiosamente, para Wagner Carvalho o choque cultural é mais constatado em sua terra natal do que na que escolheu viver: "Na Europa, a noção diaspórica é muito forte. Ao nos encontrar com um negro, é comum nos cumprimentarmos. Numa vinda a BH, cumprimentei um jovem negro, e ele reagiu furioso indagando o que eu queria com ele. Eu expliquei que onde eu moro isso é comum. E ele perguntou onde eu morava. Respondi: 'Berlim'. E ele estranhou: 'Betim?' Eu sorri e resolvi deixar pra lá."

ESTEREÓTIPOS QUE INCOMODAM

Vegetariano, Wagner é dessas pessoas de hábitos saudáveis: não bebe, não fuma, mantém vida disciplinada e culturalmente intensa. Além de organizar o festival que criou com o alemão BjörnSchlüter, acaba de assumir a direção do teatro BallhausNaunynstrasse, em Berlim, de cuja equipe já fazia parte há alguns anos, indicado para a função pela antiga diretora que se aposentou. Seus longos dreads, porém, fazem com que muitos, ao saberem que é brasileiro, logo imaginem que é baiano, capoeirista... "Não sabem quem sou, mas sabem tudo sobre mim. Isso me possibilita desenvolver, no dia a dia, exercícios de desconstrução de imagem, dos estereótipos. No elevador de um hotel em São Paulo, um velho me perguntou: 'Músico?' E eu respondi: 'Não. Físico nuclear. Trabalho num projeto de construção da bomba atômica'. Daí por diante ele começou a me chamar de Dr. Wagner" (risos).

Wagner conta que enfrenta cotidianamente o constrangimento daqueles que o consideram um estranho no ambiente em que está: "Circulo tranquilo, onde for necessário. Foi assim que conquistei meu espaço na sociedade berlinense." Para a seleção de companhias para participar do 5º Festival Move Berlim, que durou nove meses, Carvalho passou por 22 estados brasileiros e pelo Distrito Federal. Conseguiu apoio do governo alemão, no Ministério da Cultura (Minc), através da Funarte, do Ministério de Relações Exteriores (Itamarati), do Instituto Goethe e Itaú Cultural.

No final do ano passado, voltou ao Brasil para a pós-produção e iniciar as buscas, já pensando na sexta edição do evento. Aproveitou para participar do VI Encontro de Arte de Matriz Africana, realizado pelo Grupo Caixa Preta, em Porto Alegre, onde proferiu a palestra O corpo negro na dança contemporânea brasileira. Fala do corpo subjugado (sequestrado, escravizado) até chegar nos dias atuais com muitos negros e negras no contexto da dança contemporânea brasileira. "Temos uma rede de comunicação entre bailarinos negros do Brasil e do mundo todo", revela.
FOTO CHRISTOPHER IWATA/DIVULGAÇÃO
Wagner Carvalho: "O teatro engajado é o instrumento que escolhi para marcar minha existência no mundo"

Atualmente, no Ballhaus, acontece o Project In/Out, série de espetáculos em comemoração aos 50 anos de 'casamento', entre os turcos e a Alemanha. Há meio século de imigração turca, mas eles ainda são tratados como estrangeiros.

O novo diretor, porém, já pensa um projeto intitulado Black Ocupation, com artistas afros residentes em Berlim. "A questão negra é uma das que devem ocupar aquele nosso espaço", afirma Wagner Carvalho. Ele prepara também um intercâmbio. "Vamos trazer o Ballhaus para o Brasil, em 2013, com filmes, literatura jovem e o espetáculo VerrücktesBlut (Sangue Maluco), uma história de uma professora que sequestra a classe de alunos rebeldes para poder dar a aula de sua vida. Inicialmente virá a Belo Horizonte, São Paulo e Porto Alegre. Há também uma perspectiva de irmos a Salvador", adianta.

Mas nem tudo são flores na Berlim onde o artista encontrou seu espaço: "Eu também vi miséria na Alemanha. Mas, ao contrário daqui, verbalizo livremente tudo o que sou e penso, através da arte e de projetos artísticos." Um deles foi traduzir para o português a obra Plantation Memories, uma compilação de episódios de racismo diário, escrita em forma de contos psicanalíticos pela escritora lusitana Grada Kilomba, que tem raízes no arquipélago africano de São Tomé e Príncipe, vive na Alemanha e publica na língua inglesa. Wagner vai adaptar a obra para o teatro: "Estou sempre empenhado com o teatro crítico. Pode entreter, sim, mas tem de fazer pensar."


Revista Bravo

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