Quando se lê alguma prosa machadiana, percebe-se que em alguns casos Machado de Assis retoma temas e ideias anteriores, tratando-os com desenvoltura em qualquer situação. Histórias sem data é um livro de contos publicado em 1884. Nele há um conto intrigante, "Conto Alexandrino", uma espécie de patinho feio dos contos machadianos, se comparado com outros contos badalados pela crítica.
Em rápida síntese, para que o leitor possa entender com algum conhecimento de causa o que se diz a seguir, é a história de dois filósofos, Stroibus e Pítias, que querem provar que todas as essências humanas encontram-se nos bichos. Para desenvolver uma essência qualquer, basta beber o sangue do animal escolhido. Assim, o rato faria o ladrão; o pavão faria o enfatuado; o boi faria o paciente; a aranha faria o músico, o geômetra, o sábio etc. Os dois beberam o sangue de rato e viraram ladrões, foram presos e sacrificados com o mesmo processo que usaram para sacrificar milhares de ratos para a sua experiência, isto é, através da vivissecção, para estudos e proveito da própria humanidade. Tudo é válido em prol da ciência, que, em meados do século XIX, passou a ser a deusa da verdade. O ideal é mesmo você ler esse conto! ( ver Marcadores = Conto / Machado de Assis / Realismo )
Para este ensaio, escolhemos dois motes que se repetem nas histórias de Machado de Assis: a criação fictícia de pseudoteorias científico-filosóficas e o uso do rato como símbolo da exploração do homem pelo homem.
Essências humanas nos bichos
Ainda sabemos pouco sobre os laços emocionais dos animais vertebrados - sabemos que são seres sencientes, ou seja, que sentem, mas não pensam. Não têm consciência como os humanos, mas eles conseguem avaliar as ações dos outros e de lembrar suas próprias ações e consequências, alem de saber avaliar riscos. Os primatas têm sentimento de perda, como comprovam inúmeros casos em que um deles, perdendo um parente entram em desespero e depressão. Cães e gatos domésticos costumam ter reações semelhantes, quando perdem seus donos ou outros animais de companhia.
A CRIAÇÃO FICTÍCIA DE PSEUDOTEORIAS CIENTÍFICO-FILOSÓFICAS
Leem-se muitos estudos sobre "A Igreja do Diabo", "A Causa Secreta", "Noite de Almirante" e tantos outros contos, mas quase nada sobre "Conto Alexandrino". No entanto, é um conto tão lapidar quanto os citados e no qual Machado de Assis também desenvolve, criticamente, uma de suas marcas irônicas na ficção: as pseudoteorias científico-filosóficas.
Criticamente porque, por trás de teorias engendradas por seus personagens, transparece uma fina ironia sobre as correntes científicas e filosóficas reais (hoje aceitas ou não, como o Positivismo, o Determinismo, a Hereditariedade, a Teoria do Criminoso Nato, o Evolucionismo etc.) que grassavam na época machadiana, muitas vezes usadas na literatura, na imprensa e até nas discussões jurídicas sem o entendimento profundo que tais doutrinas requeriam. Era a partir desse desconhecimento que as personagens machadianas tripudiavam.
No "Conto Alexandrino", o narrador também nos mostra uma curiosa filosofia através da qual o personagem Stroibus tenta provar que a essência das capacidades e dos atos humanos está nos animais:
"Em suma, os deuses puseram nos bichos da terra, da água e do ar a essência de todos os sentimentos e capacidades humanas. Os animais são as letras soltas do alfabeto; o homem é a sintaxe." (p. 411)
Stroibus e Pítias queriam provar que beber sangue de animais faria adquirir as características desses animais. Beberam sangue de rato e tornaram-se ladrões, espertíssimos gatunos. Tão espertos que não assumem imediatamente essa condição de ladrões porque suas primeiras ações como gatunos foram registrar como suas criações intelectuais alheias, ação mais conhecida como plágio, que é uma forma eufemística de roubo:
"A própria denominação de plágio é um indício de que os homens compreendem a dificuldade de confundir esse embrião da ladroeira com a ladroeira formal." (p. 414)
Como o próprio autor nos chama a atenção na Advertência da 1.ª Edição, em Histórias sem data os contos dessa coletânea têm data, exceto dois. Porém, essas datas não aparecem e fica difícil saber se o "Conto Alexandrino" é anterior ou posterior ao romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, no qual aparece outra curiosa filosofia, o Humanitismo (mais desenvolvido posteriormente no livro Quincas Borba , teoria do filósofo Quintas Borba, segundo a qual "um princípio único, universal, eterno, comum, indivisível e indestrutível" [QB, p. 646]), do qual todos emanamos, Humanitas, a tudo justifica:
Talvez, pior do que essa criatividade irônica de pseudoteorias seja a crítica mais exacerbada à teoria do Dr. Lombroso , que inventa a criminalidade nata, justificando pela hereditariedade as monstruosidades de assassinos perversos. Eles não tinham culpa dos seus atos, eram atavicamente assassinos, isto é, despertaram neles genes de cruéis antepassados.
