Há dois anos, adotei um gato de rua. Batizamos de Nero e hoje ele faz parte da família. De três em três meses, levamos o Nero pra revisão, o que significa, basicamente, tomar banho e cortar as unhas. Todos os funcionários da clínica já o conhecem. Da última vez, liguei para marcar hora pra ele e me anunciei.
– Aqui é a Martha, mãe do Nero. Mãe do Nero? Sou mãe da Julia e da Laura, não sou mãe do Nero. Antes, me anunciava como dona do Nero. Mas não soava bem. Há uma certa arrogância em se proclamar dona de um ser vivo. Muitos compram um mascote como compram um relógio ou um liquidificador, e somos proprietários daquilo que adquirimos, mas eu não adquiri o Nero. Então troquei o “dona” por “mãe” e me senti patética, porém mais à vontade. Se mãe é quem cria, sou mãe.
Meu Deus, o que estou dizendo.
Sempre considerei exageradas as relações que algumas pessoas têm com seus bichos. Sei do amor que se sente por eles e a triste dor da perda quando eles morrem, mas nunca compactuei com uma certa histeria politicamente correta que faz com que se considere bicho mais importante que gente, a ponto de pessoas se mobilizarem contra a matança de tubarões e não mexerem um dedo por uma criança de rua. O.k., as pessoas podem escolher as causas pelas quais querem lutar, e é importante que todas as boas causas arrebanhem defensores, mas preferir bicho me parece um subterfúgio emocional.
Há quem alegue que as pessoas têm consciência de si mesmas, raciocinam, por isso podem se defender, enquanto que os animais não podem se defender contra os ataques humanos. Ora, muitos humanos também não conseguem se defender de ataques humanos. E há os que dizem que um animal é mais comovedor porque sempre tem caráter, enquanto que encontramos pelas ruas seres execráveis.
Não discordo totalmente, mas é uma comparação meio maluca. Claro que os bichos de estimação são bons. Só o que eles precisam fazer é comer e dormir, e a gente ainda oferece casa, conforto e carinho. Eles não conhecem política, sistema financeiro, pensão alimentícia, guerra, narcotráfico. Estão imunes às lutas de poder e seus efeitos colaterais antiéticos.
Bicho dá menos trabalho e costuma cumprir o que muita gente não cumpre: ser fiel na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. E salva inúmeros solitários da depressão absoluta. Daí a nos intitularmos mãe e pai deles, é um exagero. Não sou mãe do Nero. Nem sua dona, que gato não tem dono, nasce e morre independente, dono de si mesmo.
Eu apenas o alimento, o protejo, o acaricio, brinco com ele, às vezes me subordino a ele, fico meio boba com sua beleza, me preocupo com seu bem-estar e o chamo de bebê muito antes da Christiane Torloni massificar o termo. – Sim, mãe do Nero, a própria.
Martha Medeiros
Jornal O Globo
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