domingo, 29 de abril de 2012

Te Contei, não ? - A Fórmula para chegar lá



Higor é negro, mora em um bairro popular da zona sul de São Paulo e estudou toda a vida em escola pública. Comemora, agora, o primeiro lugar em direito na Fundação Getulio Vargas (FGV). Mariana, criada em uma pequena cidade do sul de Minas, não entrou para a universidade de primeira. Não podia pagar pelo ensino superior privado, então tentou o vestibular de novo e, neste ano, conquistou incríveis nove aprovações para medicina em instituições públicas de ponta. Ornaldo é indígena e acaba de chegar a São Paulo. Ele, que veio do Acre, é o mais novo aluno de medicina da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Mais do que superar dezenas de candidatos e conquistar uma vaga em instituições e cursos concorridíssimos, esses jovens têm outra característica que os une: para chegar lá, tiveram de vencer adversidades muito maiores do que os exames.

Com boa parte ou toda a vida escolar na educação pública, são a prova de que brilho individual é peça importante para superar a precariedade do ensino brasileiro. Não que no passado jovens talentos oriundos de famílias sem dinheiro e com trajetórias acadêmicas exemplares não existissem. Eles já estavam aí, só que em menor número. Na última década, porém, com a melhoria econômica e a maior confiança da população brasileira, está em curso uma mudança que tem embasado a maior presença desses estudantes nas salas de aula dos principais centros acadêmicos do País. “Antes, uma série de alunos de escola pública com grande potencial não chegava à academia por achar que não conseguiria passar no vestibular”, avalia o cientista social Juarez Dayrell, coordenador do Observatório da Juventude da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Isso mudou. “Na última década houve uma transformação de imaginário que colocou na ordem do dia das camadas populares o desejo de ir à universidade”, considera Dayrell, que observou essa tendência em uma pesquisa recente com 245 jovens do ensino médio público paraense. Ainda que eles não soubessem como, a maior parte demonstrou interesse em cursar o ensino superior.

Quando chegam lá, mais que simples alunos, esses jovens muitas vezes se tornam propulsores de mudança dentro das instituições. Foi o caso de Higor Borges Lima, 22 anos. Quando se inscreveu para o vestibular de direito na FGV, o jovem, filho de pai retificador ferramenteiro e mãe auxiliar de enfermagem, sabia que não tinha nenhuma condição de bancar os R$ 3.743 mensais cobrados pelo curso. “Fiquei feliz quando vi que passei em primeiro, mas nem alimentei esperança de estudar lá”, conta. Mal imaginava ele que, do outro lado da cidade, no campus da FGV, sua aprovação também causava rebuliço. Afinal, foi com surpresa que a direção da instituição constatou que o primeiro colocado vinha de um desconhecido colégio público da zona sul de São Paulo, a escola estadual Professora Maria Petrolina Limeira dos Milagres. O colégio ocupou apenas a humilde 481ª posição no último ranking das escolas paulistanas no Enem, em um total de 897 instituições de ensino médio da cidade.

