segunda-feira, 23 de abril de 2012

Crônica do Dia - Surpresa, apareceu uma herdeira ! - Walcyr Carrasco



Uma amiga me contou a história por e-mail. Duas mulheres com mais de 70 anos tentavam pegar um táxi no centro do Rio de Janeiro. Os carros passavam como foguetes. Um PM parou um motorista – que estava ao celular – e obrigou-o a pegar as passageiras. De péssimo humor, ele continuou ao celular. Só terminou a ligação em Copacabana, dizendo para o irmão:

– Bem que ele gritou o nome dela quando estava no fim.

Após alguns palavrões, perguntou:

– Onde é a missa? Estou deixando as passageiras em Ipanema.

Desligou. Virou-se para trás. Só então as duas descobriram que o mau humor não era com elas.

– A gente pensa que conhece alguém e não conhece – disse o motorista.

Resumo da história. O pai havia morrido. O irmão fora, naquela tarde, verificar a situação de um seguro que, todos sabiam, o velho fizera há algum tempo em nome da mãe, já morta. Os filhos contavam receber uma soma que os deixaria bem confortáveis. Mas era outra a beneficiária. Uma ex-empregada chamada Margarida de Tal. Fora pelo nome de Margarida que o moribundo clamara, sem ninguém entender.

– Vejam só o que o velho aprontou!, disse o taxista.

As passageiras desceram imaginando o clima da missa. A raiva dos irmãos.

– Haja reza!, murmurou uma delas.

O mundo mudou, mas as pessoas ainda tendem a ver as empregadas como agregadas de pouca expressão. É uma mentalidade herdada dos tempos do Brasil Colônia quando a casa-grande era servida por escravas de olhos baixos que agradeciam um prato de comida. As leis vieram, as obrigações dos patrões são claras. E as funcionárias do lar sabem disso. No passado, muitas aceitavam o papel de objeto sexual do patrão. Hoje não é mais assim. Há algum tempo eu frequentava um salão de cabeleireiro na Granja Viana, em São Paulo. A dona era uma mulher extrovertida. De um dia para o outro, fechou a cara. O motivo: um processo judicial movido pela ex-doméstica. Quando sua mãe morreu, ela e o irmão deixaram o pai aos cuidados da empregada. Foi um alívio.

– Ela cuidava dele como um anjo.

Nesses tempos de Viagra, tudo foi bem diferente do que imaginavam. Anos depois, quando o velho morreu, o “anjo” entrou com uma ação.

– Trabalhista?

– Não, de união estável.

Os irmãos tentaram salvar a casa, o mais valioso bem
deixado pelo pai. A outra reuniu testemunhas: vizinhos a cujos churrascos ela comparecia com o velho de braços dados; o gerente do supermercado mais próximo; recibos de gastos variados. Não deu outra: ficou com a casa.

– Bem, pelo menos ela cuidou de seu pai.

A cabeleireira decepou minha franja com uma tesourada só. Calei. Antes que cortasse minha língua.

– A união estável pode ser provada de várias maneiras. Uma doméstica pode provar que, de fato, tinha um relacionamento amoroso, diz o advogado Ricardo Brajterman, do Rio de Janeiro.

A lei hoje apresenta muitas possibilidades. O prazo para determinar a união estável é indefinido – depende da qualidade das provas. Viagens, aparições sociais, testemunhos, gastos são indícios levados a sério no tribunal.

– E se a doméstica for registrada?

– Nada impede que o marido seja patrão da mulher, com carteira assinada. Funciona do mesmo jeito no caso de uma empregada doméstica, afirma Brajterman.
 
Alguns idosos também descobrem que a dedicação de uma estranha pode valer mais que o afeto distante de filhos que preferem cuidar da própria vida. Um militar viúvo, no Rio de Janeiro, foi diagnosticado com câncer. A doméstica, que acompanhava a família desde os tempos em que a mulher vivia, dedicou-se a ele integralmente. A ponto de deixar o próprio filho aos cuidados de uma irmã. Confortáveis, os herdeiros visitavam o pai de quando em quando. Durante cerca de dez anos, o militar lutou contra a doença. Quando não havia mais alternativa, fez o pedido.

– Casa comigo.

Ela surpreendeu-se. Ele explicou: o casamento seria apenas para que tivesse direito à herança.

Para surpresa absoluta dos filhos, casaram-se em poucas semanas. Ela cuidou dele até o final, como fazia há anos. Ficou com a pensão de viúva – integral, por ele ser militar –, o apartamento na Zona Sul e o sítio, enquanto os filhos se digladiavam pelo restante.

Na velhice, mais que em qualquer outra idade, as barreiras sociais são abolidas. Vale a solidariedade. E a doméstica pode tornar-se a pessoa mais próxima de um velho esquecido pela família.

REVISTA ÉPOCA

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