A primeira edição da Encyclopedia Britannica foi lançada em Edimburgo, na Escócia, entre 1768 e 1771. Ao longo de 244 anos, outras 14 edições foram publicadas. Em 1990, ela atingiu a marca de 120 mil unidades vendidas, seu recorde. Seis anos depois, o número já caíra para um terço, sob o impacto da difusão da internet. A última impressão da Britannica ocorreu em 2010, numa edição de 32 volumes. Na semana passada, 4 mil das 12 mil enciclopédias impressas ainda estavam em estoque. E a Britannica Inc. anunciou que não mais publicará a versão impressa da mais antiga enciclopédia em inglês do mundo, para concentrar seus esforços apenas na versão on-line.
Jorge Cauz, presidente da empresa, afirmou que isso não é motivo de tristeza. “Entendo que alguns vejam o fim de uma era, mas nenhum meio impresso ou digital é o centro de nossa missão”, escreveu Cauz num post no blog da companhia. “A missão é ser uma fonte confiável de conhecimento, que daqui a 200 anos continuará a ser vital para as pessoas, que a usarão com a melhor tecnologia disponível.”
À primeira vista, pode parecer que o desaparecimento da Britannica impressa seja apenas mais um símbolo daquilo que todos já sabem: a vitória dos meios digitais sobre o papel. Mas a questão é maior e mais profunda. O que está em jogo na decisão tomada pela Britannica é o futuro de uma forma de produção e transmissão de conhecimentos que vem servindo a humanidade desde o século XVIII.
Os pilares dela foram estabelecidos pelos iluministas franceses, os criadores da primeira enciclopédia da história, a Encyclopédie. São eles: apuro, abrangência, precisão da informação, isenção e correção. Em pleno século XVIII, a obra de 33 volumes, quase 72 mil verbetes e 2.885 ilustrações continha a essência do pensamento científico e filosófico da época, apresentada por pensadores monumentais como Diderot, D’Alembert, Voltaire, Rousseau ou Montesquieu. Com a enciclopédia francesa surgiram um método de apresentação e um modelo de negócios que seguem vivos até hoje – mas estão ameaçados por formas alternativas de produção e difusão de informação.
O maior exemplo desse modelo alternativo é dado pela Wikipédia, a célebre enciclopédia on-line. Gratuita, ela não é escrita por um grupo seleto de especialistas bem remunerados, responsáveis por filtrar informações, hierarquizá-las e apresentá-las de forma clara e concisa ao leitor. Suas páginas na rede são o resultado do trabalho de cerca de 85 mil voluntários, a maioria deles amadores, que pesquisam e escrevem no limite de seus recursos, capacidades e intenções. Os textos da Wikipédia são atualizados rapidamente, verbetes novos sobre bandas, atletas e celebridades são incluídos ao sabor do interesse dos leitores e não há constrangimento de espaço.
A Wikipédia é hoje o sexto site mais visitado do mundo, com 400 milhões de usuários por mês. Seu arquivo engloba 21 milhões de artigos em 280 idiomas – de Lula a Lady Gaga. “A internet oferece um material mais abrangente”, diz Gary Marchiori, diretor da Escola de Informação e Ciência em Biblioteconomia da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill. “O artigo de uma enciclopédia foi escrito a partir de um único ponto de vista, enquanto na rede há uma diversidade deles. Trata-se de uma inteligência coletiva, da qual a Wikipédia é um exemplo. Qualquer assunto que merece ser debatido precisa de mais de um ponto de vista.”
Os estudantes da geração digital recolhem informação da Wikipédia como se estivessem lendo verbetes de enciclopédias como a Britannica ou a Delta Larousse. Imaginam que são produtos igualmente confiáveis. Não são. Falta à Wikipédia aquilo que o pesquisador Andrew Keen, autor do livro O culto do amador (Zahar, 2009), chama de “curadoria”, o trabalho executado por alguém com autoridade e conhecimento para escolher, no mar de informação gerado diariamente na internet, aquilo que é correto, relevante e útil. Sem esse trabalho profissional, instala-se no mundo da informação uma espécie de caos em que todas as vozes se equivalem e todos têm autoridade para escrever qualquer coisa – com ou sem qualificação para isso.
“Muitos artigos da Wikipédia são escritos por amigos, parentes ou assessores de imprensa de uma pessoa ou empresa”, diz Keen. “Como não sabemos quem é o autor, não dá para confiar completamente.” Ele ainda argumenta que, em meio ao oceano de informação da internet, a autoridade de um filtro como a Britannica se torna ainda mais relevante. “A Wikipédia é boa para cultura pop e atual, mas é ruim para entender o mundo historicamente”, afirma Keen. “Os verbetes sobre Madonna e Joana d’Arc não podem ter o mesmo tamanho. Em 200 anos, vamos lembrar de Joana d’Arc, não da Madonna. Curadoria é a palavra-chave.”
Enquanto a fluidez da Wikipédia a torna facilmente moldável aos interesses de seus colaboradores, a Britannica continua apostando no profissionalismo. A empresa tem mais de 100 editores que se dedicam exclusivamente a pesquisar e apresentar informações confiáveis de forma concisa. Eles são treinados para separar o que é relevante do que é acessório, facilitando a vida do leitor. E se responsabilizam, com sua reputação bicentenária, pela correção do que publicam. A Britannica já teve entre seus colaboradores mais de 110 ganhadores do Prêmio Nobel, cinco presidentes americanos e artistas respeitados como o cineasta Alfred Hitchcock (leia o quadro).
Muitos artigos na Wikipédia são escritos por amigos ou assessores de imprensa
A disputa entre o modelo amador da Wikipédia e o profissional da Britannica repete, de certa forma, aquela que opõe blogs e fóruns na internet ao trabalho da imprensa profissional. De um lado, há uma multidão de vozes anônimas, apregoando na rede fatos e interpretações a partir de seus interesses políticos ou pessoais. De outro, profissionais treinados para transmitir informações relevantes de forma mais correta e isenta – e empresas que se colocam como responsáveis por essas informações diante da lei. O resultado de premissas tão díspares não pode ser o mesmo.
O mundo derivado do Iluminismo enciclopedista viu nascer, com base na produção e na difusão profissionais do conhecimento, a democracia, o livre-comércio, o Estado laico, a imprensa livre, o avanço da medicina e das ciências – e a própria internet. O mundo derivado do conhecimento amador dos blogs e da Wikipédia ninguém sabe ainda direito onde vai dar. Mas a migração da Britannica para a rede – onde ela é atualizada a cada 20 minutos e usada por mais de 100 milhões – mostra que o meio digital é perfeitamente compatível com o conhecimento profissional.
Revista Época
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