segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Te Contei, não ? A pré - história de Drummond




Px
Há um anjo protetor dos literatos novos, escreveu certa vez Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Ocupa-se em dar sumiço a textos juvenis para salvar autores do embaraço de se confrontar, anos depois, com a própria imaturidade. O que um dos maiores poetas da língua portuguesa deixou de prever foi a existência de um anjo protetor dos leitores, a operar atrás desse material perdido para colocá-lo nas mãos de um editor.
Um desconhecido (e único) volume escrito pelo moço Drummond chegou faz pouco tempo até Antonio Carlos Secchin, ensaísta e crítico literário dedicado a abastecer de raridades sua biblioteca em Copacabana, no Rio de Janeiro – um oásis que abriga 12 mil obras de literatura brasileira. Encadernadas numa firma de bairro, sob capa elegantemente azul, as páginas de aprendiz reuniam versos datilografados por uma jovem Dolores Dutra de Morais, já noiva do poeta de Itabira (MG). Esses mesmos 25 Poemas da Triste Alegria, assim intitulados, saem em meados deste mês, quase um século depois de concebidos, pela Cosac Naify. A edição é a nata de uma série de lançamentos e relançamentos que, desde o início de 2012, vem celebrando os 110 anos do escritor. Ele também receberá justíssima homenagem na 10ª Festa Literária Internacional de Paraty, programada para o começo de julho.
No meio do caminho que vai desde 1924, quando se deu a publicação artesanal, até os dias atuais, o tal volume único foi presenteado por Drummond ao amigo Rodrigo Mello Franco de Andrade – e este o emprestou a uma terceira pessoa ou o devolveu ao poeta, segundo diferentes versões. Ao menos dois outros autores modernistas leram os poemas: Mário de Andrade, que enviou carta a Drummond com uma apreciação quase demolidora em 1926, e Manuel Bandeira, que se referiu a alguns em tom mais ameno numa crônica de 1958. Quem forneceu o exemplar a Secchin é outro bibliófilo, cuja identidade o crítico prefere manter em sigilo. “Gosto de dizer que livro raro não tem procedência. Tem destino”, brinca o estudioso, que jamais ouvira falar da obra até vê-la pela primeira vez. “O bibliófilo que descobre um livro desses, exemplar único, comprova que o paraíso existe, mas fica na Terra.”

PIOR COISA DO MUNDO
Inusitada por revelar a face extraviada do aprendiz de poeta, a obra carrega graça e valor adicionais por aquilo que ocupa seus espaços em branco: os comentários ao lado de cada poema feitos à mão pelo próprio Drummond, quando teve o volume novamente consigo em algum momento de 1937. Nas muitas linhas, que preenchem às vezes página inteira, ele ironiza o jovem que havia sido 13 anos antes. Mário de Andrade figura entre os mais citados nas anotações: “(O poema) Momento Feliz é a coisa pior deste mundo”, escreve o literato mineiro, concordando com a crítica do autor de Macunaíma, que ameaçara romper a amizade se aquilo fosse publicado. Mais adiante, ao reler versos de Convite Semanal, Quase Noturno e Ninguém Sabe, Drummond confessa sentir orgulho por ter abandonado a retórica, o penumbrismo (corrente literária fortemente intimista de inícios do século 20) “e outras covardias intelectuais”. Esforça-se para encontrar ali alguma “substância mais vivida do que literária”, e não acha.
No prefácio que redigiu para o lançamento da Cosac Naify, Secchin define Os 25 Poemas da Triste Alegria como um “quase livro de pré-poeta”, constituído de dois livros paralelos. Um é o do jovem e hesitante autor, antes de ser modernista. Outro, o do crítico de si mesmo. Ambos os ângulos podem ser contemplados pelo leitor nessa reedição, fac-similar. As imagens das páginas originais – que se espalham ao longo de todo o novo volume – foram fotografadas por Vicente de Mello, especialista em reproduzir obras de arte. A caligrafia pequena do escritor não deverá causar desconforto. A parte manuscrita é mantida, mas há também sua transcrição em letra de fôrma para que se tenha mais uma opção de leitura, explica o editor Milton Ohata. O livro inclui, ainda, textos de época assinados por Drummond e encontrados em arquivos mineiros, que ajudam a compreender o que ele pensava sobre poesia.
O poeta aprovaria tal inconfidência? “O método infalível para proscrever um livro juvenil é destruir os originais”, responde Secchin. “Se não o fez, e ainda por cima o repassou a outrem, quem sabe até para evitar tentações predatórias, é porque desejava preservá-lo.” Se é menor o valor literário, avalia, é muito maior o valor como documento da formação do autor. Desde a redescoberta do livro, a ideia da reedição agradou à família Drummond.

