segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Te Contei, não ? - A Turma do Funil

 
 
 
À meia-noite do dia 28 de setembro, uma sexta-feira, quem passou pela Rua Mem de Sá, na Lapa, viu uma cena exótica: uma fila de jovens vestidos como vikings e valquírias na porta do Teatro Odisseia. Era uma espécie de gincana. Quem fosse fantasiado daquela maneira à Taverna Viking, festa de temática medieval que ocorre uma vez por mês na casa, ganhava doses liberadas de hidromel, a bebida típica dos vikings. Naquela noite, seriam esvaziadas 24 garrafas diretamente na boca dos frequentadores — a 25ª seguiria como prêmio ao casal que ganhasse o Concurso de Beijo realizado no auge do evento, lá pelas 3h. Não muito longe dali, no Espaço Acústica, na Praça Tiradentes, a festa Tropical Bacanal tinha uma brincadeira diferente: por volta das 2h, três produtores invadiram a pista de dança com bambolês e uma garrafa de uísque. Quem conseguisse rodar o artefato na cintura por dez segundos ganhava uma talagada.
No sábado seguinte, véspera de eleição municipal, a Wonka Party se inspirou no filme “A fantástica fábrica de chocolate” para atrair público: cupons dourados escondidos no salão podiam ser trocados por chocolates ou doses de bebida no bar. Na sexta-feira posterior, dia 12 de outubro, nem a chuva torrencial que lavou a Lapa tirou da porta do Odisseia a fila para entrar na Pop Up!, festa com farta distribuição de cachaça e sorteio de barril de cerveja, além do Megabeerbomb, um grande funil com mangueiras acopladas na saída para se beber mais, e mais rapidamente, com a ajuda da gravidade. Usado por até quatro pessoas ao mesmo tempo, o instrumento torna possível tomar uma lata de cerveja em três segundos. Naquela noite, o Megabeerbong foi disputado a tapa pela turma que guardava lugar à beira do palco, onde os DJs o posicionam. Em cada aparição do brinquedo, 12 latas eram derramadas funil abaixo.
Conhecidas como drinking games, as brincadeiras que estimulam o consumo excessivo de álcool hoje são os principais atrativos das festas com público entre 18 e 24 anos que ocupam locais como Fosfobox, em Copacabana; Espaço Franklin, no Centro; e Espaço Rampa, em Botafogo; além do Odisseia e do Espaço Acústica. A despeito da música ou do público, o chamariz são os jogos que envolvem bebida, seja como mote ou premiação. Outros exemplos que chamam a atenção são a festa Tekiller, que tem uma Batalha de Tequila, na qual ganha uma garrafa da bebida quem vira quatro doses primeiro. Em algumas edições, “o primeiro a cair bêbado ganha uma tatuagem”, como escrito na filipeta de divulgação. Ou a American Party, cuja atração principal é o Jager Beer Pong, uma competição em que dois times em lados opostos de uma mesa tentam acertar bolinhas de pingue-pongue no copo dos adversários, obrigando-os a virar uma mistura de cerveja com Jagermeister. Sem falar nas festas com os sugestivos nomes de Higher! ou Allcool Party.
— Antigamente, o mais importante era a música. Hoje em dia, para uma festa ser boa, ela tem que ter muitas atrações. Cada dia aparecem mais festas disputando o mesmo público, se não criarmos um diferencial, não atraímos as pessoas — justifica a produtora Luísa de Castro, de 21 anos, que se formou em Gastronomia e, há quatro meses, trocou o estágio numa fábrica de tortas pelo emprego na produtora de festas Blue Fish, responsável pela Tekiller, Taverna Viking e Bubble Pop, que distribui champanhe. — Festa hoje em dia é igual a cruzeiro. Antes, as pessoas queriam viajar. Hoje em dia, todo mundo quer “fazer um cruzeiro”. O que vale são as atrações, os brindes, as fantasias, os games.
