segunda-feira, 23 de abril de 2012

Resenha - O acadêmico e o boêmio





Machado de Assis e Lima Barreto foram considerados antípodas pela crítica tradicional, mas as releituras recentes do autor de Dom Casmurro permitem perceber como ponto comum entre os dois escritores cariocas a preocupação com as contradições da formação nacional 
Carlos Eduardo Ortolan Miranda

“A minha alma é de bandido tímido”
Lima Barreto

Seria tarefa difícil a imaginação de existências mais distintas do que as vividas por Machado de Assis e Lima Barreto. Com efeito, à vida de tranqüilidade metódica, sucesso extraordinário na República das Letras e na carreira burocrática, ao casamento feliz e ao reconhecimento social do bruxo do Cosme Velho, contrapor-se-ia de forma completa Lima Barreto em sua luta diuturna pela sobrevivência, enfrentando a tragédia familiar do pai condenado pela doença mental, escravizado a um emprego modesto como amanuense em uma repartição pública, entregue ao vício da bebida que o conduziria por fim à morte precoce, não sem antes ter atravessado um calvário de acessos de loucura e internações em hospitais psiquiátricos, e acumulado fracassos e frustrações de toda ordem.

Sofrimentos de herói dostoievskiano e realização da felicidade burguesa, vida boêmia e chá da Academia, celibato e solidão e uma esposa dedicada e culta, desespero e alcoolismo e paz de espírito, essas polaridades antitéticas parecem mesmo desestimular qualquer aproximação entre ambos. E, se deixarmos  por um instante o âmbito das informações dos episódios biográficos, encaminhando-nos para a avaliação crítica das obras do dois autores, a clivagem parece, à primeira vista, tornar-se verdadeiramente abissal.

Com efeito, e tratando-se de um caso quase único em nossa história literária, Machado de Assis conheceu, ainda em vida, uma avaliação laudatória praticamente unânime da crítica de seu tempo (a nota dissonante sendo Sílvio Romero), que o julgava um fino cultor do estilo, um analista profundo dos meandros da alma humana, um cético à maneira de Anatole France, repleto de humour inglês, lançando um olhar de galhofa por sobre seu pincenê. Tal estilo machadiano, que coleciona influências universais dos clássicos, de Montaigne a Pascal, de Homero à Bíblia e aos padres da Igreja, de Dante e Shakespeare a Almeida Garrett e aos ironistas ingleses, passando por uma leitura profundamente cuidadosa do melhor da produção nacional, que recupera e supera, caracteriza-se pela elegância, inteligência, e espirituosidade refinadas. Arte suprema de dissimulação, jogo de esquivas e de despistamento, a obra de Machado teve, por suas próprias características de construção e elaboração, um estranho destino: foi julgada absolutamente genial (o que é certamente verdadeiro), mas por razões bastante diversas das atualmente sustentadas pela fortuna crítica. Machado seria, aos olhos dos intérpretes seus contemporâneos (e mesmo depois) um autor universal, que combinaria o olhar de psicólogo ou filósofo a um desprezo pelas questões menores da vida nacional. Um perscrutador da alma humana que não desperdiçaria seu poder analítico olhando para o Brasil. Em suma, um escritor aristocrata, um cético e um absenteísta político. Nas palavras de Lima Barreto (conforme citado por Francisco de Assis Barbosa, em A vida de Lima Barreto): “Machado era um homem de sala, amoroso das coisas delicadas, sem uma grande, larga e ativa visão da humanidade e da Arte. Ele gostava das coisas decentes e bem postas, da conversa da menina prendada, da garridice das moças.”

O caso paradigmático parece ser o de Dom Casmurro. Todos decerto conhecemos a infindável (pois indecidível) polêmica acerca da culpabilidade ou inocência de Capitu. Houve até o caso recente da tentativa de instauração de um “tribunal” para que se julgasse o mérito da questão, o que só reforça o espírito poderoso da criação machadiana. Poderoso, como veremos, menos por sua natureza de aventura rocambolesca de folhetim, mas por ser revelador de contradições muito determinadas da sociedade brasileira.

Foi necessário transcorrer mais de meio século da publicação da obra para que seu sentido mais profundo principiasse a ser deslindado pela crítica. Refiro-me aos trabalhos de Helen Caldwell, John Gledson e Roberto Schwarz, que imprimiram uma direção completamente nova aos estudos machadianos. Assim, em lugar de uma discussão um tanto tola e ociosa acerca de um possível caso de adultério, os estudos em questão apontam para um sentido muito mais grave e recôndito: quem está, na verdade, sob desconfiança e suspeição, quem merece um olhar crítico não é mais a provável adúltera, mas seu acusador. É Bentinho, bacharel em direito, católico, proprietário, conservador até o último fio de cabelo, que ao narrar a história produz uma verdadeira peça de acusação jurídica, peça essa que, acuradamente analisada por Gledson e Schwarz, revelará seu caráter essencial de mistificação, engano, táticas sofísticas e artimanhas legais de toda sorte.

