Intelectuais gostam de dizer o que é bom ou ruim em termos artísticos. São tão severos quanto os inquisidores medievais. Também como eles, costumam prejulgar a partir de crenças pessoais. Houve uma época em que a MPB merecia todos os elogios. Ninguém tem coragem de falar mal da MPB, é claro. Mas grandes interprétes como Gal Costa e Maria Bethânia pouco interessam à crítica atual. Chico e Caetano ainda ocupam seus espaços. Os críticos preferem, porém, falar de bandas de rock inglesas. Há alguns anos, a escritora Ana Maria Machado ganhou o prêmio Hans Christian Andersen. É considerado o Nobel da literatura infantojuvenil. Só vi algumas linhas a respeito. Enquanto isso, já li centenas de vezes a história de J.K. Rowling, autora de Harry Potter, pobre, escrevendo o primeiro livro num café... Um bom sotaque causa arrepios na intelectualidade brasileira. Há muitos anos, uma intérprete de jazz americana veio ao Brasil. Admirou-se com a quantidade de reportagens a seu respeito. Nos Estados Unidos, nunca merecera tal atenção. Começou a apresentação dizendo:
– Sei que vocês não me conhecem...
Há um preconceito generalizado contra o teatro musical. Cheguei a ler uma crítica aconselhando o público a gastar o dinheiro do ingresso em três peças experimentais. Como se entretenimento fosse pecado. Alguém não pode ir ao teatro, ler um livro, assistir a um filme só para se divertir? Sem nenhum compromisso com os destinos da humanidade? Estudantes da USP torcem o nariz. “É muito comercial”, dizem quando um espetáculo é criado para fazer sucesso. Qual o problema, se as pessoas gostam?
Houve uma época em que o bom ou ruim tinha inspiração política. Durante o governo militar, no Brasil, entre os artistas, ser a favor era péssimo. Contra, dava um atestado de qualidade. Os filmes de Gláuber Rocha, perseguido pelos militares, receberam um lugar de honra no panteão da cultura nacional. Terra em transe é chatérrimo. Além do mais, a frase “uma ideia na cabeça e uma câmera na mão” acaba com a profissão de roteirista. Sinceramente, como roteirista, fico muito irritado ao ouvi-la. Raramente alguém diz que os monumentos de concreto criados por Niemeyer são áridos. Niemeyer sempre foi um corajoso homem de esquerda. Recebeu carteirinha de ótimo.
Talvez a maior injustiça já cometida pela intelectualidade brasileira tenha sido durante a ditadura. Havia uma escritora, Cassandra Rios, que vendia aos borbotões, inclusive em bancas de revistas. Era uma literatura erótica, fortemente apoiada no lesbianismo. Pelo menos um de seus livros foi adaptado para o cinema: Ariella, com Christiane Torloni e Nicole Puzzi. O governo militar também perseguiu Cassandra Rios. Seus livros desapareceram, sob a pecha de imorais. Ninguém abriu a boca. Era considerada “ruim”, por que defender? Tratava-se, porém, do princípio da liberdade de expressão, esquecido em nome do preconceito intelectual. Conheci Cassandra Rios já com idade, lutando para recuperar o espaço perdido. Morreu praticamente esquecida.
Antes, a divisão entre esquerda e direita definia o que era bom. Hoje o preconceito é a partir do meio. Ou seja: filme nacional é em princípio ótimo. Convivo com atores que contam, de peito estufado como pavões:
– Estou fazendo cinema.
– E daí? –, pergunto.
Ninguém recusa um convitezinho para fazer novela. Mas muitos agem como se TV fosse menor que cinema e teatro. Televisão é um meio, simplesmente. Obras artísticas ou de entretenimento convivem, como em outros meios. Ou se mesclam, unindo arte e diversão. Glória Perez já ganhou o Emmy com a novela Caminhos da Índia. Quantos prêmios da mesma importância o cinema nacional conquistou nos últimos tempos? Temos filmes, peças, novelas, séries, bons e ruins artisticamente. O preconceito é fruto da falta de profundidade intelectual. A pessoa valoriza o que os outros valorizam, para não ser tachada de ignorante. Melhor não ir contra a corrente. Não dizer, por exemplo, que adorou Cabaret, com Cláudia Raia, só porque é um musical. Embora seja um dos espetáculos mais competentes que já vi. Chamo isso de cafonice intelectual. É a maior tendência cultural de nossos tempos.
Ninguém pense que advoguei em causa própria, porque sou autor de televisão. Meu maior prêmio aconteceu no teatro. É o Shell, o mais respeitado do país. Poderia ficar quieto. Mas prefiro ter minha própria opinião, o que parece ser raro ultimamente.
Walcyr Carrasco
Revista Época
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