O poeta Fernando Pessoa tinha 19 anos, em 1907, quando desistiu do curso de Letras por temer a “degenerescência neuropática” que acometia a academia lisboeta. Chegava a hora, concluía ele, de dizer não ao impressionismo, ao subjetivismo, ao misticismo, à filosofia de Friedrich Nietzsche e à música de Richard Wagner, entre tantos passadismos. Sua intenção sem modéstia era civilizar Portugal. Nessa onda, navegava sozinho, embora, como diria ao amigo escritor Mário de Sá-Carneiro anos depois, visse “barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer”. A mãe, Maria Madalena, e o padrasto, João Miguel Rosa, enxergavam exagero nas suas ideias, indefinição na sua sorte, solidão a acometê-lo, além de uma “teimosia mansa” que fazia o jovem se multiplicar interiormente, com um medo irracional de crescer. Mal sabiam. Ele nunca deixaria de ser um menino. E, em lugar de um, encarnaria muitos Pessoas, literários ou não, com quem brincar.
Aos 6 anos de idade, um dos maiores poetas de todos os continentes já criara um escritor-amigo de boa convivência, Chevalier de Pas. Mas, naquele momento imediatamente anterior aos 20 anos, imberbe em neurastenias, ele julgou ser o caso de se fazer passar por um psiquiatra para descobrir quem realmente era. Batizou-o de Faustino Antunes. E sob seu nome dirigiu cartas a ex-professores e a um ex-colega da turma da Durban High School, que frequentara em sua estada africana, entre 1896 e 1905, nas quais indagava sobre Fernando Pessoa. Recebeu duas respostas e se feriu.
A principal dessas missivas pertencia a Clifford Geerdts, antigo concorrente para o lugar de primeiro da classe. Ele responderia sobre o caráter do colega: “Dócil e inofensivo”. Fernando, dizia, não participava dos desportos e não fazia amizades. Era pálido e magro, com um tórax estreito e contraído e tendência para se curvar, um modo de andar peculiar e algum defeito na vista. Com essa descrição, Geerdts talvez tivesse apenas experimentado o sabor frio da vingança contra um companheiro mais destacado do que ele nos estudos, mas o poeta não entenderia a coisa assim. Ficaria sempre com a ideia de que não era bonito nem capaz de suscitar grandes paixões, embora suas fotos de adulto lhe concedessem um ar saudável e, por que não dizer, atraente.
Investigar os muitos reflexos desse prisma pessoano foi o trabalho dos pesquisadores Richard Zenith, nascido nos Estados Unidos há 55 anos, e Joaquim Vieira, português há 60. Sua Fotobiografia de Fernando Pessoa (Companhia das Letras, 224 págs., R$ 67) quer explicar com simplicidade a malha de tantos fios. Quem foi, o que desejou Fernando Pessoa e o que realmente fez? Tudo, nesse livro, vem apresentado de modo abrangente por Zenith, sem o temor de ser eclipsado pelas fotografias autoexplicativas recolhidas por Vieira, entre elas imagens inéditas da Durban de língua inglesa e aquela, em Lisboa, do concorrido enterro do poeta, aos 47 anos, possivelmente vítima de pancreatite. O artista cultivava amigos em cafés lisboetas como A Brasileira e Martinho da Arcada.
“Era indivíduo social, gostava de conversar e tinha um grande sentido de humor, mas se mostrava extremamente reservado, o que dificulta o trabalho do biógrafo”, diz Zenith em entrevista a CartaCapital, ele que teve contato com a obra do poeta pela primeira vez em Florianópolis, onde viveu no início dos anos 1980, antes de se estabelecer em Portugal, um quarto de século atrás. “Pessoa estava sempre a fingir, na poesia como em tudo”, crê. “Aliás, advertiu o seu primeiro biógrafo, João Gaspar Simões, do perigo de concluir que tinha imensas saudades da infância só porque alguns dos seus poemas falam de saudades da infância.”
Recusando-se “a ficar mental ou espiritualmente parado”, o poeta mudava de opinião constantemente, o que resultou numa certeza para o autor da Fotobiografia: “Para escrever sobre Pessoa é preciso ler tudo, pesar e peneirar tudo, e evitar conclusões fáceis”. Zenith se vê como um “cineasta” de sua vida, “mostrando o que é possível mostrar, do homem exterior e também interior, mas sem me preocupar em chegar ao ‘verdadeiro’ fundo do meu sujeito”. Sua pretensão seria a de fazer o leitor conviver com o autor, ainda por cima “em toda a sua multiplicidade”.
