Aos 15 anos, um jovem interno do Colégio Anchieta, em Nova Friburgo, publicou seu primeiro texto. "Vida nova" — que saiu no dia 14 de abril de 1918 no jornal "Aurora Collegial" — falava da expectativa da chegada à nova escola, "com a alma povoada de esperanças miríficas e sonhos maravilhosos". Sonhos esses que terminariam em 1919, quando Carlos Drummond de Andrade foi expulso por "insubordinação mental", após discutir com um professor.Foram apenas dois anos de Anchieta, período em que ele escreveu pelo menos dez crônicas. Graças ao esforço de Nelson Bohrer, presidente da Fundação D. João VI, de Friburgo, nove delas foram recuperadas, digitalizadas e estarão disponíveis a partir desta semana no portal www.djoaovi.com.br. Ele teve acesso a exemplares do jornal, feito pelos alunos do colégio entre 1905 e 1922. Vários volumes estavam embrulhados em papel de jornal. Alguns exemplares haviam se rasgado.
— Higienizei, consertei e devolvi tudo recuperado — diz ele, que prefere não revelar como conseguiu o material, guardado pela escola. — Só não foi possível encontrar a crônica "Extraordinária visita", publicada em 10 de junho de 1919. Ou o jornal veio para mim só com as páginas 1, 2, 5 e 6 ou no processo de digitalização foram puladas as páginas 3 e 4, onde estava a crônica.
"Extraordinária visita" descreve um sonho em que aparece o corvo de Edgar Alan Poe. Ele responde com a frase do poema — "Nevermore" — às perguntas do autor sobre seu sucesso nos exames.
Drummond não tinha muito apreço por seus primeiros textos.
— Ele nunca se interessou por eles. Considerava-os infantis demais — diz o poeta, crítico e tradutor Fernando Py, de 76 anos, autor da "Bibliografia comentada de Carlos Drummond de Andrade", que cataloga os textos de 1918 a 1934 e onde cada um saiu publicado.
Mas se estão longe de entrar numa antologia das melhores crônicas brasileiras, seu valor documental, histórico e biográfico é inegável. Ao fazer seu livro, Py listou os nomes das crônicas e as datas em que saíram no "Aurora Collegial".
— Drummond não queria que eu tomasse conhecimento delas. Dei como exemplo Machado de Assis, que teve toda sua bibliografia publicada em 1955. Ele me respondeu: "Eu não tenho a importância de Machado de Assis!" Mas tudo que se refere a ele é interessante.
Nas colaborações para o "Periódico Quinzenal da divisão dos Maiores", como o "Aurora Collegial" se autointitulava, ele assinava Carlos Drummond Andrade, sem o "de". No caso de "Uma noite na Senegambia", de 31 de julho de 1919, anotou CêdêÁ. Às vezes, aparecia "74", referência a seu número como aluno, e 2 ano Ginasial. Em "Uma data", de 17 de agosto de 1919, artigo comemorativo do número 200 do periódico, Drummond fala com simpatia do jornal: "Duzentas alvoradas tingiram de oiro e púrpura o céu friburguense, e duzentas vezes gemeram os prelos para que viessem à luz da publicidade duas centenas de números da ‘Aurora’."
Em nenhuma crônica há sinal de interferência ou de censura da direção do jornal. No entanto, em "Estréia literária", poema de "Fria Friburgo", de 1979, é denunciada a intromissão em pelo menos um de seus textos: "O padre-redator introduziu/ Certas mimosas flores estilísticas/ No meu jardim de verbos e adjetivos." Devia estar se referindo a "Maio", de 30 de abril de 1918, talvez a crônica mais derramada, em que há a mistura de clichês líricos com arroubos "poéticos" que certamente ele renegaria depois: "Há gemidos vagos em toda a natureza", "súbito, a grande voz dos sinos, na altura nevoenta dos campanários", "o bimbalhar sonoro dos sinos, a música álacre dos pássaros, a alegria triunfal do mundo", "a terra reverdece e se adorna de mimosas flores".
Em outro poema, a denúncia é de censura na correspondência: "Não te mando esta carta/ que um padre leria certamente./ E me põe de castigo uma semana/ (e nem tenho coragem de escrever)./ Esta carta é só pensada."
— Ele era censurado ideológica e estilisticamente — diz o professor emérito da Universidade do Porto, o português Arnaldo Saraiva, de 72 anos, sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras.
Fernando Py confirma que os textos eram "deturpados". Mais tarde, Drummond se queixaria de uma emenda: "Um padre introduziu criminosamente, em minha descrição da primavera, a expressão ‘tímidas cecéns’, que me indignou." A passagem pela escola foi citada na "Revista Acadêmica": "Perdi a fé. Perdi tempo. E sobretudo perdi a confiança na justiça dos que me julgavam. Mas ganhei vida e fiz alguns amigos inesquecíveis."
As primeiras crônicas de Drummond, publicadas no "Aurora Collegial", exibem sua erudição precoce, citando o crítico Sainte-Beuve, o filósofo Nietzsche, os sábios de Hélade e a Biblioteca de Alexandria. Mas, de modo geral, abordam temas frugais e variados, como a volta às aulas, a primavera e o mês de maio.
Em "História do pinto pelado", de 25 de maio de 1919, Drummond fala de um pintinho "desprezado dos irmãos e de todos, que vivia uma vida d’isolamento, lá no seu cantinho" e que se imagina pássaro, borboleta, flor ou raio de sol, até que volta à dura realidade, "à sua primitiva pequenez ignorada... Era de novo pinto sem penas".
