Aos 6 anos de idade, a assistente social Maria Teresa da Silva Oliveira, hoje com 56, sofria com um pesadelo recorrente. Ela se via como espectadora em uma sala de parto de um hospital, onde uma mulher gritava de dor enquanto pessoas de branco, unidas por cordas, se aglomeravam ao redor dela. A cena, que na época não passava de um tormento noturno para a pequena Teresa, hoje poderia ser interpretada como a única memória que ela guarda da mãe biológica. Separada da progenitora logo após nascer, ela foi adotada aos quatro meses de vida por outra família, na qual cresceu sem saber sua origem. Apesar da consciência de que era filha adotiva, há apenas oito anos, após confrontar o irmão de criação, ela pôde finalmente conhecer parte de sua história. Batizada originalmente como Maura Regina, Teresa é filha de uma portadora de hanseníase (doença também conhecida como lepra) que vivia internada em um hospital-colônia no interior do Estado de São Paulo. Para sua surpresa, sua trajetória se assemelha à de milhares de brasileiros que, entre 1920 e 1980, foram brutalmente retirados dos braços de suas mães doentes e enviados para internatos onde faltavam comida e afeto, mas sobravam maus-tratos. Agora, essa população que cresceu marginalizada, sofrendo com a desestruturação familiar e a falta de oportunidades, busca uma reparação do governo brasileiro.
Em junho, a ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário Nunes, recebeu em seu gabinete, em Brasília, representantes do Morhan (Movimento pela Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase), instituição que luta pelos direitos dos ex-pacientes e dos filhos de portadores de hanseníase. Nessa reunião foi criado um grupo de trabalho na Secretaria de Direitos Humanos para reunir dados sobre a questão dos “filhos separados” (termo usado para designar os filhos de ex-pacientes hansenianos) no Brasil, incluindo um levantamento sobre quantos seriam (estimativas variam entre 25 mil e 40 mil pessoas) e estudos sobre a necessidade de o Estado propor uma reparação a eles. Desde 2007, ex-pacientes que ficaram internados em hospitais-colônia recebem uma pensão vitalícia do governo no valor de dois salários mínimos, o que poderia ser estendido também a seus filhos. “Há uma responsabilidade clara do Estado nessa questão, pois a maioria dos filhos que foram segregados perdeu totalmente os vínculos com sua família biológica e todos tiveram seus direitos humanos violados”, disse a ministra Maria do Rosário à ISTOÉ. “Porém, não podemos pensar exclusivamente em uma indenização de caráter financeiro. É preciso estudar outras formas de promover uma reinserção dessas pessoas na sociedade e possibilitar o resgate dessa história, infelizmente ainda pouco conhecida.” Segundo o coordenador nacional do Morhan, Arthur Custódio, a entidade não quer discutir o sofrimento vivenciado pelos filhos de ex-pacientes com hanseníase. “Mas sim a alienação parental que foi praticada pelo Estado brasileiro ao longo de tanto tempo”, disse.
Em junho, a ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário Nunes, recebeu em seu gabinete, em Brasília, representantes do Morhan (Movimento pela Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase), instituição que luta pelos direitos dos ex-pacientes e dos filhos de portadores de hanseníase. Nessa reunião foi criado um grupo de trabalho na Secretaria de Direitos Humanos para reunir dados sobre a questão dos “filhos separados” (termo usado para designar os filhos de ex-pacientes hansenianos) no Brasil, incluindo um levantamento sobre quantos seriam (estimativas variam entre 25 mil e 40 mil pessoas) e estudos sobre a necessidade de o Estado propor uma reparação a eles. Desde 2007, ex-pacientes que ficaram internados em hospitais-colônia recebem uma pensão vitalícia do governo no valor de dois salários mínimos, o que poderia ser estendido também a seus filhos. “Há uma responsabilidade clara do Estado nessa questão, pois a maioria dos filhos que foram segregados perdeu totalmente os vínculos com sua família biológica e todos tiveram seus direitos humanos violados”, disse a ministra Maria do Rosário à ISTOÉ. “Porém, não podemos pensar exclusivamente em uma indenização de caráter financeiro. É preciso estudar outras formas de promover uma reinserção dessas pessoas na sociedade e possibilitar o resgate dessa história, infelizmente ainda pouco conhecida.” Segundo o coordenador nacional do Morhan, Arthur Custódio, a entidade não quer discutir o sofrimento vivenciado pelos filhos de ex-pacientes com hanseníase. “Mas sim a alienação parental que foi praticada pelo Estado brasileiro ao longo de tanto tempo”, disse.
