Um dos eventos mais divertidos na rotina de quem escreve hoje em dia é quando o leitor resolve xingar o cronista usando fórmulas de cortesia. A coisa funciona mais ou menos assim:
“Prezado Arnaldo, você é um porco pusilânime. Um abraço.” Ou então:
“Caro Arnaldo, é uma grande safadeza o que você fez. Atenciosamente...”
Refiro-me apenas ao leitor que se dispõe a assinar seu verdadeiro nome e dirigir a mensagem via e-mail.
Os que se escondem por trás de codinomes em caixas de comentários para dizer “filho-da- puta” e reclamam de falta de liberdade de expressão quando são limados não passam de uns pobres zumbis.
Embora mereça respeito, o espinafrador educado e assinado, porém, não passa de um hipócrita, ou, no mínimo, um covarde.
Se quer ser educado, para que xingar? Basta criticar, argumentar, educadamente, o que condiz com os preâmbulos.
Ou, no raciocínio inverso: se quer xingar, para que tanta educação?
Que xingue como gente grande, igual a um leitor que, certa vez, enviou-me, em caracteres corpo 72 e caixa alta, apenas uma palavra de oito letras (não perguntem o que significa, eu mesmo tive que ir ao dicionário): “APEDEUTA.”
Esse era um sincero, um bom. Pode amaldiçoar minhas gerações passadas e vindouras. Mas faça-o com hombridade: sem prólogos e complementos, sem borrar a calça.
Qual o sentido de um abraço ao final de uma missiva na qual se lamenta que Hitler não tenha completado sua obra?
“Se o bigodinho não tivesse vacilado aos 45 do segundo tempo, seríamos poupados da sua lengalenga. Sem mais, um abração.”
Que abração é esse? O que esse urso neonazista quer de mim?
Em que pesem os efeitos exóticos e a comicidade desses híbridos, que mariquinhas o sujeito que insulta mas faz questão de guardar um quinhão de apreço do insultado.
Estará ele agradecendo pela oportunidade de xingar um escriba público?
Ou adicionando atenuantes a serem considerados no Juízo Final?
Ou, ainda, dando a entender que não é nada pessoal, apesar dos votos de que eu morra de câncer no reto o mais rapidamente possível, ou melhor, aos poucos, dolorosamente?
Há um antigo conto epistolar russo que trata de dois senhores que trocam cartas, inicialmente para resolver algum problema contratual ou referente a uma dívida.
No início do conto, quando predominam questões práticas, as fórmulas de cortesia são discretas. Mas vão ficando extensas e floreadas à medida que a disputa não se resolve e abrem-se as comportas do ódio: junto com as pragas, as amabilidades crescem exponencialmente, até se tornarem mais longas que as imprecações. Algo, grosso modo, assim:
“Meu mui estimado e querido amigo de tão antiga data, ilustríssimo e admirado Ivguénie Alexandrovitch: desejo que morra empalado no topo da Catedral de Santa Sofia.”
Xingar com amabilidades — todos sabem, e mais ainda quem assiste à TV Senado e às emissões das casas judiciárias — é um hábito nos debates políticos e legais, embora com poucas variações: um “Vossa Excelência” de praxe, regimental, e tasca pedreira. Não é, aliás, de hoje. Está nos anais a tirada de Carlos Lacerda, quando aparteado pela deputada Ivete Vargas (PTB), que lhe disse:
“Vossa Excelência é um grande purgante!”
Lacerda valeu-se de uma dose ainda maior de civilidade para polir a seguinte pérola:
“Agradeço à nobre colega o elegante aparte e constrange-me dizer que se o meu discurso é um purgante, o aparte de Vossa Excelência é o efeito.”
Tamanha falsa consideração ao se dirigir a um mero cronista, contudo, não se justifica. Vai ver é efeito de teorias da conspiração: não se brinca com a mídia, eles são o quarto poder. Melhor não dar ponto sem nó.
O camarada pode perfeitamente assinalar que não passo de um pequeno patife ou de um consumado imbecil ou dizer de minha mãe coisas que jamais se ouviram.
Não importa: ele há de reservar para o fim um afago, temeroso de que se abata sobre ele uma terrível vendetta por parte dos cavaleiros, ou cavalos, daquela ordem secreta da qual todo jornalista faz parte.
Nessa hora — ele deve imaginar —, consultado pelo grão--mestre, direi palavras em seu favor: “Não sejam muito cruéis com o infeliz, pois, no final, me mandou um abraço.”
Um outro aspecto bastante saboroso dessa dinâmica é a gama de diferentes malfeitos dos quais um cronista pode ser acusado.
Num dia, é um petista lambe-botas. No dia seguinte, um tucano vendido. Numa semana, é porta-voz dos interesses das grandes corporações. Na seguinte é uma voz solitária e corajosa na mesmice.
Num mês, é um defensor dos bandidos da cidade, afinal, direitos humanos de quem? No outro, um puxa-sacos do poder público.
De burguês do Leblon disfarçado a esquerdopata a comunista disfarçado em burguês do Leblon há uma linha tênue. Não se trata, claro, de erro. Ou, se há um, é do pilantra do cronista, que não se fez entender, nem suspeitou do veneno de sua pena. Que pena.
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Arnaldo Bloch
Segundo Caderno / Jornal O Globo
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