Diante da constatação, houve toda uma negociação interna para garantir que o rapaz ficasse. É praxe na FGV dar ao primeiro colocado bolsa integral. No caso de Higor, porém, era preciso fazer mais. “Resolvemos antecipar um programa previsto para começar no próximo ano letivo, de auxílio financeiro para alunos que não têm recursos para se bancar na instituição, que exige dedicação integral aos estudos”, disse Oscar Vilhena, diretor da Escola de Direito da FGV-SP. Em caráter de emergência, aprovou-se que, além da isenção da mensalidade, o jovem receberia R$ 850 por mês. A decisão pegou o rapaz de surpresa e o deixou com um doce dilema a resolver: aprovado também no tradicionalíssimo (e concorrido) vestibular da Faculdade de Direito da USP o estudante deveria escolher entre a FGV e a universidade estadual. Bateu o martelo na sexta-feira 24: ficou com a FGV. Para passar nas duas instituições, Higor teve de compensar, por conta própria, o que não viu em sala de aula. “Eu aprendo muito sozinho”, conta ele, que devorou as apostilas do cursinho em casa.
Não é exclusividade da FGV o interesse em identificar e reter jovens talentos deixados à deriva no sistema público de ensino. Vale lembrar que no ranking geral do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), o Brasil ainda ocupa apenas a 53ª posição entre os 65 países avaliados. “As escolas, em especial as públicas, trabalham para prevenir e combater o fracasso escolar, mas pouco se fala em sucesso, e em ensino individualizado, atento às necessidades e aos ritmos individuais”, diz Paulo Bareicha, professor da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília. O resultado disso, explica, é a falta de incentivo à germinação de potenciais. “A padronização oculta o prodígio. Os diferentes são excluídos, para o bem ou para o mal, mas, principalmente, para o mal”, diz. Se ainda não há medidas enfáticas dentro do ensino público para tratar essa falha, outros setores já esboçam alguma reação. Isso pode ser visto nas iniciativas privadas que buscam investir nesses prodígios. Uma delas é o Instituto Social Para Motivar, Apoiar e Reconhecer Talentos (Ismart), que desde 2004 identifica e prepara estudantes de baixa renda no Rio de Janeiro e em São Paulo para o ensino superior. Quem é selecionado, faz um cursinho preparatório e depois realiza o “vestibulinho” de colégios particulares. Se aprovado, ganha uma das 180 bolsas ofertadas a cada ano. O formato pode não ser o mais adequado – deixa muita gente de fora e não mexe no principal, que é a necessidade de se reformular a educação básica pública brasileira –, mas é um paliativo que ajuda jovens que não podem esperar pela reforma educacional.

A descendente de japoneses Karina Tiemi Ono, 17 anos, é uma das beneficiadas. Ela é moradora da zona rural do município de Pariquera-Açu, pequena cidade de 18 mil habitantes no litoral sul paulista distante 220 quilômetros da capital. Filha única e sem vizinhos próximos, a menina sempre teve na leitura um passatempo. Boa aluna, foi “achada” durante uma olimpíada de matemática em que tirou o segundo lugar e convidada a integrar o Ismart. Como não havia escola credenciada em sua cidade, Karina se matriculou na opção mais próxima, o Colégio Objetivo de Registro, distante 70 quilômetros de sua casa. Durante todo o ensino médio, a jovem fez uma verdadeira ginástica para não perder a bolsa de estudos: acordava às 5 horas, pegava ônibus intermunicipal, e, por dia, gastava quase três horas para ir e voltar da aula. Como não conseguia ler com o veículo em movimento, aproveitava o caminho para descansar e, quando chegava em casa, fazia as tarefas e estudava mais um pouco. Não todos os dias, conta, porque em alguns estava tão exausta que não conseguia nem ficar acordada. Tanto empenho, teve sua recompensa: Karina pode escolher, agora, entre USP, UFSCar e Unicamp. “O resultado me surpreendeu muito, eu já estava até vendo cursinho para este ano”, conta a adolescente.
Por trás de todo o esforço de Karina está uma característica comum a esses jovens talentos: “Quando eles têm uma oportunidade, a agarram com todas as forças”, diz Maria Luiza de Andrade Guimarães, coordenadora do Colégio Objetivo. A instituição, que mantém programas de bolsas para alunos de alto desempenho, tem um dado emblemático. Se, entre os alunos que pagam todo o valor da mensalidade, o percentual de aprovação das universidades públicas é de 22%, esse número salta para 80% quando considerados apenas os bolsistas que têm desconto integral ou de mais de 70% da mensalidade. “E se levarmos em conta apenas quem tem desconto acima de 75% e desconto integral, o percentual de aprovação é ainda mais elevado: chega a mais de 90%.” Gustavo Haddad Braga, 17 anos, é um desses meninos de ouro cultivados pelo colégio. Aluno de escola particular, ganhou bolsa na oitava série para estudar na unidade de São José dos Campos. À época, já acumulava alguns bons resultados em olimpíadas de conhecimento – ao todo ele tem mais de 40 medalhas conquistadas em competições nacionais e internacionais. Ele, que concluiu o ensino médio em dezembro, já tem vaga garantida para a Universidade Harvard, nos Estados Unidos. Além dela, aguarda o resultado final da seleção do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), de Yale, de Princeton, de Stanford e do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech). Pelas gringas, ele abriu mão de dois dos vestibulares de engenharia mais concorridos do País, nos quais também foi aprovado: o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e o Instituto Militar de Engenharia (IME). “Estudar para mim sempre foi prazeroso”, diz o rapaz, que dedicava cinco horas de seus dias para os livros, além do horário escolar.

