Certa vez, ao viajar de avião com o cartunista Jaguar, Millôr Fernandes se entretinha devorando a seção de obituários de um jornal. "Você lê isso?", horrorizou-se Jaguar. Como de praxe em se tratando de Millôr, a resposta foi na lata: "E você deveria ler também; às vezes, a gente tem surpresas agradabilíssimas". Millôr tinha uma lucidez sem paralelo em qualquer outro artista, filósofo ou intelectual brasileiro de todos os tempos. Foi o pensador mais genial que o Brasil já produziu. Ele morreu às 9 da noite da última terça-feira em seu apartamento na Praia de Ipanema, no Rio de Janeiro, aos 88 anos. Foi escritor, poeta, desenhista, jornalista, humorista, tradutor, dramaturgo e cenografista. Tudo isso embalado pelo sentimento determinista da vida, marca dos grandes humanistas. Millôr teve uma prolífica atuação como colunista de VEJA, de 1968 a 1982, e em uma segunda fase, de 2004 a 2009. As ilustrações e escritos reunidos nesta reportagem (somados às assinaturas, que ele nunca repetia) mostram o brilho e a perenidade clássica de Millôr. O que o tornava ainda mais formidável era sua capacidade de criar aforismos que confrontavam as unanimidades, fossem as preguiçosas ou as dadas como verdades irrevogáveis. Nisso, não será exagero dizer que chegou a superar seu maior ídolo na área da escrita, o irlandês Bernard Shaw (1856-1950). Como desenhista, só é possível compará-lo a um artista da estatura do americano Saul Steinberg (1914-1999), com o qual dividiu o primeiro lugar num concurso em Buenos Aires, nos anos 50.
Nascido em uma família de classe média do bairro carioca do Méier, ele ficou órfão de pai com apenas 2 anos, em 1925. Deveria ter se chamado Milton, mas a caligrafia impenetrável do tabelião o fez Millôr. Aos 12, perdeu a mãe e foi morar na casa de tios. Como os miseráveis dos romances do inglês Charles Dickens no século XIX, lembrava-se que os primos ganhavam bife nas refeições, mas ele não. Com 15 anos já se empregara como contínuo da revista O Cruzeiro, do lendário Assis Chateaubriand. Pouco depois, teve a primeira chance de exibir seu talento: foi convocado a preencher uma lacuna de publicidade em quatro páginas da revista coirmã A Cigarra. Ele deu o nome de Poste-Escrito ao conjunto do trabalho. Fez sucesso imediato. Assinava-se Vão Gôgo, alcunha que usaria inclusive em seu período áureo na revista O Cruzeiro, entre 1945 e início dos anos 60. Sua coluna O Pif-Paf (que depois viraria revista à parte, de vida breve e ruidosa) foi um dos carros-chefe da maior publicação nacional do período. Confiante, ele assumiu a falha de grafia em sua certidão de nascimento e "Millôr" nasceu para o mundo.
E com que estardalhaço! Em 1963, publicou em O Cruzeiro uma versão genial da história de Adão e Eva. Despertou a ira religiosa dos leitores. Foi demitido. Millôr passou a publicar em VEJA já na 13ª edição da revista. Quase ao mesmo tempo ajudou a criar O Pasquim, o tabloide incendiário que fustigava a ditadura militar e que, na definição de Millôr, "se fosse independente não duraria 100 dias e se durar 100 dias não é independente". Durou 8 173 dias. A redemocratização provocou-lhe um momentâneo choque de criatividade. Entregou-se acriticamente à corrente política de Leonel Brizola e seu nacionalismo ingênuo. Insistiu em fazer propaganda política brizolista na sua seção em VEJA. Foi demitido em 1982. Voltou a escrever na revista em 2004. Sua fase final foi de plenitude. Seu alvo, a hipocrisia. Dos esquerdistas que correram a receber seus milhões da "Bolsa Ditadura" no governo do PT, escreveu: "Quer dizer que aquilo não era ideologia, era investimento?".
ALTA FILOSOFIA
A morte é compulsória, a vida não
Não há problema tão grande que não caiba no dia seguinte. Morrer, por exemplo, é uma coisa que se deve deixar sempre pra depois
A diferença entre existir e viver é mais ou menos dez salários mínimos
O ruim das amizades eternas são os rompimentos definitivos
Todo homem nasce original e morre plágio
Só existe um amigo verdadeiramente sincero - o amigo do alheio
Uma coisa eu lhe garanto, amigo - o seu complexo de inferioridade não é inferior ao de ninguém
A boca é o aparelho excretor do cérebro
Não beber é o vício dos abstinentes
ANDANDO NA CONTRAMÃO
Não beber é o vício dos abstinentes
Pobre quando vê muito esmola nem desconfia
A Advocacia é a maneira legal de burlar a Justiça
Quando duas pessoas odeiam a mesma pessoa, têm a impressão de que se estimam
Ser pobre não é crime mas ajuda a chegar lá
Nos momentos de perigo é fundamental manter a presença de espírito, embora o ideal fosse conseguir a ausência do corpo
Não há nada que faça você se arrepender mais profundamente do que ser apanhado no ato
Os caras que se orgulham muito da ascendência no fundo estão lamentando apenas o quanto já descenderam
Quem não tem boa aparência acha sempre que as aparências enganam
Quando um quer, dois brigam
O egoísmo é a generosidade consigo mesmo
Errando é que se aprende. A errar
Especialista é o que só não ignora uma coisa
A esperança é a última que mata
As estatísticas provam: as estatísticas não provam nada
O otimista não sabe o que o espera!