Durante sete décadas, o Brasil foi palco de uma verdadeira caça às bruxas contra os portadores de hanseníase, doença infectocontagiosa caracterizada por manchas na pele, danos ao sistema neurológico e perda de cartilagens, especialmente orelhas e nariz. Acossados pela “polícia sanitária” da época, aqueles que tinham a enfermidade, ou eram suspeitos de estar infectados, eram retirados compulsoriamente de suas casas e internados à força em leprosários, hospitais que funcionavam como uma cidade à parte. O sistema de enfrentamento da doença, adotado por Getúlio Vargas (1882-1954) tendo como modelo a política higienista do italiano Benito Mussolini (1883-1945), se baseava em três pilares: o dispensário, para aqueles que manifestavam sinais da doença; o leprosário, para os pacientes infectados; e os preventórios, para os filhos sadios dos portadores de hanseníase. O tratamento dispensado às crianças nascidas de pacientes infectados constava na legislação brasileira. Segundo o Decreto nº 16.300, de 31 de dezembro de 1923, filhos saudáveis de pais com a doença deveriam ser afastados do convívio familiar e segregados em instituições criadas para esse fim, os chamados preventórios ou educandários, geralmente administrados por congregações religiosas. Já a Lei Federal nº 610, de 13 de janeiro de 1949, determinava que todo recém-nascido filho de pais portadores de hanseníase deveria ser imediatamente afastado da mãe e não poderia nem mesmo ser amamentado por ela.
Foi o que aconteceu com o aposentado José Irineu Ferreira, 63 anos. Filho de pai e mãe acometidos por hanseníase, Ferreira nasceu no hospital-colônia Doutor Pedro Fontes, em Cariacica (ES). Assim que sua mãe deu à luz, o capixaba foi levado para o educandário Alzira Bley, na mesma cidade. Ali ele viveu até os 16 anos. “Saí para ver o mundo pela primeira vez quando tinha 13 anos”, diz o ex-técnico em telecomunicações. Durante toda a sua infância e adolescência, Ferreira conta que era forçado a trabalhar na roça, apanhava quase diariamente e chegou diversas vezes a passar fome. Mas suas piores memórias remontam às poucas visitas que ele pôde receber dos pais enquanto esteve internado. “Lembro de vê-los através de um vidro no parlatório, mas eu não sabia quem eram aquelas pessoas. Depois, a gente se encontrava por meio de uma cerca, mas sempre com guardas monitorando e sem nenhum contato físico.” A vida após o preventório também não se mostrou fácil. Sem nunca ter recebido carinho ou orientação familiar, ele escondeu sua origem dos colegas de trabalho e até das namoradas. “Algumas pessoas me chamavam de ‘filho de leproso’. Mas, para mim, o preconceito é mais contagioso do que a lepra”, diz.
Foi o que aconteceu com o aposentado José Irineu Ferreira, 63 anos. Filho de pai e mãe acometidos por hanseníase, Ferreira nasceu no hospital-colônia Doutor Pedro Fontes, em Cariacica (ES). Assim que sua mãe deu à luz, o capixaba foi levado para o educandário Alzira Bley, na mesma cidade. Ali ele viveu até os 16 anos. “Saí para ver o mundo pela primeira vez quando tinha 13 anos”, diz o ex-técnico em telecomunicações. Durante toda a sua infância e adolescência, Ferreira conta que era forçado a trabalhar na roça, apanhava quase diariamente e chegou diversas vezes a passar fome. Mas suas piores memórias remontam às poucas visitas que ele pôde receber dos pais enquanto esteve internado. “Lembro de vê-los através de um vidro no parlatório, mas eu não sabia quem eram aquelas pessoas. Depois, a gente se encontrava por meio de uma cerca, mas sempre com guardas monitorando e sem nenhum contato físico.” A vida após o preventório também não se mostrou fácil. Sem nunca ter recebido carinho ou orientação familiar, ele escondeu sua origem dos colegas de trabalho e até das namoradas. “Algumas pessoas me chamavam de ‘filho de leproso’. Mas, para mim, o preconceito é mais contagioso do que a lepra”, diz.