Não é fácil, porém, desvendar a equação que faz com que estudantes como Higor, Karina e Gustavo se destaquem tanto em relação à média. Por muito tempo, creditou-se o desempenho elevado apenas à inteligência. Por isso, no início do século passado o professor francês Alfred Binet anunciou, em meio a muita expectativa, a criação de um teste para medir o quoeficiente de inteligência (QI). A prova foi largamente usada pelo governo francês, na ilusão de que, uma vez identificadas as crianças de QI elevado, se poderia formar uma nata de intelectuais. Hoje sabe-se que não é assim tão simples. “Uma pessoa com inteligência enorme, mas que não se empenha nos estudos vai se sair pior que alguém nem tão inteligente, mas que se dedica muito”, disse à ISTOÉ Shriley Malcom, diretora da Associação Americana para o Avanço da Ciência.
Assim como apenas a inteligência não explica os prodígios, a escola, sozinha, também não pode ser considerada o fator determinante. Embora o espaço escolar, incluindo-se aí a infraestrutura e a qualidade dos professores, seja muito importante, ele não age isoladamente, o que fica claro na história de Higor, que estudou num colégio público mediano, mas sempre foi um excelente aluno. “A escola pode muito, mas ela não pode tudo. Quando você avalia a variação de desempenho entre estudantes, é possível explicar 20% dessa oscilação por causa da diferença da qualidade das instituições, mas os outros 80% vêm de fora delas”, disse à ISTOÉ o pesquisador inglês Nigel Brooke, professor convidado da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Fora dos muros do colégio, um dos fatores mais importantes é o suporte familiar. Em suas pesquisas, Kathleen Hoover-Dempsey, do departamento de psicologia e desenvolvimento humano da Universidade de Vanderbilt, nos Estados Unidos, percebeu que há três eixos principais por meio dos quais essa influência da família se dá. “Os pais apresentam à criança as justificativas para a importância de se ir à escola. São também eles que dão suporte ao aprendizado dentro de casa. Por último, eles podem se engajar na comunidade escolar – seja em atividades de voluntariado, seja em acompanhamento da gestão da instituição”, disse Hoover-Dempsey à ISTOÉ.

Claro que não se pode esquecer ainda de uma boa pitada de resiliência, comum à trajetória desses superalunos. Acostumados a lidar com dificuldades, eles acabam criando estratégias para superá-las. “Alguma adversidade, desde que não seja em níveis altos, tem impacto psicológico positivo”, garante o psicólogo Mark Seery, da Universidade de Buffalo, nos EUA. O pesquisador estudou como situações adversas interferiram na vida de 2.398 voluntários e publicou, em 2010, uma pesquisa que trazia a conclusão já no título: “Aquilo que não nos mata, nos fortalece.” Isso fica evidente na vida desses jovens. “A única opção que eu tinha era passar na universidade pública. Minha família não podia bancar um curso particular”, conta a estudante Mariana Silva Vilas Boas, 19 anos.

A jovem, criada pela mãe, sem ajuda do pai, na pequena Pouso Alegre, no sul de Minas, tem uma história de lutas, fracassos e vitórias. Sem ter como pagar por uma boa escola, Mariana ficou sabendo, na terceira série, da possibilidade de fazer uma prova para ganhar bolsa em um colégio particular. Foi lá, fez o concurso e passou. Para se manter na instituição, onde estudou até o ensino médio, precisou garantir boas notas em todas as matérias, exigência feita para a manutenção do benefício. Finda essa etapa, ela, que queria ser médica, começou uma nova batalha, agora por uma vaga no ensino superior. No vestibular de 2010, encarou as provas de cinco instituições: Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), UFMG, Unicamp e USP. Não passou em nenhuma, mas também não desistiu. Foi atrás de um cursinho em sua cidade e conseguiu outra bolsa de estudos, para fazer o extensivo. “No segundo semestre, estava bem desanimada para estudar para o vestibular de novo”, conta. Os amigos já estavam cursando o ensino superior em particulares e a assombrava a possibilidade de novamente não passar no processo seletivo. Por isso, em 2011 ela resolveu se inscrever em mais instituições que no ano anterior, para ter mais chances de aprovação. O resultado: passou em medicina em nove universidades públicas e escolheu ficar na USP, onde enfrentou 51 vestibulandos pela vaga.