Ideia é importada dos EUA e da Alemanha
Depois do reinado das festas de rock, das festas dos anos 80 e das festas com DJ-celebridade, só para citar as últimas tendências da noite jovem carioca, o público assiste (boquiaberto) o advento das festas com drinking games. Não é difícil perceber esta mudança de perfil: nos flyers, o estilo de música muitas vezes nem é citado. Em letras garrafais, o destaque fica por conta das brincadeiras importadas de festas americanas (como o Beer Pong) e alemãs (como o Beerbong, usado nas Oktoberfest).
Enquanto tomavam um ar do lado de fora da Bubble Pop, que estreou no Odisseia em 5 de outubro, Luísa e Fernando Castro, de 25 anos, da Blue Fish, explicaram como regulam a distribuição gratuita de álcool:
— Calculamos pelo número de pessoas. Como hoje vieram entre 200 e 300, limitamos a distribuição de champanhe a seis garrafas. Na Taverna, que é bem cheia, liberamos mais. Não acho que brincadeiras estimulem as pessoas a beberem mais do que fariam. Não vou dizer que nunca tivemos problemas, já aconteceu, uma vez ou outra, de alguém sair mal da batalha de tequila, mas não é culpa nossa, a festa é para maiores de idade — alega Fernando.
Assim que completou 18 anos, no ano passado, o estudante de Sistemas de Informação da PUC-Rio Gabriel Sotero começou a sair à noite com os amigos. Insatisfeito com as festas que frequentava, decidiu a criar a sua, “mais animada”, segundo ele. Juntou-se a um amigo DJ da mesma idade e fundou a Wonka Party. Tal qual o personagem Willy Wonka, do filme, eles distribuem chocolates e escondem cupons dourados na pista. Para animar ainda mais o grande pique esconde em que se transforma a festa, Gabriel fez um curso de DJ este ano e, quando está no comando das picapes (ou laptops), vai de Lady Gaga a Xuxa. Apesar da pouca experiência na noite, o estudante atrai cerca de mil pessoas por evento, com entrada a R$ 30.
— Sem dúvida a Wonka fica lotada por causa da quantidade de brincadeiras. Em toda edição a gente tenta inovar, fazer algo diferente — diz Gabriel, que relativiza o estímulo ao consumo de álcool em seus eventos: — As pessoas saem de casa para beber, faz parte da noite, as brincadeiras são apenas mais uma atração.
Criador da 7 Day Weekend, primeira a usar um Beerbong, o produtor musical e DJ Bruno Salgado de Oliveira, conhecido como Sal, de 27 anos, acha que essa mudança de estilo da noite do Rio é natural.
— Na 7 Day, o principal atrativo são as músicas diferentes que o frequentador só vai ouvir aqui. Fazemos muita pesquisa musical. Mas também queremos ver as pessoas se divertirem, e acho que é esta a função do Beerbong. Não acho que isso estimule o consumo de álcool. Há muitas festas cujo principal interesse é lotar a casa, custe o que custar, dando garrafas de bebida, e isso sou contra. Mas a noite do Rio é muito plural, tem espaço para todo tipo de evento — comenta Sal, que levou o brinquedo pela primeira vez à festa por acaso: tinha usado o instrumento dias antes no clipe de sua banda.
Empresas entram na onda
De olho no mercado que esse tipo de evento fez surgir, o administrador de empresas carioca André Bonilha, de 26 anos, abriu em fevereiro a loja virtual Vira Vira, que, faz questão de frisar, é a “primeira empresa brasileira de drinking games registrada na Receita Federal”. No site, são vendidos itens como o Beerbong simples (R$ 29,90) e o quádruplo (R$ 79,90), além de outros apetrechos. Os principais compradores, no entanto, são os paulistas — o que leva a crer que a moda também chegou a outras cidades do país.
