O músico, compositor, artista plástico e marceneiro, Heitor dos Prazeres sabia bem o que estava dizendo ao batizar aquela região central do Rio de Janeiro - entre a Zona Portuária, a Gamboa e a Saúde - de Pequena África, que abrangia também o Morro da Conceição e o Valongo
Ali, naquele início do século 20, junto à Pedra do Sal, não era apenas onde viviam os descendentes de africanos, remanescentes do quilombo local, era também onde vicejava o que havia de mais profundo nas raízes culturais e sociais afro-brasileiras. Era como se tivessem plantado naquele local um baobá, com todo o simbolismo que tem nossa "árvore da memória". No século 17, a Pedra do Sal era onde ficava o mercado de escravos. Nos séculos que se seguiram, tornou-se a moradia de pretos forros, particularmente os baianos e as baianas que, naquelas moradias baratas próximas ao cais do porto, tinham facilidade para arranjar trabalho na estiva ou levar seus quitutes aos trabalhadores e vendê-los a quem pudesse pagar por eles. Nos morros em volta viveram os negros retornados da Guerra do Paraguai, com promessas não cumpridas de liberdade e trabalho.
Lá floresceram os primeiros terreiros de candomblé fora da Bahia, descritos com certa bizarrice pelo mestiço João do Rio em seu livro As Religiões do Rio, de 1904. Lá era o terreiro do famoso babalorixá João Alabá e as pensões das tias baianas e yalorixás Bibiana, Mônica, Marcelina Perciliana e Ciata (Hilária Batista de Almeida), em cuja casa se reuniam Pixinguinha, João da Baiana, Donga, Heitor dos Prazeres e tantos outros que ali plantaram as raízes do samba. Dessas casas saíam os ranchos nos primeiros desfiles carnavalescos. Ciata era doceira de mão cheia e vendia seus quitutes na Rua da Carioca, com as roupas semelhantes às que usava em seus preceitos religiosos.
A PEQUENA ÁFRICA SOBREVIVEU COM SEUS MÚSICOS INSTRUMENTISTAS, COMPOSITORES, CANTORES, SAMBISTAS, POR MEIO DOS BATUQUES, DOS JONGOS, DAS RODAS DE PARTIDO ALTO E, PRINCIPALMENTE, PELA MEMÓRIA DAS TIAS BAIANAS
Modernização para as administrações públicas é sinônimo de retirada das moradias dos pobres e dos pretos (sua redundância) para o mais distante possível, nas periferias das cidades, cada vez mais distantes. No Rio foi o alagadiço aterrado, que denominaram Cidade Nova. Os ranchos, por meio dos quais se festejava o carnaval, se transferiram para lá e deram lugar aos blocos e cordões, que se transformaram em escolas de samba. Mas a Pequena África sobreviveu com seus músicos instrumentistas, compositores, cantores, sambistas, por meio dos batuques, dos jongos, das rodas de partido alto e, principalmente, pela memória das tias baianas que até hoje são revividas com essa ala obrigatória nas escolas de samba.
A Pequena África gerou alguns dos maiores nomes da raiz da Música Popular Brasileira. Pixinguinha e muitos daqueles que com ele conviviam ali tinham formação musical erudita e a utilizavam na produção do que se tornava cada vez mais popular. Por isso ninguém pode negar seu importantíssimo valor da Pequena África para a história e a cultura do nosso País.
Revista Raça Brasil
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