As dificuldades enfrentadas por Ferreira dão a tônica dos depoimentos da maioria desses filhos separados, como explica Thiago Flores, 27 anos, pesquisador da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e autor do artigo de iniciação científica “Órfãos por imposição do Estado – Danos psicossociais causados pela política de segregação da hanseníase”, em parceria com a graduanda Pautília Paula de Oliveira Campos. “Relatos de maus-tratos são constantes entre as crianças que cresceram nos preventórios”, diz Flores. “A maioria sofria castigos físicos, muitos tinham a comida racionada e alguns chegaram até a sofrer abusos sexuais, enquanto outros eram dopados com medicamentos sedativos para que não dessem trabalho.” Na pesquisa que realizou com 27 filhos de ex-pacientes dos hospitais-colônia de Minas Gerais, ele chegou à conclusão de que os problemas vivenciados na infância e adolescência desses brasileiros influenciam sua saúde psíquica até hoje. “Os filhos separados, assim como seus pais, foram vítimas do holocausto silencioso instituído no País ao longo de décadas devido ao estigma e preconceito associados à hanseníase”, diz. Flores tem conhecimento de causa para falar sobre a hanseníase, mas sua história pode ser considerada o oposto da dos filhos separados. Assim que as colônias foram abertas, por volta de 1986, ele foi adotado por um casal de hansenianos, Zenaide e Nelson Flores, que não podia ter filhos. “Passei minha vida na colônia, sempre soube que era filho adotivo, mas só fui entender o que era hanseníase quando, ao contar para um colega de escola onde eu morava, ele se assustou.”
Chamada de “a doença mais antiga do mundo”, a hanseníase encontra seus primeiros registros datados de 1350 a.C., no Egito. A forma como a enfermidade é abordada na “Bíblia”, porém, contribuiu para o tratamento cruel e desumano que seria empregado às pessoas por ela atingidas. “Na ‘Bíblia’, a lepra é explicada como uma maldição, que afetaria só os pecadores. Isso gerou um preconceito muito grande contra os hansenianos”, afirma Flores. Por conta das crendices e da desinformação, os filhos separados tiveram de lidar com esse preconceito mesmo dentro de suas famílias. “Os próprios familiares rejeitavam essas crianças, com medo da contaminação”, diz a historiadora Yara Nogueira Monteiro, autora da tese de doutorado “Da maldição divina à exclusão social: um estudo da Hanseníase em São Paulo”, pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH – USP). Abandonadas pelas famílias e sem possibilidade de conviver com os pais biológicos, muitas das crianças moradoras dos preventórios foram encaminhadas ilegalmente para a adoção. “Os pais não perdiam o pátrio poder do ponto de vista legal, mas na prática muitas crianças eram adotadas. Meninos e meninas simplesmente sumiam e os progenitores, presos no isolamento, não podiam fazer nada”, afirma Yara.
Chamada de “a doença mais antiga do mundo”, a hanseníase encontra seus primeiros registros datados de 1350 a.C., no Egito. A forma como a enfermidade é abordada na “Bíblia”, porém, contribuiu para o tratamento cruel e desumano que seria empregado às pessoas por ela atingidas. “Na ‘Bíblia’, a lepra é explicada como uma maldição, que afetaria só os pecadores. Isso gerou um preconceito muito grande contra os hansenianos”, afirma Flores. Por conta das crendices e da desinformação, os filhos separados tiveram de lidar com esse preconceito mesmo dentro de suas famílias. “Os próprios familiares rejeitavam essas crianças, com medo da contaminação”, diz a historiadora Yara Nogueira Monteiro, autora da tese de doutorado “Da maldição divina à exclusão social: um estudo da Hanseníase em São Paulo”, pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH – USP). Abandonadas pelas famílias e sem possibilidade de conviver com os pais biológicos, muitas das crianças moradoras dos preventórios foram encaminhadas ilegalmente para a adoção. “Os pais não perdiam o pátrio poder do ponto de vista legal, mas na prática muitas crianças eram adotadas. Meninos e meninas simplesmente sumiam e os progenitores, presos no isolamento, não podiam fazer nada”, afirma Yara.
