segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Personalidades - Martinho da Vila

Martinho da Vila revê a revolução de Noel Rosa, aplaude o movimento negro e diz que foi censurado durante a ditadura


 Martinho da vila está de bem com a vida neste fim de tarde carioca. Acabou de gravar para a tevê uma demonstração de seu novo CD, Poeta da Cidade, de peças históricas de Noel Rosa (1910-1937) cantadas na companhia de seis vozes femininas. A sessão de samba de roda em volta do piano corre com a presença de algumas das cantoras, inclusive duas de suas filhas, Mart’nália e Analimar Ventapane. Circula por ali também Martinho Filho, coordenador da gravadora Biscoito Fino, que lança o disco do pai. Guarnecido de cervejas, gargalhadas e comida farta, o ambiente faz acreditar que a vida do cantor e compositor de 72 anos é igual à letra de seu primeiro sucesso nacional: na minha casa todo mundo é bamba/ todo mundo bebe, todo mundo samba.
Casa de Bamba estreou em 1968 no IV Festival da Música Popular Brasileira da TV Record. “Sou filho dos festivais”, o músico sublinha um dado hoje pouco lembrado (“talvez porque era um samba, ou pelo meu tipo físico”). Estava em curso a cisão entre o que era rotulado como “MPB universitária” e o que não era, e Martinho foi desclassificado nas eliminatórias. Em seu primeiro LP, de 1969, usou o samba O Pequeno Burguês para comentar o cisma com a sutileza que lhe é peculiar: Felicidade, passei no vestibular/ mas a faculdade é particular/ livros tão caros, tanta taxa pra pagar/ meu dinheiro, muito raro,/ alguém teve que emprestar.
Martinho está ciente de que o embate entre músicos de origens sociais distintas governava com mão de ferro a tal MPB: “Alguns compositores foram catalogados como censurados, mas no duro todo mundo era censurado. O livro Eu Não Sou Cachorro, Não mostra isso”. Refere-se ao trabalho do historiador Paulo César de Araujo, de 2002, que do-cumentou o policiamento do regime militar sobre os artistas ditos “cafonas”, descartados como “alienados” pela MPB, mas que perturbavam a ditadura tanto quanto chicos e caetanos.
Nascido de pais lavradores na zona rural de Duas Barras (RJ), Martinho teve encontros e confrontos com a censura e os poderes constituídos. Aos 4 anos, migrou de Duas Barras para o subúrbio da Boca do Mato, na capital fluminense. “Foi uma mudança radical, do interior para a favela. A família Ferreira migrou porque leis trabalhistas não alcançavam o campo. Meu pai foi trabalhar numa fundição americana de ferro. Ele dizia: ‘Saí da roça para o inferno’. A fábrica parecia mesmo a casa do diabo.”
A favela tinha o nome de Serra dos Pretos Forros. “Era um lugar onde houve uma espécie de quilombo, uma comunidade de negros livres”, recorda. Em 1956, órfão de pai, integrou o Ministério da Guerra. Ocupou funções burocráticas, de escrevente, laboratorista e contador, até a patente de sargento. “Os sargentos eram todos janguistas, João Goulart sempre deu força aos militares de base. Quando veio o golpe, os sargentos eram malvistos. Na última semana de março (de 1964) foram todos desarmados.”
Permaneceu no Exército até 1969, e na maior parte desse intervalo compôs sambas-enredos sobre eventos da história do Brasil, primeiro para a escola Aprendizes da Boca do Mato. Era conhecido como Martinho da Boca do Mato, não da Vila Isabel (onde ingressaria em 1964 e onde faria uma coleção de oitavas, quintas e quartas colocações). Em 1974, aborreceu-se porque teve sua Tribo dos Carajás barrada na disputa interna da Unidos de Vila Isabel. “A ditadura começou a atuar indiretamente nas escolas, colocaram gente do sistema lá dentro. Só depois eu soube o que tinham dito à diretoria: ‘Não se pode falar de índio no Brasil’.” Estranhamente o homem branco chegou/ pra construir, pra progredir, pra desbravar/ e o índio cantou seu canto de guerra/ não se escravizou, mas está sumindo da face da Terra, dizia o samba publicado no mesmo ano, apenas no LP Canta, Canta, Minha Gente.
Antes, em 1972, excursionou pela primeira vez por Angola, experiência cujo impacto o também escritor Martinho narra no livro Kizombas, Andanças e Festanças (1992). “O primeiro show foi num reduto de negros, chamado N’Gola Cine. Por acaso era 7 de setembro, e eu, com espírito ainda militar, nacionalista, decidi falar sobre a Independência do Brasil. O teatro inteiro calou-se.” Angola era ainda uma colônia portuguesa, e ele foi advertido a não repetir o discurso nos shows seguintes.