A vida seria muito melhor se não fosse diária
Clássico é um escritor que não se contentou em chatear apenas os contemporâneos
Realmente, o dinheiro não é tudo. Temos também as ações ao portador, alguns terrenos na Barra, doze apartamentos no centro, joias - e alguns quadros comprados de artistas moribundos
Cão que ladra não morde. Enquanto ladra
Como são admiráveis essas pessoas que conseguem atravessar a vida sem fazer nada de admirável!
Pessoas com pavor de avião acabam morrendo em desastre de automóvel
PORTUGUÊS MILLHORADO
Abreviação: palavra comprida pra coisa curta
Ontem, ontem tinha agá, hoje não tem. Hoje, ontem tinha agá, e hoje, como ontem, também tem
Os analfabetos têm falta de vitamina ABC
Autodidata é uma pessoa que aprende a dirigir sozinha
Carapinha é uma cabeleira cheia de problemas raciais
Caravana é uma praga de viajantes
Tudo é erro na vida do revisor
POESIA BREVE
No aeroporto cheio
Eu filo
O adeus alheio
Aniversário é uma festa
Pra te lembrar
Do que resta
O político é um gaiato
Que prefere a versão ao fato
O burocrata,
Não sabias?,
Teve filhos
Em três vias
Quando abrirem meu coração
Vão achar sinalização
De mão e contramão
NOSENSE
A invenção do alkaseltzer foi uma tempestade num copo d’água
E como dizia o careca: peruca é uma coisa que nunca me passou pela cabeça!
Na Amazônia a selva é tão inabitável que ninguém vive lá
AUTO DE FÉ
O sujeito que me fará acreditar na imortalidade da alma ainda está para ressuscitar
O ateísmo é uma espécie de religião em que ninguém acredita
Sabemos que VOCÊ, aí de cima, não tem mais como evitar o nascimento e a morte. Mas não pode, pelo menos, melhorar um pouco o intervalo?
AMOR & SEXO
Amor não é coisa pra amador
Só os imbecis acham que o sexo é um ato físico
De todas as taras sexuais, não existe nenhuma mais estranha do que a abstinência
Arranje um amor novo enquanto ainda estiver usando o velho
CASAMENTO
O adultério é o mercado negro do orgasmo
"Meu bem" é o nome de solteiro do marido
O preço da badalação é a eterna solidão
O pior casamento é o que dá certo
A felicidade conjugal é extremamente difícil. Mas, quando existe, é extraconjugal!
MULHERES
Só conheço um afrodisíaco - mulher
O melhor movimento feminino ainda é o dos quadris
Para conseguir vencer, uma mulher bonita tem que lutar muito. Ou não lutar nada
Anatomia é essa coisa que os homens também têm, mas nas mulheres fica muito melhor
Uma mulher nunca é tão bela quanto já foi
A beleza é a inteligência à flor da pele
EU, O HUMORISTA
Fiquem tranquilos os poderosos que têm medo de nós: nenhum humorista atira pra matar
Só no dia em que começaram a pagar bem pelo que eu escrevia comecei a aceitar que era rico de ideias. Bem, rico não, remediado de ideias
De uma coisa estou certo: sou bem pior do que os melhores - mas um pouquinho melhor do que os piores
Creio que a Terra é chata. Procuro em vão não sê-lo
Nunca ninguém me ensinou a pensar, a escrever ou a desenhar, coisa que se percebe facilmente examinando qualquer dos meus trabalhos
Sou um humorista nato. Muita gente, eu sei, preferiria que eu fosse um humorista morto, mas isso virá a seu tempo.
Eles não perdem por esperar
O ESTADO DA NAÇÃO
No momento em que aumentam as nossas descobertas arqueológicas fica evidente que o Brasil tem um enorme passado pela frente. Ou um enorme futuro por detrás, se preferem
O Brasil é os Estados Unidos onde eu vivo
Brasil, condenado à esperança
Nossos executivos governamentais se dividem entre os que são capazes de tudo e os que são incapazes de todo
Brasília é o desnecessário tornado irreversível
POLÍTICA & ÉTICA
A diferença fundamental entre Direita e Esquerda é que a Direita acredita cegamente em tudo que lhe ensinaram, e a Esquerda acredita cegamente em tudo que ensina
Se você perguntar a qualquer cidadão de uma ditadura o que acha do seu país, ele responde: "Não posso me queixar"
Ecologia: uma esquerda conservadora
Se algum dia eu abrir mão de minhas convicções morais, a preferência é sua
Me arrancam tudo à força, e depois me chamam de contribuinte
Acabar com a corrupção é o objetivo supremo de quem ainda não chegou ao poder
Os corruptos são encontrados em várias partes do mundo, quase todas no Brasil
O crime se organizou porque já não aguentava mais os assaltos da polícia
REVISTA VEJA
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