— Quem mais compra com a gente é o pessoal de Campinas, principalmente para eventos de universidade, chopadas e festas de rodeio — comenta André, que contabiliza em R$ 200 mil seu rendimento este ano.
A ideia da loja surgiu depois de uma temporada de estudos em Nova York, em 2009.
— Lá, todas as festas de faculdade tinham drinking games e campeonatos de Beer Pong. Quando voltei, percebi que isso não era comum no Brasil. Achei que tinha tudo a ver com nosso espírito de festa e chamei três amigos para entrar no negócio — explica André, que faz demonstrações em festas para divulgar os produtos. — As pessoas adoram brincar. O bong nada mais é do que um acessório a mais para a descontração.
É o que pensam muitos dos frequentadores das nove festas em que a Revista O GLOBO esteve nas últimas três semanas. Para os jovens ouvidos, a distribuição de bebida é fator decisivo na hora de escolher em qual evento ir. Se for com alguma brincadeira, melhor ainda. Fantasiada de valquíria na fila da Taverna Viking, a estudante Mellyna Barone, que até a meia-noite do dia em questão tinha 17 anos, veio de Arraial do Cabo, na Região dos Lagos, onde vive, especialmente para comemorar o aniversário de 18 anos na festa medieval, cujo sucesso ela acompanhava pelo Facebook. Com uma amiga, ela queria conhecer (e garantir) o famoso hidromel, bebida fermentada à base de mel, de origem medieval, citado no livro “O Senhor dos Anéis”, que seria liberado em doses a noite toda.
— Meu sonho era vir aqui. Convenci meus pais a deixarem, e pelo que eu via na internet, é a mais animada — disse Mellyna, que esperou dar meia-noite para entrar, já que nesses eventos a entrada de menores é proibida.
Nem todas as pessoas que vivem a noite, no entanto, veem os drinking games como uma simples descontração. O DJ Tito Figueiredo, de 37 anos, 11 deles à frente da festa de rock Paradiso, é crítico ferrenho da nova moda:
— As festas hoje são um freak show, com rinha de tequila, touro mecânico, distribuição de pirulito. Para compensar a falta de conteúdo artístico, de qualidade musical, eles encontraram essa forma banal de diversão, que acaba estimulando o alcoolismo. O álcool é uma droga que mata, não é uma brincadeira — lamenta Tito. — Eu sempre fiz promoções na Paradiso, mas relacionadas ao conteúdo musical da festa. Para ganhar descontos, as pessoas tinham que participar dos debates sobre as músicas que tocavam nos sets na comunidade do Orkut.
O produtor musical e DJ Nado Leal faz coro. Trabalhando há 22 anos em festas e grandes eventos da cidade — Rock in Rio, réveillon de Copacabana, Fashion Rio... —, ele está assustado com a nova cena. Além de beberem mais, diz ele, os jovens gastam muito mais.
— A noite mudou radicalmente. Hoje vejo garotos de 20 anos gastando R$ 200 de uma vez. Antes eles não bebiam uísque, como hoje. Eu percebo que esse novo comportamento começou com a entrada dos energéticos na noite. Essas bebidas camuflam o gosto do álcool, eles bebem em maior quantidade. O estímulo que essas festas dão à bebedeira é muito louco. Mesmo os que saem de casa com o dinheiro contado agora bebem o equivalente a muito mais, pela distribuição gratuita de doses — atesta Nado, que não aceita tocar em festas com bebida de graça. — As características de uma boa festa estão sumindo, a boa música, o ambiente naturalmente descontraído, a espontaneidade. O problema é isso se tornar um padrão, o que eu temo que vá acontecer, pois são esses eventos que estão injetando dinheiro na noite da cidade.
