Em apenas 14 minutos, o trailer de um filme chamado Innocence of the muslims (Inocência dos muçulmanos) consegue reunir uma dezena de cenas ofensivas ao credo muçulmano. Numa delas, o profeta Maomé, fundador do islã, faz sexo com várias mulheres, entre elas uma criança. Em outra, é chamado de “filho bastardo” por um guarda enquanto abocanha uma bisteca de carne de porco, alimento proibido pelas leis muçulmanas. Tosco, amadorístico e de péssimo gosto, o filme é uma produção independente de um egípcio-americano que mora na Califórnia chamado Nakoula Basseley Nakoula, de 55 anos, um contraventor que já fora preso no mesmo Estado. Ele usou o nome de Sam Bacile para postar o filme no YouTube. Em entrevista, afirmou ser judeu israelense e que o filme fora bancado por um grupo de 100 judeus, que lhe deram US$ 5 milhões. Disse ainda que o “islã é um câncer”. No dia seguinte, o FBI o desmascarou. Nakoula é um cristão copta, grupo minoritário perseguido no Egito por militantes islâmicos radicais, e contou com o apoio do pastor americano Terry Jones, o mesmo que em abril de 2011 queimou exemplares do Corão, o livro sagrado do islã, estopim para uma onda de ataques e mortes no Afeganistão.
O trailer de Nakoula foi colocado no YouTube em julho. Por sua irrelevância, estaria destinado ao limbo da internet, onde residem tantas outras manifestações preconceituosas nocivas. Ao ser legendado em árabe por seus produtores e publicado novamente na internet no início de setembro, transformou-se numa bomba religiosa. Ela explodiu no Oriente Médio e em outros países islâmicos no fatídico 11 de setembro, aniversário do ataque às Torres Gêmeas de Nova York, em 2001. Para os muçulmanos, a apresentação da simples imagem de Maomé constitui blasfêmia. Retratar o profeta como um idiota bissexual, pedófilo e sanguinário e traduzir a blasfêmia para o árabe na internet é um ato de feroz e calculada provocação. “Esse tipo de filme deve ser condenado por incitar o ódio. O filme em si é horrendamente ofensivo e foi feito especificamente para provocar esse tipo de reação”, afirma Samer Araabi, diretor de Relações Governamentais do Instituto Árabe-Americano.
Os autores e divulgadores do filme conseguiram desencadear, na semana passada, uma onda de revoltas e ataques a representações diplomáticas americanas e de países ocidentais no mundo árabe. Não se via nada igual desde 2006, quando o jornal dinamarquês Jyllands-Posten publicou 12 cartuns, um deles retratando Maomé com um turbante na forma de dinamite. Na ocasião, houve três semanas de protestos e uma centena de mortes. Na sexta-feira passada, em dois dias, já havia 13 mortos.
No episódio mais grave de reação ao filme, foram mortos o embaixador americano na Líbia, John Christopher Stevens, de 52 anos, e outros três funcionários da embaixada. Stevens, um apaixonado pelo mundo árabe, foi vítima de uma multidão armada que atacou o consulado dos EUA em Benghazi, no leste líbio. Ainda não ficou claro se o ataque foi causado apenas pela fúria religiosa desencadeada pelo vídeo - ou se fora marcado com antecedência, para coincidir com o 11 de setembro. Um embaixador americano não morria em serviço desde 1979, quando Adolph Dubs foi sequestrado no Afeganistão e acabou vítima de uma malsucedida tentativa de resgate. Até o fechamento desta edição, não fora divulgada a causa da morte de Stevens -provavelmente asfixia por inalação da fumaça, causada pelo incêndio no consulado. Os momentos finais do embaixador foram expostos ao mundo por meio de uma imagem feita com um celular, em que ele aparece arrastado para fora do consulado, aparentemente sem vida. A foto lembra as cenas chocantes do corpo do ex-ditador líbio Muammar Khadafi, assassinado por rebeldes e exposto pelas ruas de Sirte. A mesma Primavera Árabe que derrubou Khadafi deu liberdade aos extremistas que mataram Stevens.
A forma alarmante como uma peça de provocação islamofóbica espalhou o ódio no norte da África e na Península Arábica - na sexta-feira, embaixadas americanas eram atacadas também na Tunísia e no Sudão, assim como ocorrera na quinta-feira no Egito e no Iêmen - revela que o ambiente político e religioso na região continua carregado de ódio ao Ocidente. Os fatos aumentam o ceticismo sobre os rumos da Primavera Árabe, movimento político que, nos últimos dois anos, livrou Egito, Tunísia, Líbia e Iêmen de ditaduras que duravam décadas. Nos tempos de Khadafi, na Líbia, ou de Hosni Mubarak, no Egito, a intolerância religiosa era contida pela tortura e pela repressão. Qual será, agora, o destino de nações como Egito e Líbia? Saberão caminhar na direção democrática, como a Turquia? Ou estarão prestes a se tornar Estados fundamentalistas ou teocracias que abrigam e incentivam grupos terroristas? Bandeiras pretas com o símbolo da al-Qaeda foram vistas no atentado em Benghazi e na invasão à embaixada americana no Cairo. Um mau sinal.
Na Líbia, apesar de o islamismo ter sido a religião oficial nas quatro décadas do ditadura, Khadafi sufocou os religiosos, por considerá-los inimigos capazes de incitar revoltas. No Egito, Mubarak temia que os islâmicos transformassem o país em Estado religioso e mantinha os líderes muçulmanos amordaçados por seu serviço secreto. A primeira eleição líbia pós-Khadafi contou com 60% de participação popular e levou ao poder uma aliança liberal e candidatos independentes, que escolheram o moderado Mustafa Abushagur primeiro-ministro. O país parece caminhar na direção de democracias islâmicas moderadas, como Turquia ou Indonésia, onde a influência religiosa sobre política é menor.