"Calor, exames e o nariz de Cleópatra", de 30 de setembro de 1919, traz comentários sobre o tempo em Friburgo: "Isto de calor em pleno setembro é uma pilhéria de mau gosto, que nos faz perder o sono e comer consideravelmente menos." Ele também fala do nariz de Cleópatra: "Os apêndices nasais desta senhora desviaram o curso da história do mundo. Ah! Se Cleópatra não tivesse nariz!"
‘Profissão d’encher linguiça’
Em "Conversa fiada", a última delas, de 19 de outubro de 1919, Drummond inaugura, antes de Rubem Braga, a crônica sobre a falta de assunto, que é "cousa rara como carne de vaca na Rússia de hoje". Com autoironia, ele explica que se vê "constrangido a exercer a tristíssima profissão d’encher linguiça". E, como não pode apresentar um "suculento prato de árdua confecção", ele cita a conversa que teve com um vagalume — em "Primavera", de 18 de setembro de 1919, ele já havia falado com um lírio. Aqui, depois de dialogar com o pirilampo, o autor o despacha com humor, por estar com sono, "pois tive aula de latim hoje".
No texto "As prosas colegiais de Carlos Drummond de Andrade", o professor Arnaldo Saraiva diz que há um desnível artístico entre as duas primeiras crônicas, "Vida nova" e "Maio" — que "denunciam a inexperiência e a ingenuidade de um principiante" —, e as restantes, que trazem referências a Eça de Queiroz e são revolucionárias, no sentido de que "reagiam pela justeza, pela medida, pela elegância, pela descontração contra a solenidade, a pompa, o derrame sentimental, o foguetório verborraico dos prosadores da época".
Das dez crônicas, Fernando Py, autor da "Bibliografia comentada de Carlos Drummond de Andrade", diz que somente "Maio" foi republicada, no dia 2 de dezembro de 1979, no jornal "O Estado de S. Paulo". Saraiva incluiu nove delas — não conseguiu ter acesso a "Uma noite na Senegambia" — em sua tese "Carlos Drummond de Andrade: do berço ao livro — Subsídios para a história do modernismo no Brasil", apresentada em 1968 na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Mas o material teve circulação restrita.
— A tese não foi impressa porque Drummond não gostaria de ver esses textos juvenis publicados. Ele os desvalorizava — explica Saraiva.
Ele fez 20 exemplares, em edição mimeografada. Ficou com dois, entregou outros para a banca e para o arquivo da faculdade, enviou alguns a amigos e estudiosos e mandou cinco para o Brasil.
— Duas, eu sei que se conservam na biblioteca que era de Plínio Doyle e na de Gilberto Mendonça Teles.
Se nas crônicas não há referências à passagem pelo educandário dos jesuítas, nos 40 poemas de "Fria Friburgo" Drummond abre o verbo para se queixar. Ele relata o que chama de "dois anos jogados fora", traduzidos em trechos ora amargos, ora irônicos, ora sarcásticos. Do triste período escolar, ele teria guardado até o modo de andar com os braços colados às pernas e a cabeça baixa. Foram anos de inadequação e sofrimento. A certa altura, ele pergunta: "Quando termina, se é que termina, o meu exílio?".
Desde o começo, o aluno "74", apelidado de "O anarquista", manifesta seu desassossego. Em "Terceiro dia", já não suporta mais a saudade, o frio, o dormitório que lembra um hospital, o travesseiro que ele ensopou de "lágrimas ardentes", o banho de madrugada no chuveiro gelado. "Mamãe, quero voltar/ Imediatamente/ Diz a Papai que venha me buscar." A saída do colégio se deu de forma brusca, como lembra Saraiva:
— As notas eram lidas em voz alta. Drummond me contou que o professor de português, após a leitura, disse: "Essa nota foi dada por comiseração." Ele respondeu: "Eu não quero nota por comiseração, eu quero uma nota justa."
Segundo Pedro Drummond, neto do poeta, os jesuítas mandaram que se retratasse, senão seria expulso. Ele se retratou — e foi expulso. Drummond se sentiu traído.
— Meu avô disse que foi um ato tipicamente jesuíta. Nos anos 1980, no aniversário do colégio, ele foi convidado, mas recusou: "Não vou voltar a um lugar do qual fui expulso."
Helenio Campos da Silva, que passou 22 de seus 81 anos como professor de biologia do Anchieta, diz que "insubordinação mental" era um termo muito comum na época, referente a um tipo de indisciplina considerado grave. O episódio parece ter deixado marcas também na escola. No livro "Colégio Anchieta 1886/1986", lê-se: "Entre os alunos que se tornaram célebres não podemos omitir os nomes do Dr. Sobral Pinto, Almirante Amaral Peixoto, os senadores Mozar Lago e Artur Bernardes Filho, os Drs. Vilhena de Morais e Bandeira Vaughan, os Padres Gentil e Leonel Franca, Sabóia de Medeiros, Vioti e Aguiar, e tantos outros." Drummond entrou para a categoria "tantos outros".
Nelson Bohrer, presidente da Fundação D. João VI de Friburgo, teve acesso ao material quando começou a digitalizar todo o acervo do Arquivo Pró-Memória, que guarda quase meio século da história da cidade. Ele está digitalizando 1,5 milhão de itens, como os exemplares de mais de 40 jornais diferentes de Friburgo, entre eles o "Aurora Collegial".
Jornal O Globo