Com 25 anos de carreira, o DJ Wilson Power, de 43, parou de beber há quatro. E apesar de tocar em festas que têm os drinking games como atrativo, ele vê com preocupação esse consumo excessivo de álcool:
— De uns cinco anos para cá, a noite mudou bastante. Eu sempre toquei porque eu queria atrair as pessoas pela música. Hoje, é a última coisa que importa. E esse vazio está sendo preenchido com álcool. Sou contra essa banalização da bebida como trunfo para encher as festas. Eu sou testemunha desse processo: se eu não parasse de beber, ia morrer. Já vi muita gente ficar pelo caminho, e é nisso que eu penso quando vejo a garotada em coma alcoólico em festas que deveriam estar se divertindo, dançando, azarando.
Diversão perigosa
Responsáveis pela locação para as festas, os proprietários dos espaços têm um posicionamento comprometido: se por um lado têm o faturamento do bar prejudicado pela distribuição gratuita de bebidas (os produtores das festas normalmente ficam com o dinheiro da entrada, mas o lucro do bar é do estabelecimento), por outro, sabem que são estes os eventos que mais atraem público atualmente.
— Uma show de MPB no Odisseia não atrai nem 200 pagantes, enquanto qualquer festa dessas leva 700 pessoas à casa — observa um dos sócios, Áureo César Lima, de 37 anos, que considera os drinking games “mais do mesmo”. — Essas brincadeiras de hoje são as promoções de bebida de antes. A gente faz um controle, exige que a bebida distribuída seja comprada no nosso bar, conversa com os responsáveis antes, para evitar excessos, até porque exagero não traz lucro para a casa, só traz problemas.
No Espaço Acústica, o gerente Marcos Corrêa, de 31 anos, reconhece que muitas festas da casa “viraram uma chopada” (lá, na festa Tropical Bacanal, por volta das 4h40m, duas jovens saíram carregadas; e na Wonka Party, um rapaz alcoolizado foi abandonado por dois amigos dentro de um táxi).
— O ideal é que não tivesse nada disso, mas nós também temos que acompanhar o movimento natural da noite, procurar entender essa geração, que, apesar de ser mais histérica, é também mais pacífica — diz Marcos, que cancelou um evento este ano quando percebeu que o organizador tinha levado 60 litros de vodca comprada fora para distribuir na festa, contrariando as regras da casa. — Eu não escolho uma festa porque me dão tequila na boca, mas essa é só a minha opinião, não a realidade dessa nova cena.
O estudo mais recente sobre o consumo de álcool por este público específico foi divulgado em 2010 pela Universidade de São Paulo (USP), em parceria com a Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas (Senad). Segundo o “I Levantamento nacional sobre o uso do álcool, tabaco e outras drogas entre universitários das 27 capitais brasileiras”, 86,2% dos universitários já usaram álcool em algum momento da vida, sendo que 79,2% experimentaram antes dos 18 anos, e 54% antes dos 16 anos. A pesquisa concluiu que a faixa etária de 18 a 24 anos é a que mais consome álcool no país. São eles, também, os que mais praticam o que os especialistas chamam de binge drinking: o consumo pesado episódico, classificado como cinco doses numa noite para homens e quatro para mulheres. Entre os homens, 29,2% já são bebedores de médio e alto risco; entre mulheres, 16,2%.
— Quanto mais precoce o abuso do álcool, maiores as chances de desenvolver dependência — diz a psicoterapeuta Ivone Ponczek, diretora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Atenção ao Uso de Drogas da Uerj.
Para ela, os drinking games banalizam os riscos do alcoolismo:
— O álcool demora a se instalar como dependência, por isso os indícios não são identificados imediatamente. O organismo jovem é mais sensível, metaboliza o álcool de maneira mais lenta. É importante tirar o cunho moralista do debate, todos tomam um porre um dia. Mas essa forma de lidar com a bebida pode ser destrutiva, pois o limite entre o lúdico e o perigoso fica diluído. Sem falar nos problemas relacionados, como acidentes de trânsito, atos de violência, abuso sexual etc.


Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/rio/drinking-games-viram-atrativo-da-noite-jovem-do-rio-6469715#ixzz2AgkdmD8X

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