Dr. Lombroso
O italiano Cesare Lombroso (1835-1909) foi professor universitário, criminologista e médico psiquiatra. Ficou célebre pelos seus estudos e teorias que relacionavam as características físicas dos indivíduos com comportamento antissocial, estudos esses que se tornaram conhecidos como antropologia criminal. Suas teorias foram cientificamente desacreditadas, porém, serviram para estudos jurídicos e influenciaram o Direito Penal. Ainda hoje, Lombroso costuma ser citado nos estudos científicos que investigam mentes criminosas.
E tanto em Memórias Póstumas, quanto no "Conto Alexandrino" podemos captar a noção sobre os seres que são considerados pessoas humanas e os que não o são. A ação no trato com os escravos é similar à de Herófilo, quando faz vivissecção em pessoas, alegando que os prisioneiros utilizados para esse ofício não eram humanos, pois lhes faltavam a razão e a virtude:
"Já não são cidadãos, nem mesmo se podem dizer homens, porque a razão e a virtude, que são os dois principais característicos humanos, eles os perderam, infringindo a lei e a moral." (p. 415)
Os escravos também não eram considerados humanos e sim mercadoria.
OS RATOS E (MAIS) INTERTEXTUALIDADE
Neste ensaio, que tem o "Conto Alexandrino" como pretexto, não há como escapar da teratologia. Herófilo, que, na vida real e pelo Método Científico, fazia dissecação em cadáveres, na ficção, aproveitando a filosofia de Stroibus, parte para a vivissecção, tudo em nome da ciência, a verdade das verdades, pela qual todo e qualquer sacrifício é válido.
E, juntando tudo, temos narrativas cruéis. É cruelmente descrita a vivissecção dos ratos para fins de comprovação de tese científica feita por Stroibus e Pítias. Depois, muito mais cruel, é a descrição da vivissecção nos prisioneiros e no próprio filósofo Stroibus, com dupla finalidade: contribui para as descobertas científicas, com "notável" proveito para a humanidade, e inibe a criminalidade, pelo horror de se submeter a tão terrível castigo.
Stroibus e Pítias, na vivissecção de ratos, com requintes de crueldade, têm um companheiro de maldade, Fortunato, de outro intrigante conto machadiano, "A Causa Secreta", o qual, tendo um rato pendurado pelo rabo na ponta de um barbante, ia cortando-lhe as patas, uma a uma, e baixando-o ao fogo e afastando-o dele, para que ele não morresse rápido, a fim de poder prolongar o efeito da dor.
O rato atua firme como uma espécie de símbolo de exploração do homem pelo homem, pelos mais diversos interesses, grandes ou pequenas e particulares ditaduras. Fortunato é essencialmente monstro, mas socialmente normal, por ter posses e bons relacionamentos, e sentia enorme prazer, mas um prazer exageradamente deleitoso, quando percebia a dor alheia; Stroibus e Pítias, a pretexto de que a experiência não estava completa, ampliaram absurdamente o sacrifício dos ratos. Uma imolação tanto no "Conto Alexandrino" quanto no "A Causa Secreta". Só que Stroibus e Pítias depois foram imolados, submetidos ao mesmo sacrifício, enquanto Fortunato, aparentemente, continuou sua vida socialmente normal.
O Bicho
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
Mesmo sendo símbolo de exploração do homem pelo homem, o rato ganha certo status nas palavras de um poeta que não se caracteriza pela poesia social, Manuel Bandeira, o qual, no intenso poema "O Bicho", também registra que o animal que está engolindo vorazmente, sem examinar nem cheirar, comidas catadas entre os detritos dum lixão não é um cão, não é um gato, não é um rato; o bicho, ó Deus, é um homem! Ou seja, a degradação do homem explorado, excluído socialmente, e que, por isso, numa espécie de hierarquia ontológica dos animais próximos, o cão em primeiro, o gato em segundo, o rato em terceiro, o homem só aparece depois do rato, um símbolo literário de exploração.
Para finalizar, mesmo nesse "Conto Alexandrino", não se pode deixar de lado outra possibilidade, porque bem machadiana, de que o rato, ou o seu sangue, represente os próprios seres humanos, isto é, os dois filósofos se transformaram em ladrões porque essa seria a essência da maioria, por caráter fenotípico puro. E, para que não nos acusem de maldoso, não estamos nos referindo a políticos, e sim à ideia possível de que havia massacrante falta de ética nos homens.
É bom relembrar duas coisas aqui: que a ética é pontual, cada época tem a sua; e que essa última interpretação é apenas um lampejo e não algo elaborado.
* Prof. Leo Ricino é Mestre em Comunicação e Letras e professor da Fecap - Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado.
Revista de Literatura / UFRJ
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