PEITO ABERTO
De trajetória clandestina, lembrado muito esparsamente pelo escritor e pelos amigos que viram esses primeiros versos, o novo volume de inéditos surpreenderá até seus leitores mais dedicados. Entre lembranças, entusiasmo e humor, poetas e críticos que há décadas acompanham a obra do mineiro receberam parte da edição pela internet para comentá-la livremente, a pedido de BRAVO!. “O fac-símile me levou de volta aos 20 anos, quando organizei uma coletânea de minhas poesias e mandei os originais a Drummond”, recorda-se a paranaense Josely Vianna Baptista, autora de Ar, Corpografia e do recente Roça Barroca.
Ela conta que o poeta lhe escreveu uma carta amistosa, “com aquela mesma letrinha inconfundível de 1937”, na qual citava versos seus dos quais não a salvou o anjo protetor dos literatos novos. “Vêm-me à cabeça as frases, entre gentis e travessas, em que ele dizia ser importante não ‘temer malambas nem remandiolas’, palavras que cometi no tal poema e que, revisitadas de próprio punho por Drummond, com o tempo passaram a me parecer brejeiramente irreverentes.” Sobre a correspondência entre Drummond e Mário de Andrade, observa: “Interlocução de primeira, sem suscetibilidades nem narcisismos feridos, séria, sincera e nada sisuda”.
Poeta drummondiano nascido no Rio, Armando Freitas Filho, autor de obras como A Mão Livre e Lar, garante que nada falaria sobre o livro oculto se Drummond estivesse vivo, “pois ele brigaria comigo”. Como teme que o fantasma do amigo venha lhe puxar o pé, ele diz o “óbvio e verdadeiro”: ninguém analisa melhor os poemas do que o próprio autor. “Ouso, contudo, afirmar que esse Drummond inicial esboçou em Ninguém Sabe a potência que irromperia em José, muitos anos depois. Que poeta aprendiz conseguiria tamanho feito, com tal excelência, sobre sua poética futura? Uma antevisão desse teor não é meramente inconsciente, mas fruto coeso de uma vocação irrepreensível e insuperável.”
Para os estudiosos, o valor do livro como documento de formação é o que mais sobressai. “Trata-se de uma coletânea fascinante”, comemora John Gledson, crítico literário inglês que traduz e estuda, além do poeta mineiro, o romancista carioca Machado de Assis. O que, naqueles versos juvenis, seria estranho ao Drummond mais conhecido? “A adesão a uma estética penumbrista, a influência avassaladora de Álvaro Moreyra, de Ronald de Carvalho e de Guilherme de Almeida, as repetições de certas palavras, como ‘ironia’ e ‘indiferença’, além das indefectíveis menções a paisagens crepusculares, jardins e estrelas”, responde Gledson.
Os inéditos também reforçam ângulos do poeta ainda pouco estudados. “Nenhum desses poemas terá feito qualquer falta à obra de Drummond, mas todos interessam por demonstrarem que o jovem escritor sabia bem o que fazer com a música e o ritmo das palavras”, afirma Alcides Villaça, crítico literário da Universidade de São Paulo e autor, entre outros, da coletânea de ensaios Passos de Drummond.
Na opinião de Sérgio Alcides, crítico literário da Universidade Federal de Minas Gerais, o mais emocionante no livro são os comentários do Drummond maduro, ou nem tão maduro, mas já “feito”. “Há mistura de carinho e repulsa nesse reencontro consigo mesmo. O maior desconforto do poeta, ao reler suas tentativas antigas, é que elas são ‘meramente literárias’ (no mau sentido).” Os artigos de crítica incluídos na edição também merecem atenção, pois mostram que Drummond se expõe mais do que passaria a fazer depois da década de 1940, diz o professor da UFMG. “Os textos revelam a atenção que um jovem poeta de província dedicava ao contemporâneo, aos debates do seu tempo, com muita ânsia de participação, de tomada de posição. Ele escrevia de peito aberto, mas sem nenhuma leviandade – o que é muito bonito e raro numa pessoa assim tão jovem.”



