O que era para ser uma corriqueira entrega de provas virou um bate-boca intimidador seguido de agressão física. Descontente com a nota, a estudante abriu mão dos argumentos acadêmicos para contestar a correção e avançou sobre a professora Christiane Souza Alves durante a aula. “Ela usou xingamentos de baixo calão, veio atrás de mim quando eu saí da sala e me empurrou”, diz Christiane, que, após 13 anos de docência, passou um semestre sendo acompanhada no trajeto da instituição de ensino para sua casa, teve princípio de síndrome do pânico e começou a tomar antidepressivos. Seria mais um triste episódio a engrossar as estatísticas de violência nas salas de aula, não fosse a mudança de cenário.
A economista Christiane é professora universitária, ambiente onde tem aumentado o número de agressões a docentes, do mesmo modo que nas escolas da rede particular de ensino. “Ela gritou: ‘Você é paga para concordar comigo.’”, diz Christiane. A estudante em questão, uma jovem de 20 anos, continua na universidade. Foi apenas proibida de assistir às aulas de Christiane. “A relação professor-aluno acabou”, afirma a professora, que pediu para não identificar a instituição em que teve problemas.
Em Minas Gerais, onde Christiane leciona, quase metade das queixas recebidas pelo disque-denúncia contra abusos vem da rede privada. O serviço, pioneiro no Brasil, foi criado no último ano, em resposta à morte do professor Kassio Vinicius Castro Gomes, em dezembro de 2010. Ele foi morto a facadas no corredor principal do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix, uma tradicional instituição de ensino superior da capital mineira com mensalidades que rondam a casa dos R$ 1 mil. Professores sem autoridade, alunos com excesso de poder e coordenações escolares omissas formam a bomba-relógio da violência escolar.
“As salas de aula estão mais violentas, pois a própria sociedade também está”, afirma a pesquisadora Jussara Paschoalino, autora do livro “Professor Desencantado: Matizes do Trabalho Docente” (Armazém de Ideias, 2009). “As agressões contra o professor surgem de várias partes, mas o maior desgaste que percebo é com relação aos alunos.” Essa mesma impressão foi captada por um estudo feito pela International Stress Management Association (Isma-BR). Dos mil professores ouvidos, 46% indicaram como principal fonte de estresse a indisciplina dos estudantes – que muitas vezes ganha eco na omissão dos pais. “Os docentes estão mais vulneráveis à agressão que outras profissões”, considera Ana Maria Rossi, presidente do Isma-BR. Basta lembrar que, sozinhos, eles têm de manter sob controle turmas de até 40 pessoas. E o risco independe da idade de quem ocupa a carteira. “Só nos últimos dez dias recebemos três denúncias de ameaças contra professores de universidades mineiras. Isso acende o alerta também nesse nível de ensino”, afirmou o presidente do Sindicato dos Professores do Estado de Minas Gerais, Gilson Reis, em entrevista à ISTOÉ, na segunda-feira 9.
Pouco a pouco, a preocupação invade a pauta dos sindicatos de vários Estados. No Rio de Janeiro, depois de iniciar uma campanha incentivando os professores a cuidarem da voz, o órgão de classe percebeu que os distúrbios na fala eram, em grande parte dos casos, apenas reações físicas a problemas bem mais complexos, de cunho emocional. A constatação mudou o eixo do trabalho. “Ampliamos a mobilização para o tema da saúde mental dos professores”, diz o presidente do órgão, Wanderley Quedo. Psicólogos foram treinados para atender os docentes e o sindicato criou um portal, o saudedoprofessor.com.br. Iniciativa semelhante é mantida pelo Sindicato dos Professores do Ensino Privado do Rio Grande do Sul (Sinpro-RS) desde 2008. Roséli Cabistani, professora da universidade federal do Estado e assessora do núcleo de atendimento ao professor do Sinpro-RS, chama a atenção para uma questão comum no discurso dos docentes que participam das rodas de conversa promovidas pelo sindicato: a desvalorização da profissão. A ideia ganha fôlego diante do baixo salário da categoria, cujo piso nacional hoje é de R$ 1.451 para 40 horas semanais. “O aluno vem sendo amparado em um discurso no qual é difícil admirar o professor, porque ele ganha pouco e, dentro dessa lógica, quem ganha pouco vale pouco”, fala Roséli.