Ver o bom desempenho desses alunos ajuda a quebrar o estigma de que as universidades de excelência são apenas para quem tem dinheiro. Fosse assim, dentre os estudantes de medicina da UFSCar não estaria o indígena Ornaldo Baltazar Ibã, 22 anos. O rapaz é filho do pajé da aldeia Novo Segredo, em Jordão, no Acre. A cidade, de menos de sete mil habitantes e acesso apenas por avião ou barco, é uma das mais pobres e isoladas do País. Para estudar, Ornaldo teve de sair de casa aos 9 anos para morar na vizinha Tarauacá com uma família de não indígenas. E essa foi apenas sua primeira jornada. No ensino médio, mudou-se para Rio Branco e, há uma semana, trocou a capital acriana pela cidade universitária de São Carlos, após conquistar uma vaga em medicina. Distante mais de três mil quilômetros da família, Ornaldo agora aguarda a liberação de uma bolsa da Fundação Nacional do Índio (Funai) de R$ 250 que lhe ajudará a se manter no interior paulista.

É preciso mais ousadia para reconhecer e valorizar esses talentos. “Temos metas muito tímidas na educação. Isso mostra uma falta de crença em nosso potencial, como se nossos alunos tivessem limitações para aprender, o que não é verdade”, avalia Inês Kisil Miskalo, coordenadora de educação formal do Instituto Ayrton Senna, organização que trabalha com a melhoria das escolas públicas do País. Para Inês, a mudança no imaginário das camadas populares é importante, mas precisa vir acompanhada por um fortalecimento das escolas – principalmente para que esses alunos não sejam obrigados a ir buscar em instituições particulares o que deveria ser ofertado pelo governo. Do contrário, seguiremos com o peso de sermos uma da

Há dez anos, no verão de 2002, a jovem Camila Anna Hofbauer Parra, então com 19 anos, recebeu a notícia: era a primeira entre os 9.138 candidatos ao curso de medicina da Universidade de São Paulo (USP), um dos mais concorridos do País. A conquista veio após dois anos de cursinho preparatório e seis horas diárias de estudo. “Foi puro esforço”, diz Camila. A vida depois do vestibular, no entanto, continuou exigindo disciplina e força de vontade da estudante. Foram seis anos de graduação, mais quatro de residência. Hoje, Camila é dermatologista em um hospital privado e em duas clínicas particulares. “E devo abrir meu próprio consultório ainda este ano”, diz, orgulhosa.

Na mesma época, Lucas Martins Zomignani Mendes, com 18 anos, registrava um feito admirável: passou em primeiro lugar nos exames de seleção de três importantes universidades brasileiras: a USP, a Unicamp e a Fundação Getulio Vargas (FGV). A colocação facilitou sua entrada em um mestrado na Escola Politécnica da França e um estágio de seis meses na Universidade de Oxford, na Inglaterra. Formado, porém, não seguiu a carreira de engenheiro químico, sua graduação. Lucas ficou por três anos e meio no mercado financeiro e, atualmente, é sócio-diretor de um site de venda de produtos de cuidados com o cabelo que atende a América Latina. “É uma grande responsabilidade ingressar num mercado ainda em expansão, mas estou satisfeito com minha escolha profissional.”

Pode até não ser imediato, mas o peso de uma instituição de renome no currículo faz diferença. Priscila Vieira, 27 anos, sabe bem disso. Ao retornar ao Brasil em junho de 2008, trouxe na bagagem o diploma de neurobiologia em Harvard, nos EUA. Em um primeiro momento, sofreu para se inserir no mercado brasileiro. “A maior parte das empresas no País se atém ao curso do candidato à vaga de trabalho.
Nos Estados Unidos, eles são mais focados na qualidade da universidade”, conta Priscila. Por um ano ela participou de diversos processos seletivos, sem sucesso. Finalmente foi contratada: primeiro por uma farmacêutica, e, agora, pela Google do Brasil. “Mais do que a formação acadêmica, Harvard me deu uma experiência de vida única”, diz.




Revista Isto É

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