O pesquisador levanta com delicadeza, mas firme direção, desde a possibilidade de o artista ter experimentado o fantasma da loucura, que atingira uma tia, até a obscura vida sexual do poeta, cuja única paixão documentada e abandonada fora aquela por Ofélia Queirós (1900-1991), que tinha 19 anos quando o conheceu. Havia interesse, mas não compromisso em relação à jovem, que, no entanto, queria se casar com ele. “A vivência sexual de Pessoa parece ter sido pouca ou nula”, diz o pesquisador na entrevista: “É provável que tenha morrido virgem, pois sabemos, pela evidência da escrita mediúnica, na qual consultava espíritos astrais sobre o problema de sua castidade, que esta era a sua condição quando já tinha 28 anos”.
A perspectiva homoerótica não é abandonada pelo biógrafo, já que os poemas de Pessoa nessa linha, ainda que “fingidos”, foram vários. Certa vez escreveu a Sá-Carneiro, que se apaixonara por uma prostituta e atrasava em missivas: “Mas não pensa em mim?” No poema Antinous, produzido no verão de 1915, fizera o imperador Adriano cantar sua dor e seu amor perante o cadáver do amante. Alguns meses depois, registraria em um diário que uma “rapariga bastante interessante” lhe lançara um olhar sedutor, sem que jamais se falassem. O texto é concluído com uma frase enigmática: “O Imperador, ai de mim!” Ficou bastante conhecido o episódio em que seu heterônimo Álvaro de Campos compra uma briga com estudantes indignados após a publicação, por sua editora Olisipo, da obra dos homossexuais Antônio Botto e Raul Leal: “Ó meninos: estudem, divirtam-se e calem-se”, escreveu em Aviso por Causa da Moral: “Estudem ciências, se estudam ciências; estudem artes, se estudam artes; estudem letras, se estudam letras. Divirtam-se com mulheres, se gostam de mulheres; divirtam-se de outra maneira, se preferem outra. Tudo está certo, porque não passa do corpo de quem se diverte”.
A ânsia de polemizar era realizada muitas vezes por meio dos heterônimos, especialmente o de Campos. Ele chegou a lamentar que Fernando Pessoa, ele mesmo, tivesse obra pouco abrangente, embora imaginasse uma eternidade literária para si, além de uma grandeza quiçá maior que a de Luís de Camões. O livro detalha-se em explicar os heterônimos, do pragmático Alberto Caeiro ao autor de odes Ricardo Reis, e levanta aspectos de outros revelados a partir da famosa arca de inéditos, já que somente em 1934, um ano antes de sua morte, ele publicou Mensagem, o primeiro livro de poemas. É de Richard Zenith a descoberta, registrada apenas nesta edição brasileira da Fotobiografia, do heterônimo Karl P. Effield. “Oriundo de Boston”, Effield é o autor de The Miner’s Song, o primeiro poema em inglês publicado por Pessoa, aos 15 anos.
As faces do poeta se multiplicaram na política, que enfrentou às vezes equivocadamente, por exemplo, ao apoiar Salazar, para depois duramente combatê-lo. Ele parecia encarar os fatos da vida com a distração do astrólogo que também foi. Queria se dar bem nos negócios, mas isso raramente ocorreu. Aventurou-se pela edição de revistas literárias e pela publicidade, embora seu célebre slogan para a Coca-Cola, “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”, jamais tivesse ganhado as ruas. O produto foi retirado do mercado possivelmente devido à palavra “coca” no nome, mas o slogan pessoano, argumenta Zenith, pode ter contribuído para essa medida, já que o departamento de Saúde de Lisboa vira nele uma “clara confissão da toxicidade da bebida”.
Na língua estaria o verdadeiro destino do artista, responsável por criar uma “civilização interior”, povoada, segundo o biógrafo, por autores inventados, uma vez que seu projeto realista de modernizar Portugal demorava a se estabelecer. Desde a infância, a pátria era seu maior interesse. Depois da morte precoce do pai e das novas bodas da mãe, a família considerou deixá-lo em casa, com parentes, enquanto o casal recente se estabeleceria na África. Mas o menino manifestou contrariedade a esse respeito. Aos 7 anos, Fernando Pessoa escreveu seu primeiro poema, À minha querida mamã, dando à figura materna uma preferência: Eis-me aqui em Portugal/ Nas terras onde eu morei./ Por muito que goste delas/ Ainda gosto mais de ti. Seu último verso, contudo, saiu na língua de Charles Dickens, o autor dos Pickwick Papers, que ele tanto amava. I know not what tomorrow will bring, escreveu Fernando Pessoa no hospital de São Luís dos Franceses, no Bairro Alto, Lisboa. “Não sei o que trará o amanhã”, em bom português.
Revista Carta Capital
Nenhum comentário:
Postar um comentário