Desvalorizado financeiramente e socialmente, resta ao docente um sentimento de abandono. “O professor tem de se virar na sala de aula para ensinar e para tomar cuidado com o que pode acontecer ali dentro”, diz F., 28 anos. Ele dá aulas de educação física na rede pública de Vespasiano, região metropolitana de Belo Horizonte, e já teve de sair escoltado do colégio por um policial após ser ameaçado por um aluno. O garoto, depois de ser repreendido pelo professor por causa do comportamento violento durante o treino de basquete, voltou ao colégio acompanhado por uma turma de não alunos para “acertar as contas”. F. conseguiu contornar a situação e continuou dando aulas na mesma escola, mas pede para não divulgar sua identidade. Nem todos, porém, superam o susto e seguem na carreira.
Colega de profissão de F., a professora gaúcha Etiene Selbach Silveira, 43 anos, tirou seu time de campo, após 21 anos de magistério, quando descobriu agressões virtuais perpetradas por um grupo de sete estudantes do Colégio Nossa Senhora do Bom Conselho, onde dava aula. “Meu mundo caiu. Nunca tinha tido problema com alunos e nem sabia o que era Orkut quando descobri que elas tinham criado uma comunidade falando mal de mim”, relembra ela, que é filha e irmã de professoras. Passado o choque, reclamou no sindicato e na direção da escola. A comunidade saiu do ar em dois dias, mas, para espanto de Etiene, ela recebeu a carta de demissão poucos meses depois. “Depois disso desisti”, conta ela, que trabalha com vendas. Casos como o de Etiene, em que o professor é preterido pela direção da escola, são comuns na rede privada. “Nos colégios particulares, se alguém não gosta de algo, o professor é demitido”, diz Cecília Farias, diretora do Sinpro-RS.
Para tentar mudar as regras do jogo, até agora bem desfavoráveis ao professor, foi proposto um projeto de lei prevendo medidas protetivas para os casos de violência contra docentes (o PL 191 de 2009). “O PL não foi bem aceito pelos congressistas e está encalhado”, critica o autor da proposta, o senador Paulo Paim (PT-RS). Situação semelhante acontece na vizinha Argentina. Por lá, a procura pela União dos Docentes Argentinos (UDA) para relatar casos de agressão contra professores cresceu 20% só no último ano. Preocupado, o órgão propôs um projeto de lei, mas, assim como no Brasil, a iniciativa também não foi adiante. “O Poder Executivo e o Congresso Nacional argentinos ainda não reconheceram o problema da violência contra os professores na escola”, disse à ISTOÉ Sérgio Romero, secretário-geral da UDA. E a questão não está restrita aos países em desenvolvimento. Na Inglaterra, pesquisa recém-divulgada pela Associação dos Professores registrou que um terço dos tutores e funcionários de escolas já havia tido contato com violência física dentro das instituições de ensino. Nos Estados Unidos, a Associação Americana de Psicologia montou em 2008 uma força-tarefa para pesquisar os impactos das agressões contra professores. Nos cálculos fechados pelo grupo, o problema custa aos cofres americanos US$ 2 bilhões por ano.
O cenário é desolador, mas algumas iniciativas dão esperanças. Em Minas Gerais, o professor Kassio Gomes, citado no início da matéria, tornou-se nome do projeto de combate à violência nas escolas desenvolvido na Prefeitura de Betim, na região metropolitana de Belo Horizonte. À frente está a irmã do docente morto, a também professora e hoje secretária de Educação do município, Sandra Gomes. “A morte do Kassio foi um choque, ele tinha um convívio ótimo com os alunos”, diz Sandra. No Rio Grande do Sul, a homenagem da Secretaria de Estado de Educação no último ano à educadora Glaucia Teresinha da Silva pôs um ponto final a um triste episódio. Em 2009, ela sofreu traumatismo craniano após ser empurrada violentamente por uma estudante da Escola Estadual Bahia. Voltar a dar aula foi um processo delicado, tanto pelas sequelas psicológicas quanto pelo impacto físico da agressão – Glaucia foi obrigada a usar muletas durante vários meses.
“Ainda sinto medo de dizer não a algum aluno ou simplesmente chamar a atenção em sala de aula”, diz. Mesmo assim, ela decidiu retomar a carreira e, à frente de uma turma em processo de alfabetização, desenvolveu um projeto de livro colaborativo escrito pelos estudantes, que se tornou uma espécie de “boa prática” dentro da rede de ensino gaúcha. “Só esse reconhecimento já me motivou a fazer outros projetos e a reacreditar na educação.” Provas de que é possível dar respostas lúcidas às situações de violência, erguendo a bandeira branca no campo de guerra que têm se tornado as salas de aula.
fonte: http://www.apeoesp.org.br/
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