No Egito, os opositores derrubaram Mubarak e realizaram a primeira eleição livre da história. O Partido da Liberdade e da Justiça, braço político do grupo religioso Irmandade Muçulmana, venceu as eleições legislativas e elegeu seu candidato à Presidência, Mohamed Morsi. A principal conquista dos levantes populares foi a liberdade de expressão, reprimida por tantos anos. “Uma das principais dificuldades da democracia é conseguir lidar com as muitas vozes, inclusive as mais radicais” afirma Shadi Hamid, da divisão do instituto americano Brookings em Doha, no Catar. “Os novos governos do Oriente Médio não têm controle sobre as forças envolvidas. Uma cultura democrática ainda terá de nascer nesses países.” Por causa desse lento nascimento democrático na região, as reações dos governantes aos ataques às embaixadas foram diferentes. O governo líbio deu uma resposta enérgica. Criticou a ação dos manifestantes e lamentou a morte de Stevens. O governo egípcio patinou. Morsi demorou um dia para repreender os responsáveis pelos distúrbios, de maneira discreta e via Facebook. Qualificou de “pueris” e “irresponsáveis” os ataques às embaixadas. Para piorar, decretou a prisão de cristãos coptas e apoiou a Irmandade Muçulmana, promotora de um protesto contra “o grosseiro vídeo anti-islâmico” que causou os distúrbios. Morsi afirmou que os egípcios “têm o direito de protestar contra a produção blasfema”.
A posição dúbia do governo egípcio irritou os americanos. O Egito é o segundo país da região que mais recebe ajuda dos Estados Unidos, depois de Israel - um total de US$ 2 bilhões ao ano. Em entrevista na quarta-feira, o presidente americano, Barack Obama, afirmou que a relação entre Estados Unidos e Egito não seria totalmente amistosa. “Não acredito que possamos considerá-los como aliados, mas não os consideramos inimigos”, disse Obama. Na mesma noite, ele falou por 40 minutos com Morsi para expressar sua irritação e exigir posturas mais claras do governo egípcio contra os radicais. A repressão aos manifestantes nas ruas do Cairo foi recebida com perplexidade pelos militantes islâmicos. Como o governo, que veio da Irmandade Muçulmana, quer impedi-los de defender o profeta? “Morsi não condenará abertamente os ataques, porque muitos de seus eleitores são muçulmanos conservadores e estão entre os radicais que protestam contra o filme”, afirma Hamid, da Brookings. “Ao mesmo tempo, os Estados Unidos não devem sinalizar com uma diminuição da importância do Egito como parceiro, porque isso facilitaria a ação de grupos extremistas.”
A morte do embaixador Stevens na Líbia e o desânimo que Obama revelou sobre a relação com o Egito sugerem que os americanos estão fora de sintonia com os eventos no norte da África. A influência americana durante a Primavera Árabe foi limitada. Os EUA se viram obrigados a apoiar a mudança de regime em países onde antes davam amparo a ditadores -caso de Líbia, Tunísia e Egito. Agora, seguem tentando adaptar-se a uma situação que não foram capazes de antecipar. Nos últimos meses, os americanos ignoraram sinais de tensão na Líbia. Em junho, um comboio que saía do consulado do Reino Unido em Benghazi com o embaixador britânico na Líbia foi atacado por extremistas com granadas. Dois agentes ficaram feridos, e ninguém morreu. Os agentes britânicos alertam o governo americano sobre a fragilidade da segurança. O próprio Chris Stevens fora avisado do risco de atentados. “Há menos de seis meses, disse a ele que a segurança em Benghazi não era suficiente”, afirmou à revista americana Time o cientista político Fathi Baja, ligado aos opositores de Khadafi e amigo de Stevens. “Disse que ele precisava trazer mais seguranças dos Estados Unidos.” A perplexidade americana após o ataque levou Obama a enviar um destacamento de dois navios com 50 fuzileiros navais para a costa da Líbia.
O retorno do clima de guerra era tudo o que os extremistas de ambos os lados queriam. “Trata-se de uma luta entre dois lados errados: os islamofóbicos e os radicais islâmicos”, afirma Eric Trager, especialista em Egito do Washington Institute. “São ditas coisas provocativas sobre o islã todo dia. Nesse caso específico, houve gente agindo nos bastidores para provocar esse tipo de reação. É uma tentativa deliberada de desestabilizar o Egito num momento crucial e delicado.” Essa luta de lados errados não é uma batalha de maiorias, mas de grupos menores e marginais. De um lado, os radicais cristãos que produzem uma peça de provocação destinada a insultar uma religião e incendiar o 1,6 bilhão de muçulmanos no mundo. No outro extremo, os radicais islâmicos que tentam se aproveitar desse pretexto para incitar os fiéis contra o Ocidente e instaurar uma teocracia, valendo-se do espaço político criado pela Primavera Árabe. Espremida entre minorias radicais, a vasta maioria tenta, pacificamente, viver sua vida em liberdade e prosperidade. No dia seguinte ao atentado que matou o embaixador americano, dezenas de pessoas saíram às ruas em Benghazi empunhando cartazes pedindo desculpas pelos atentados. Eles tentavam explicar, em inglês precário, que o islã não é uma religião de assassinos. As pessoas de boa-fé no resto do mundo sabem disso.
Com Teresa Perosa
Revista Época
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