De volta ao Brasil, tomou reprimenda equivalente ao declarar à imprensa local que havia uma revolução em curso pela libertação de Angola (consumada em 1975). “Ninguém da minha geração estudou sobre África. Estudávamos reis, rainhas, gregos, mas África nunca. Para nós, era um continente formado apenas por uma grande floresta, animais e negros que vieram escravizados para o Brasil. De repente me vi em África. Voltei para cá e comecei a falar que aqueles países iam ficar independentes.”
No início dos anos 1980, esteve no continente dos ancestrais com o projeto Canto Livre de Angola, uma comitiva de artistas brasileiros liderada pelo produtor Fernando Faro. Na volta, ficou “doidão”, por “tensão e excesso de birita”, segundo -suas palavras. “Fui internado, fiz sonoterapia por 15 dias. Poderia ter carteira de maluco. Fui estudar um pouco a história da loucura, cheguei até Freud. Antigamente era considerado um mal do inferno, os loucos tinham de resistir à tortura para melhorar. Hoje a loucura é mais entendida.”
Desde a década de 1960 era tido como comunista. “Fiquei visto como isso, mas não era”, diz, miudinho. Não chegou a ser preso ou maltratado, aqui ou na África. “Sou considerado em Angola por causa disso, eles precisavam de transparência e eu falei da luta deles no Brasil. E aqui a polícia repressora pensava que eu era um militante muito forte, que eu tinha respaldo. Acho que não me prenderam porque eu era muito popular. Na época, não tinha outro, nem Roberto Carlos”, avalia. “Para a ditadura, ser do movimento negro era mais perigoso que ser comunista.”
Isso significa que o manso cantor de Pra Que Dinheiro (1969), Segure Tudo (1971), Requenguela (1973), Disritmia (1974), Choro Chorão (1976) e Devagar, Devagarinho (1995) pertencia ao movimento negro? “Eu não gostava muito de movimentos. Abdias do Nascimento e Milton Gonçalves eram os mais combativos. Eu ficava no meu canto, fingindo que não estou fazendo nada…” Responsável pela popularização do partido alto, Martinho ficou à margem da turma que no início dos anos 1970 tentou forjar um black power à brasileira e foi reprimida pela ditadura. “Toni Tornado era radical. Eu não fazia discurso. Fazia coisas. Tem de ter de tudo, o radical, o pela paz, outro pela música, assim como Malcolm X era pela guerra e Martin Luther King era pela paz.”
Avalia que esse movimento teve grande importância política na formação do Brasil como é hoje. “Avançou aos poucos, com todos os segmentos lutando contra a ideia de que não havia racismo no Brasil, baseada na Casa Grande e Senzala do Gilberto Freyre.” Opina sobre o atual estágio da luta racial no País: “O racismo doente hoje não existe. Racismo é uma doença, achar que o negro não é nada. Mas isso são os mais velhos, a juventude não pensa mais assim. A classe dominante, embora não tenha essa doença, ainda é racista, só quer empregar negros em cargos subalternos. Levei um susto quando fui para os Estados Unidos. Todo mundo me prevenia ‘cuidado, os Estados Unidos são um país racista’, e pela primeira vez vi negros em cargos maiores, em limusines”.
O autor de O Pequeno Burguês afirma que a Universidade Zumbi dos Palmares, voltada prioritariamente a estudantes negros, é “uma das coisas mais importantes do Brasil”, e lamenta que a maioria dos brasileiros desconheça sua existência. “Há uns três anos, fui contratado pela Uniban de São Paulo para fazer propaganda. Pagaram muito bem, como é que pode?”, graceja.
Militante histórico do carnaval, Martinho defende a relevância cultural de enredos que na ditadura enfrentavam acusações de ser oficialescos e/ou pernósticos. “Falavam de independência, abolição. As escolas tiveram uma importância muito grande na integração contra o preconceito. Foram sempre discriminadas, e nunca discriminaram.” Vamos preparar lindos mamulengos/ pra comemorar a libertação, ecoavam os versos de Onde o Brasil Aprendeu a Liberdade, sexto lugar no desfile de 1972. Afirmando-se um otimista (“as revoluções foram feitas pelos otimistas, não pelos conformistas”), Martinho destina discreto elogio ao Brasil atual: “Na política, não tivemos grandes exemplos, com exceção de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek. E, agora, de Lula”.
Entrevista concluída, ele vibra com a paixão do momento, por Noel Rosa. Entre goles de cerveja, expõe à filha Mart’nália quão avançado era o compositor 80 anos atrás: “Ele tinha uma postura contra todos os preconceitos, sem falar e sem botar na música. Foi o primeiro a tratar do preconceito contra homossexuais, fez uma música (Mulato Bamba) e dedicou a Madame Satã. Os sambistas de morro eram discriminados, Noel ia lá, fazia parceria com eles, dormia com elas. O cara era branco, feio, e arranjava as mulheres que queria”. Está elogiando Noel Rosa, mas pelo avesso quase parece falar de… Martinho da Vila. •

Revista Carta Capital

Nenhum comentário:

Postar um comentário