segunda-feira, 23 de abril de 2012

É bom você saber - A lista dos aprovados




Pequena, esbelta, ligeira e buliçosa, Til corre pelo campo enquanto enlaça desencontros amorosos. A heroína, até então praticamente ausente das aulas de Literatura no Ensino Médio, ganhará o espaço já ocupado por Iracema e Aurélia Camargo nas listas de leitura para os vestibulares da USP e da Unicamp. Til, obra de José de Alencar que leva o nome de sua protagonista, vai substituir Senhora, do mesmo autor, e ganhará a companhia de Viagens na Minha Terra, de Almeida Garret, Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e Sentimento do Mundo, de Carlos Drummond de Andrade. Deixam de figurar entre as obras obrigatórias Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, Dom Casmurro, de Machado, e Antologia Poética, de Vinicius de Moraes.

São mudanças que não implicam perdas estéticas ou culturais, avalia Fernando Marcílio, professor de Literatura do Sistema Anglo de Ensino. “Memórias Póstumas e Dom Casmurro são obras do mesmo autor, de mesma densidade e importância cultural. No caso de Garret, que de certa forma substitui Vicente, o aluno pode ter um certo ganho por se tratar de obra de período distinto, mais atual, o que pode ser de mais fácil compreensão para o adolescente”, avalia.

No campo da poesia, Drummond pode ser visto por alguns especialistas como “mais denso” que Vinicius. “O texto, de 1940, é muito ligado aos fatos da época, à ditadura e à temática da Guerra. Com essas coordenadas, o aluno pode se sentir mais à vontade. De toda forma, sai um grande poeta e entra outro.”

A surpresa, porém, fica para a indicação de Til, obra menos consagrada de Alencar ambientada numa fazenda. “Um caso curioso”, afirma Marcílio. “Saiu Iracema, texto extremamente conhecido, e entrou um pouco badalado, o que quebra expectativas de forma positiva. É salutar a entrada de textos menos populares até pela ampliação dos debates em torno do cânone. Iracema tinha uma imagem romântica, heróica, e aqui temos um perfil feminino em termos bem românticos.”

A entrada de um título inusitado também é vista com bons olhos por Maria de Fátima Cruvinel, professora de Língua Portuguesa e Literatura do Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação e professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística  da Universidade Federal de Goiás. “Til, realmente, não é uma obra muito acessada, mas penso que a ideia da seleção é justamente ampliar um pouco a visão do cânone. Ora, o que faz uma obra é o fato de ela ter sido mais lida? Não, o valor literário não se restringe a isso e é preciso perder o preconceito contra obras menos conhecidas, mas tão importantes quanto outras.”

Para Marcílio, não houve perda em relação às indicações das edições anteriores e, mais que isso, ainda há grandes possibilidades de interdisciplinaridade. “É possível notar parâmetros que podem ter norteado as escolhas e que abrem para diálogos com a História, a Geografia, com questões filosóficas e sociais e até com as Artes Plásticas.”

“A escola é hoje lugar de defesa ou sustentáculo de propagação de uma cultura mais canônica. Se o aluno não ler Machado e Alencar na aula, não os lerá em lugar algum. São autores que a mídia e o cotidiano não apresentarão a ele. Entendo a decisão de privilegiá-los porque o contato com essa produção é importantíssimo e pode auxiliar no entendimento do desenrolar da História em termos estéticos e linguísticos. Contudo, há uma nova safra de autores que poderia estar presente nessa lista.”

Até por isso, é um desafio para o professor fazer com que o aluno tenha contato com outros textos durante o Ensino Médio, não se atendo somente às indicações das instituições. “Uma crítica que pode ser feita é à falta de abrangência e amplitude. Se estamos preocupados com a formação do leitor, por que incluir apenas romantismo, realismo e modernismo, e não barroco, classicismo ou textos contemporâneos? Uma lista mais variada mostraria melhor a riqueza de nossa produção e, ao mesmo tempo, produziria efeitos mais positivos para a formação do leitor.”

Um dos motivos para isso é que a Universidade de São Paulo, explica Mauricio Kleinke, coordenador-executivo da Comissão Permanente para os Vestibulares da Unicamp, possui um repertório de obras predefinidas a ser utilizadas na definição da lista que constará da seleção de ambas as instituições. “Isso faz com que tenhamos certa dificuldade para a inserção de novos autores”, justifica. “Começamos discussões para ampliar o repertório e torná-lo menos restritivo, mas ainda assim creio que, ao priorizarmos autores já consagrados, clássicos, propiciamos um trabalho diferenciado sobre esses textos. Tanto que, na minha visão, a prova de literatura é das mais exigentes do nosso vestibular, pois requer leitura aprofundada, não trivial.”

 Trampolim para a universidade

Ao privilegiar autores canônicos em detrimento de obras contemporâneas, contudo, as listas podem comprometer, de certo modo, a formação do hábito de leitura dos vestibulandos, opina Tania Rösing, professora da Universidade de Passo Fundo, criadora e coordenadora das Jornadas Literárias de Passo Fundo. “Esses jovens, até pela idade em que ingressam na universidade, precisariam ter a oportunidade de ler textos dos séculos XX e XXI. É compreensível que a seleção privilegie romances considerados modelares, porém, se o aluno passa a ter somente esses parâmetros literários, distancia-se de uma leitura que é a do seu tempo, a do tempo atual, o que traz um afastamento, sem dúvida.”

Cabe ao professor, desse modo, encontrar o delicado equilíbrio entre romances tidos como fundadores e a produção atual. “É necessário que o jovem seja capaz de ler textos produzidos em outras épocas e seja capaz de compreender seus sentidos e a repercussão na própria literatura contemporânea, que bebe nas fontes da tradição”, pondera Cruvinel, docente em uma das instituições federais que têm entre os critérios de suas indicações a escolha de autores contemporâneos. “Há universidades que têm a proposta de incluir escritores vivos. É interessante, por outro lado, estabelecer a relação entre o que é produzido hoje e textos do cânone. Por isso, também, promovemos seminários para os vestibulandos com a presença de autores, o que acaba sendo uma forma de ampliar a leitura dos jovens para além da habilidade de responder perguntas numa prova.”

As listas ganham, assim, um poder mobilizador e provocador. “De fato, o vestibular é uma imposição, mas defendo que, por meio dela, se possa chegar a escolhas particulares. É latente, contudo, a necessidade de políticas públicas voltadas para a ampliação de acervos literários nas escolas e programas que barateiem e, consequentemente, ampliem o acesso da criança e do jovem ao livro.”

A leitura de fruição, contudo, não acontece de forma obrigatória. Mais do que isso, por ter como foco um processo de seleção, a leitura direcionada apenas às obras selecionadas nesse período da vida deixa de priorizar o desenvolvimento de um comportamento de leitura e, consequentemente, a preparação para o desenvolvimento da cidadania crítica. “Na medida em que esses jovens fazem leitura para a memorização, não vão ampliar e concretizar o imaginário e, com isso, realmente não se desenvolverá um comportamento de leitura perene”, opina Tania Rösing.

Revista Carta Capital

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