Maria José Amélia, a mãe da paulistana Teresa, até tentou saber notícias da filha, mas não obteve resposta. “Nos registros do preventório onde fui adotada, encontrei uma carta da minha mãe que nunca chegou a ser respondida. Nela só havia uma anotação da pessoa que a recebeu dizendo ‘esta carta não sei como responder, pois a filha foi entregue ao seu Antônio’, meu pai adotivo”, diz Teresa. Ela também descobriu no arquivo do preventório Santa Terezinha, em Carapicuíba (SP), documentos sobre duas irmãs biológicas, Marisa e Elza, que localizou e conheceu com a ajuda do cadastro de filhos separados do Morhan, no qual já constam dez mil inscritos. Seu caso motivou ainda a criação de um banco genético para tentar encontrar parentes entre portadores de hanseníase e ex-internos dos preventórios, chamado projeto Reencontro. “Oferecemos gratuitamente para essas pessoas exames de compatibilidade genética que elas não poderiam pagar por conta própria”, explica Lavínia Schuler Faccini, professora associada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS) e coordenadora do banco genético. “Até agora quatro casos já foram solucionados, três com resultado positivo e um com negativo”, diz.
O exame de compatibilidade genética pode fazer a diferença na vida das cariocas Rita de Cássia, 58 anos, e Geovanna Barbosa, 38. Não que elas já não saibam que são mãe e filha. “É que, quando Geovanna nasceu, eu não pude ficar com ela, então meus pais a registraram como filha deles. Pela lei, ela é minha irmã”, afirma Rita. Grávida aos 20 anos de idade, Rita descobriu ser portadora da doença durante o pré-natal. Voluntariamente se internou na colônia de Curupaiti, no Rio de Janeiro, onde nasceu Geovanna. “Só vi minha filha de longe e dois dias depois ela já estava no educandário”, diz Rita. Geovanna passou oito anos na instituição, onde sofria diariamente com a saudade da mãe, a fome, a tortura psicológica e os castigos físicos impostos pelas freiras que administravam o preventório. “Me emociono só de lembrar de tudo o que passei lá. Me adaptar à vida aqui fora também foi um processo muito difícil”, diz a auxiliar de produção. Hoje, no entanto, Rita e Geovanna são um exemplo de que é possível encontrar felicidade mesmo sob a sombra de um passado tão dolorido. “Hoje minha mãe pode fazer pelo meu filho Jonathan tudo o que não pôde fazer por mim. Tenho muito orgulho dela, porque é uma guerreira”, afirma Geovanna. “Só espero que, ao divulgar essa história, as famílias brasileiras nunca mais tenham que ser separadas por causa de uma doença”, diz Rita. E que o Estado possa trazer um pouco de alento a todos aqueles que tiveram suas vidas sequestradas pela cruel política da segregação.
O exame de compatibilidade genética pode fazer a diferença na vida das cariocas Rita de Cássia, 58 anos, e Geovanna Barbosa, 38. Não que elas já não saibam que são mãe e filha. “É que, quando Geovanna nasceu, eu não pude ficar com ela, então meus pais a registraram como filha deles. Pela lei, ela é minha irmã”, afirma Rita. Grávida aos 20 anos de idade, Rita descobriu ser portadora da doença durante o pré-natal. Voluntariamente se internou na colônia de Curupaiti, no Rio de Janeiro, onde nasceu Geovanna. “Só vi minha filha de longe e dois dias depois ela já estava no educandário”, diz Rita. Geovanna passou oito anos na instituição, onde sofria diariamente com a saudade da mãe, a fome, a tortura psicológica e os castigos físicos impostos pelas freiras que administravam o preventório. “Me emociono só de lembrar de tudo o que passei lá. Me adaptar à vida aqui fora também foi um processo muito difícil”, diz a auxiliar de produção. Hoje, no entanto, Rita e Geovanna são um exemplo de que é possível encontrar felicidade mesmo sob a sombra de um passado tão dolorido. “Hoje minha mãe pode fazer pelo meu filho Jonathan tudo o que não pôde fazer por mim. Tenho muito orgulho dela, porque é uma guerreira”, afirma Geovanna. “Só espero que, ao divulgar essa história, as famílias brasileiras nunca mais tenham que ser separadas por causa de uma doença”, diz Rita. E que o Estado possa trazer um pouco de alento a todos aqueles que tiveram suas vidas sequestradas pela cruel política da segregação.
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