Portanto, longe de tratar-se apenas, como sugeria a análise anteriormente citada, de um escritor pouco afeito às questões mais graves da vida nacional, a clarividência de Machado localizava, com precisão absoluta, toda a constelação de problemas que constitui a má formação nacional. Por detrás do discurso elegante e dos artíficios da sedução oratória, oculta-se uma crítica impiedosa, que do ponto de vista da realização formal, beira o maquiavelismo: Machado explicita sua crítica não confrontando a elite ou escrevendo invectivas contra ela, como o Lima Barreto de Isaías Caminha, por exemplo, mas dando-lhe voz. Ao tornar Brás Cubas e Bento Santiago protagonistas, Machado expõe-lhes magistralmente o caráter violento, politicamente regressivo e historicamente pernicioso. O escritor de salão e da pilhéria inglesa, preocupado com as grandes questões de uma “alma humana universal” (o que quer que isso possa significar) aparece-nos, sob nova luz, como um crítico ferino das iniqüidades mais terríveis da história brasileira.

Retomando o argumento: a visão da crítica tradicional, que chegou mesmo a considerar “absurda” a comparação entre ambos os autores (leia-se, a esse respeito, comentário de Brito Broca em Papéis de Alceste), e que era, segundo vimos, compartilhada pelo próprio Lima Barreto, parece fundar-se em uma leitura equivocada ou, no mínimo, limitadora da obra de Machado; ao apostar todas as fichas do exercício analítico no caráter univocamente universal da ficção machadiana (universalidade efetivamente existente mas que, como vimos tentando argumentar, longe de ser unívoca ou fundar-se em uma negação de seu tempo e de sua história, extraía sua força e sentido, ao contrário, de um equacionamento muito fino das contradições formativas da época), a distância entre o intelectual de gabinete e presidente da Academia de Letras e o boêmio maltrapilho, defensor radical de uma literatura, com perdão da palavra um tanto fora de moda, “engajada”, afigura-se realmente imensa.

O que parece então digno de nota é que, depois do renversement crítico ao qual aludimos, Machado e Lima estariam, sim, no mesmo campo. Seriam, abusando do anacronismo provocador, compagnons de route. Eles tratavam, sim, de uma e mesma coisa. Produziram literatura (extraordinária, no caso de Machado, e com momentos de excelência, no tocante a Lima)  a partir de uma perspectiva crítica, lúcida e consciente do país em que viviam. Numa simplificação excessiva e evidente, o bisturi de Machado procura preferencialmente seccionar o nervo das relações entre a figura do agregado (da qual ele fazia parte, ao menos em sua juventude) e as elites econômicas, representadas geralmente por herdeiros de fortunas de base agrária um tanto perdidos no novo mundo da modernização capitalista, num período em que,  par excellence, “tudo que era sólido desmanchava no ar”. Já Lima elege, via de regra, como núcleo dramático de seus romances, a figura do cidadão das classes inferiores, que ao não conseguir as benesses de um benfeitor magnânimo, ou no entrechoque da busca de ascensão social, é inexoravelmente condenado à miséria, aos empregos subalternos e humilhantes, à doença e à exclusão social. Temos aqui, de preferência, a crônica de um “outro” Rio de Janeiro, como aponta Walnice Nogueira Galvão em ensaio recente (“Uma cidade, dois autores”, em Desconversa, Editora da UFRJ). O microcosmo dos subúrbios e da periferia, e não o da rua do Ouvidor de Machado, com sua comédia humana particular, seu conjunto de sonhos, aspirações e angústias, seus militares de nenhuma glória que lutam por um estipêndio qualquer, seus intelectuais provincianos enfatuados e medíocres, seus bacharéis ignaros e rancorosos, suas donzelas casadoiras de pouco brilho e quase nenhum dote, forma precisamente o entrecho e o espaço ficcional do romance mais bem-acabado de Lima, o Policarpo Quaresma. A saber, dado o mesmo país, o mesmo tempo (com um intervalo histórico pequeno, é verdade) e a mesma trama de relações sociais, o foco dos protagonistas é deslocado, em um e outro de nossos autores, com as conseqüências que acompanhamos.

Assim, estamos portanto próximos de um movimento interessante: é o desenvolvimento da fortuna crítica machadiana, a partir do apuramento de seu arsenal teórico, que não seria ocioso relembrar, desenvolveu-se de forma solidária ao ajuste de sintonia fina do pensamento sobre os problemas nacionais, que passa a lançar luz sobre a obra, pouca estudada mas de importância, suponho, inegável, de Lima Barreto.

À guisa de conclusão, e ao chegarmos aos noventa anos da morte do boêmio-escritor, leiamos Lima e Machado. Eles têm muito a nos dizer sobre os dramas da história nacional recente, e, devo acrescentar com uma ponta de amargura, sobre os dramas dos tempos em que vivemos.


Carlos Eduardo Ortolan Miranda
mestrando em filosofia pela USP

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