Os poemas que acompanham esta reportagem são ­­­­fac-símiles­ da edição do autor (como A Sombra do Homem que Sorriu) ou transcrições que mantêm a grafia original (caso de Primavera nas Folhinhas e nos Jardins).
li-poema-drummond-1
PRIMAVERAS NAS FOLHINHAS E NOS JARDINS
O PERFUME DAS ROSAS ENTRA-ME PELO QUARTO,
NUMA LUFADA DE PRIMAVERA.
E EU FICO, DESVAIRADO, A SENTIR O PERFUME,
O PERFUME DAS ROSAS, PELO QUARTO...

NUMA LUFADA DE PRIMAVERA!

QUE BOM, LER OS POETAS SADÍOS,
E NÃO SABER DA LUA, DAS ESTRELLAS,
E NÃO SABER DO AMOR! E NÃO SABER DE TI!
(DE TI QUE ÉS PALLIDA E FEIA,
PALLIDAMENTE FEIA E MELANCOLICA.)
MAS APENAS SENTIR, ALLUCINANTE E FORTE,
O PERFUME DAS ROSAS, PELO QUARTO
NUMA LUFADA DE PRIMAVERA!

li-poema-drummond-2
VÊ COMO A AGUA SUSSURRA
VÊ COMO A AGUA SUSSURRA NO FUNDO DOS TANQUES ERMOS,
COMO A AGUA, INTIMAMENTE, CHÓRA.
E NA FACE DOS TANQUES ERMOS
BOIAM FLORES AZUES, GRANDES FLORES INDIFFERENTES.

A AGUA ESPADANA NO AR, EM FLORIDO REPUXO.
A ALEGRIA DA AGUA, SUBINDO
SOBRE A INDIFFERENÇA AZUL DAS GRANDES FLORES!
- VÊ O REPUXO CAHINDO
NOVAMENTE, SOBRE OS TANQUES ERMOS.

NOS JARDINS,
A IRONIA DA VIDA É FEITA DE BELLEZA.

(QUE RIDICULO PENSAMENTO...)

li-poema-drummond-3
A MULHER DO ELEVADOR
A QUE FICOU LÁ LONGE, NA GRANDE CIDADE...

A QUE EU VI APENAS UM MINUTO, UM MINUTO SOMENTE,
NO ELEVADOR QUE SUBIA.

COM QUE SAUDADE INEDITA EU ME LEMBRO
DA QUE NÃO FOI NEM UMA SOMBRA, UMA SOMBRA FUGAZ,
NO MEU DESTINO.

DA QUE FICOU, SORRINDO, COM UM POUCO DE MIM,
COM UM POUCO DO MEU SER ANONYMO E VULGAR,
A MILHARES DE KILOMETROS, NA GRANDE CIDADE...

Josélia Aguiar é jornalista e doutoranda em história. Edita o blog Livros Etc. na Folha.com.

O Livro: Os 25 Poemas da Triste Alegria, de Carlos ­Drummond de Andrade. Editora Cosac Naify, 255 páginas, R$ 79,90.


REvista Bravo

Nenhum comentário:

Postar um comentário