Não posso falar de Millôr Fernandes
como amigo, igual a muitos colegas
que estão compondo homenagens,
sobretudo aqueles um pouco mais
velhos. Ironicamente, aliás, cresci ouvindo cobras
e lagartos a seu respeito. Entes próximos
e amados diziam que ele era inimigo da família
e que chamara publicamente meu tio de “Adolpho
Bloch Hitler”. Uma piada eticamente bem
arriscada para se fazer com um judeu, ainda
mais um judeu russo. Em sua tirania (alternada
com humildade extremada) Adolpho estava
mais para um híbrido de “Pedro, o Grande”
com Aleksei Ivánovitch, o protagonista de “O
jogador”, de Dostoievski.
Mas fazer o quê?, ele se chamava Adolpho
(adaptação de Avram, seu nome de imigrante),
o que dava o mote: como é que Millôr ia perder
o trocadilho, ele que era o rei dos jogos de palavras
e que, mesmo com os amigos e até nos
mais rasgados elogios jamais perdia a oportunidade
de espinafrar o próximo?
Além disso, toda semana meu pai trazia o
“Pasquim”. Sejamos francos: não havia quem
não lesse o Millôr, fruindo do sabor agridoce da
admiração temperada de mágoa.
Claro que, à medida que começamos a nos
afastar da cartilha estrita da família (quando isso
é possível) passamos a fazer um juízo próprio
das pessoas, e, no meu caso, este foi se
construindo não através da relação pessoal, da
inflamação ideológica ou das birras tribais,
mas do gosto pela obra. Mal completara 15
anos e, na onda da abertura lenta, gradual e irrestrita
e do fim da censura, assisti a “Os órfãos
de Jânio” no Teatro dos Quatro.
Chorei com o retrato que Millôr ali fazia
das gerações que precederam a minha, cujos
feitos, heroicos ou não — fechado que estava
no casulo familiar — eu não tinha a mais vaga
consciência, a não ser por uns laivos em conversas
cifradas com o Cony, um luminar que
frequentava a casa.
Chorei também com a “Marcha da Quartafeira
de Cinzas”, de Vinicius e Lyra, que coroava
o final da peça com a forte melancolia
de suas palavras e aquele arrastão em tom
menor, afeito às marchas-rancho. Cheio de
fôlego juvenil, eu descobria no teatro tudo
ao mesmo tempo: Millôr, Vianninha, Brecht,
Ionesco. Os originais que xerocava na SBAT
eram a minha bíblia de um Brasil desconhecido
que mofava nos porões.
Passei a ler tudo de Millôr e em pouco tempo
consegui ficar próximo o suficiente (na qualidade
de público) para sacar que seu humor,
nos cartuns, no frasismo, nos desenhos, no teatro,
no anedotário e nas sátiras era crivado por
uma forte amargura da qual ninguém, nem ele,
escapava. É a mesma amargura que está em
sua expressão facial, semítica, aquele tipo de
desgosto que ao mesmo tempo parece um sorriso.
Seria judaico se não fosse mouro.
Ele mesmo captou esta particularidade fisionômica
na sua autocaricatura, transformada
em marca pictórica do seu pensamento, dublê
gráfico, porta-voz de si mesmo.
Isso é que era bom em Millôr: não se faz omelete
sem quebrar ovos. Não se faz diferença
apostando no senso comum, no aplauso de todos.
Se o veneno existe, ele está espalhado na
corrente psicossocial da civilização e precisa
ser destilado. Do contrário morreremos todos
intoxicados pela mentira a respeito da nobreza
de nossas almas e de sermos todos, sempre,
bons e ilibados cidadãos.
Os que assumem o papel de purgar o mal comum
levam muito chumbo mas, se sobrevivem
à linha de tiro, terminam por abrir espaços absolutamente
novos, singulares, que, uma vez
inaugurados, permanecem, como castelos de
uma areia quase imune à arrebentação do mar
e resistentes ao tempo e ao vento. Ao passo
que os arautos do óbvio-obscuro desaparecem
com a primeira brisa.
Só estive com Millôr pessoalmente em princípios
dos anos 2000, num único jantar. Uma
vez confirmado o encontro, passei momentos
de ansiedade, de medo e até de culpa. Na hora
H, com vinho e cavaquinha à mesa do hoje extinto
Gibo, na Praça General Osório, ele me tratou
com extrema cordialidade, mas me sacaneou
um bocadinho, o que me honrou.
Contou todo tipo de histórias, sorriu torto várias
vezes e riu um riso esganado, gutural, que,
por uma arrepiante ironia, lembrou-me o riso “mudo”
de Adolpho, que era um choro.
Os olhos de Millôr brilhavam, daquele brilho
dos que, escaldados com a tal da amargura,
amam a vida só pelo fato de ela existir
e de proporcionar a chance de constatar a
desgraceira que é.
Passaram-se dez anos deste encontro. Foi a
última vez que vi Millôr. Sua partida trouxe o
outono, que tem muito da sua aquarela, triste e
risonha, com folhas cadentes em tom pastel
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