O lançamento em DVD da novela de 1978 permite entender como o Brasil se transformou. Era um país em que todos fumavam, as modelos não eram magras e ninguém usava protetor solar
Em novembro de 1978, a revista americana Newsweek abriu suas páginas para falar de algo inusitado para o leitor americano, uma novela brasileira chamada Dancin’ days. Segundo a publicação, não se tratava de um mero programa de televisão, mas de um “fenômeno nacional”. Todas as noites, 35 milhões de brasileiros, ou 70% da audiência do país, não só ficavam grudados na televisão às 8 da noite, mas também consumiam tudo o que dizia respeito à novela: discotecas, roupas, cabelo, música, perfume. No Brasil, disse a revista, ninguém sai de casa antes de a novela terminar. “Quando se reúnem, discutem superficialmente política e economia, para depois passar ao tema que realmente interessa: Júlia vai se casar com Cacá?”, dizia o texto.
Descontados os exageros, Dancin’ days, a primeira novela das 8 escrita pelo dramaturgo Gilberto Braga, foi mesmo um fenômeno. Muitas telenovelas alcançaram altíssimos níveis de audiência – especialmente nos anos 1970 e 1980, quando não havia tantas opções de canais nem internet. Mas Dancin’ days foi mais longe. Além de ditar moda e comportamento, além de tornar-se assunto nacional, inaugurou um novo modelo de dramaturgia na TV: a crônica dos costumes, a discussão dos valores da classe média e a inserção no cotidiano real do país. A trama de Braga tinha um pé no dia a dia da população urbana, da Zona Sul carioca.
Por ser tão importante, e ter a cara do Brasil de então, o lançamento recentemente da novela numa caixa de 12 DVDs e 38 horas de gravação ajuda a entender como o Brasil mudou. A mulher, tema central da novela, consolidava sua emancipação. Também começava ali o culto ao corpo – devidamente retratado na trama, que tinha como um dos cenários uma pequena academia de ginástica. “No ano seguinte, quando surgiram as séries brasileiras, a primeira foi Malu mulher”, diz a historiadora Mary Del Priore. Dancin’ days também inaugurou um modelo de consumo e de cultura visual na televisão. “Essa telenovela inovou como espaço para o merchandising, de difusão de marcas, moda e comportamento”, diz Solange Wanjman, do programa de Comunicação da Universidade Paulista (Unip). Com a novela, o brasileiro reforçava a roupa como objeto de carga comportamental, diz o estudo. O maior símbolo da moda Dancin’ days eram as meias coloridas e brilhantes, usadas com sandálias altas – uma combinação que as garotas de hoje jamais pensariam usar.
No centro da trama de Dancin’ days, estava Júlia (Sônia Braga), que passou 11 anos na penitenciária e, ao sair, quer se aproximar da filha, Marisa (Glória Pires), criada por sua irmã mais velha, a grã-fina Yolanda (Joana Fomm). “O pano de fundo é o conflito entre duas sociedades”, diz o autor, Gilberto Braga. “A antiga, tradicional e regrada, e a outra nova, mais flexível e desprendida.” Para completar, o diretor Daniel Filho colocou na trama uma casa noturna que existira de verdade, lançada pelo produtor Nelson Motta. Daniel Filho chamou o próprio Nelson para fazer a música de abertura. “Fiz uma canção libertária”, diz Motta, em referência à música homônima da novela (Abra suas asas/solte suas feras/caia na gandaia/entre nessa festa). Criou-se uma conexão inédita entre os eventos da televisão e a vida real – num momento delicado da vida do país. Naquele ano, o Brasil experimentava um alívio político desde o golpe. “No ano seguinte, foi assinada a anistia. Era um momento de muita expectativa sobre um novo tempo que poderia vir”, diz o cientista político Sérgio Abranches. Isso tudo faz parte, hoje, de um período remoto da vida brasileira. Desde então, o país se tornou mais livre, mas as regras que regem o comportamento das pessoas– o que elas dizem, fumam ou quanto pesam – tornaram-se mais rígidas. Ao ver o Brasil de Dancin’ days, podemos pensar o país de hoje – perceber o que ficou para trás e aquilo que viria a ser parte de nossa vida. Mas não há motivos para sentir saudades daquele passado. Desde então, o Brasil melhorou muito.
Revista Época
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