Hoje é Domingo de Ramos e me lembrei de estampas dos livros de minha infância, mostrando Jesus entrando em Jerusalém, cercado por folhas de palmeiras agitadas pelo povo e montado num jeguinho. Nos presépios era também frequente a figura de um jeguinho ao canto, assim como nas cenas que mostravam a fuga da Sagrada Família para o Egito. Animal tido pelos mais velhos, no Nordeste, como abençoado, não só ajudou e transportou o Senhor e a Sagrada Família, como recebeu a graça de portar na cernelha uma cruz de pelagem mais escura, que testemunha o afeto que lhe tinha o Cristo. Não há jeguinho sem essa cruz nas costas - e essa cruz também simboliza o trabalho duro que lhe cabe em seus mais ou menos 50 anos de existência, trabalho que faz sem se rebelar, sem ficar doente, sem exigir trato, nem mesmo alimento, pois come qualquer capim ou mato e até mesmo caixas de papelão, se não achar mais nada.
Na cidade grande, creio que pouca gente sabe o que é um jegue. Sabe-se que é parecido com um cavalo e pode ser denominado indiferentemente de jumento, asno, burro, jerico e outros nomes, todos para nós insultuosos, seguindo a prática humana, que talvez revele muito de nossa natureza, de considerar xingamento ser chamado pelos nomes de animais amigos ou úteis, como cachorro, vaca ou galinha, e achar elogio receber apelidos de feras ou predadores, como tigre, águia ou raposa. Na verdade, a designação "burro" devia ser reservada ao híbrido macho resultante do acasalamento entre um jumento e uma égua, que não são da mesma espécie. Quando nasce uma fêmea, o nome que lhe é dado é "mula". Mas parece que isso vem caindo em desuso, de maneira que, para muita gente, jegue e burro são a mesma coisa.
E o jegue continua a levar fama de pouco inteligente e de temperamento abrutalhado. Maior injustiça não pode haver, é exatamente o contrário. Os jeguinhos desde cedo aprendem seu trabalho, seja levando carga para cima e para baixo, seja até mesmo servindo de "motor" para moagem de dendê, andando em círculos, atado a uma roda de moinho, o dia inteiro. No tempo em que água encanada era difícil em Itaparica, a distribuição da água potável era feita em barricas transportadas em lombo de jegue. Os jeguinhos, que sabiam o caminho de casa e os da freguesia, sustentaram incontáveis famílias de aguadeiros sem dar um tostão de despesa, e tem gente que hoje é doutor de anel no dedo graças ao trabalho deles.
Quanto ao temperamento, costuma ser dócil e amistoso. Conhece o dono e a família do dono e não repele os estranhos em quem não sente ameaça. Pelo contrário, gosta de carinho e é muito agradável, para o tato e os sentimentos, afagar a pelagem aveludada do pescoço de um jumentinho, enquanto se nota que ele recebe o agrado com prazer e apenas não sabe falar. Assim como corta o coração ver, como eu já vi muito na infância, um jeguinho de cabeça baixa, às vezes meio derreado embaixo de uma árvore, a boca entreaberta, volta e meia deixando escorrer uma babazinha. É dor de dente. Deram rapadura a ele, que ele adora como todo mundo, e aí apareceram cáries. Não tinha jeito, não havia como ajudar, mas o jegue, coitadinho, de fato só faltava mostrar à gente o dente que doía.
Não existe perfeição e ele pode ter seus defeitos. De vez em quando, a troco de nada, um jegue perfeitamente ordeiro e cumpridor de seus deveres resolve empacar e a única maneira de fazê-lo ir adiante é levantá-lo com uma retroescavadeira. Ou a maldade de fazer fogo debaixo dele. Não gosta, no que, aliás, não lhe tiro a razão, de passar por pontes, principalmente dessas mais precárias ou altas. Embora raramente, não está acima de dar um coice ou mordida, mas costuma ser em legítima defesa, ou durante uma disputa amorosa.
Apesar de sua inestimável folha de serviços, o jegue não tem o respeito e a estima das novas gerações, pois que, além de tudo, é tecnologia antiga. Ninguém quer mais saber de jegues e agora, naturalmente, todo mundo anda de moto. Os barulhinhos do campo e do mato não virão mais dos passarinhos, do vento nas copas da árvores, dos estalidos dos galhos secos, do farfalho das folhas levantadas pela corrida de um bicho espaventado. Serão barulhos do progresso, escapamento de motos, aceleradas destemidas, curvas audazes. E o cheiro não será o de um curral leiteiro ou da terra molhada pela chuva, será de gasolina, assim como o nevoeiro não se formará entre as nuvens e o horizonte, mas se evolará de canos de descarga fumacentos.
Não há o que fazer, é o progresso. Tudo conspira contra o jumento, nada a seu favor. Até o fato de trabalhar de graça e praticamente não ter custos o prejudica, essas coisas de graça não são boas para a economia. As motos dão escoamento à produção um importante complexo industrial, geram consumo em muitas outras áreas, criam empregos e assim por diante. Nenhum maluco vai comparar um jegue a uma moto, embora eu espere que ninguém venha a pretender modernizar a Bíblia para jovens leitores, fazendo Jesus entrar de moto em Jerusalém, neste caso acho que deve predominar a tradição.
Mas o jegue continua a ajudar. O Brasil está fechando contrato para exportar para a China, num programa chamado Projegue, 300 mil jegues por ano, para serem abatidos, comidos e usados por indústrias de cosméticos. O jeguinho mais uma vez presta serviço, desta feita com a vida. E não mais para sustentar gente, mas para enricá-la. Para mim, comer jumento é uma espécie de canibalismo. Sei que isso pode soar como exagero piegas e talvez seja mesmo. Mas é que é Domingos de Ramos e lembrei os jeguinhos de minha infância, principalmente o jumentinho de Nosso Senhor.
João Ubaldo Ribeiro
Folha de São Paulo
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