domingo, 29 de abril de 2012

Te Contei, não ? - Os laços que nos afetam



No filme Na Natureza Selvagem, o jovem Christopher McCandless se rebela contra a família e parte, sem avisar ninguém, para uma aventura pelos Estados Unidos. Coloca fogo em seu dinheiro, abandona o carro e segue pedindo carona, contando com a ajuda de desconhecidos. Seu objetivo é chegar ao Alasca, onde pretende viver a maior das aventuras: ficar, finalmente, sozinho, longe da hipocrisia das pessoas. Chris atinge seu objetivo e chega a uma floresta coberta de neve, onde vive só por semanas. Ao final, porém, quando está prestes a voltar, a corrente de água que era apenas um fio quando ele chegou se tornou um rio caudaloso, e ele não consegue atravessar; acaba morrendo de fome, sozinho, na natureza. Baseada em uma história real, que virou livro nas mãos de Jon Krakauer, a saga de Chris tem uma ironia sutil. Em seu caminho para se distanciar das mentiras da sociedade, acaba conhecendo pessoas que marcam sua vida, e a quem ele também encanta profundamente. O casal de hippies, a jovem que flerta com ele, o amigo fazendeiro, o senhor que enxerga nele o filho que não tem: são muitos os laços que Chris constrói pelo caminho, enquanto discursa sobre os benefícios de ficar sozinho na natureza selvagem. Sem perceber, o jovem recebe ajuda, carinho e afeto das pessoas, a quem ele julga tão acidamente. Ele influencia e é influenciado, ama e é amado.

Os laços que Chris desenvolve, mesmo quando acredita estar partindo para uma vida solitária, evidenciam uma característica do ser humano, muitas vezes negligenciada por nós: somos seres sociais. "É impossível existirmos apenas como indivíduos. Quando nascemos, já nascemos em sociedade", diz a terapeuta existencial e professora de filosofia Dulce Critelli, da PUCSP. "Aprendemos tudo ao olhar outros seres humanos: a andar, a comer, a falar". Compare com um cachorrinho, por exemplo. Se o retiramos de junto de outros cães e o colocamos para viver com os humanos, ele ainda assim apresentará características caninas: abanará o rabinho, latirá. Já o homem não: se o retiramos do convívio humano ao nascer, suas ações serão completamente diferentes. Podemos alimentar, como Chris, o ideal da autossuficiência e do individualismo, a ideia de que somos completamente livres e autônomos. Mas o ser humano, isolado, não existe; frágeis demais para sobreviver sozinhos, fomos programados biologicamente para viver em comunidade. Precisamos uns dos outros para viver.

Para além dessa interdependência, existe a influência: as coisas que sentem e pensam as pessoas que amamos afetam nossa maneira de pensar. Isso é fácil de perceber em algumas instâncias. Se nosso parceiro gosta de cinema alemão, por exemplo, é provável que vejamos juntos alguns desses filmes, e como resultado eu posso acabar gostando deles também. O que é mais difícil é ver que pessoas que sequer conhecemos também têm uma influência profunda em nossa vida. A extensão desses laços tem implicações mais profundas do que nos acostumamos a imaginar.

Melancolia contagiosa

Sabe quando você está triste e nem sabe por quê? Tudo vai bem na sua vida, no emprego, a saúde está boa, mas de repente bate aquela dor no peito... Quando percebe, está deprimido. "Você não sabe, mas alguma perturbação pode estar acontecendo na sua rede", diz o pesquisador e netweaver Augusto de Franco. O amigo do amigo do seu amigo pode estar tendo algum problema, e esse sentimento se transmitiu, como um vírus, até você, que não o conhece. Quando diz "rede", Franco não está falando das mídias sociais, como Facebook e Twitter; ele se refere aos grupos dos quais as pessoas fazem parte, grupos dentro dos quais elas têm laços com outros participantes. Estudioso do tema, o papel de Franco como netweaver é tecer redes, ou seja, fomentar conexões, criar espaços e ferramentas em que as pessoas possam interagir. Pode ser um site, um evento, um projeto.

Para o médico e pesquisador de Harvard Nicholas Christakis, o estudo das redes sociais veio após observar fenômenos de saúde. Você deve conhecer alguma história em que um idoso morre e, pouco tempo depois, seu companheiro também falece. É o que os médicos chamam de "efeito do viúvo", e acontece porque os laços foram cortados, deixando as pessoas desamparadas, o que acaba se manifestando em doenças e acidentes diversos. Estudando esse efeito, Christakis começou a se perguntar se as consequências da interrupção, e do fortalecimento, dos laços sociais também seriam fortes para outros tipos de relações, como de amizade, de parentesco e, finalmente, com pessoas que nem conhecemos.

Pesquisa após pesquisa, ele foi comprovando a força dos laços na vida das pessoas. Uma de suas primeiras descobertas foi sobre como as emoções podem ser surpreendentemente contagiosas. Um exemplo foi o estudo realizado com alunos de faculdade que, designados para dividir o quarto com colegas moderadamente deprimidos, foram ficando mais e mais deprimidos ao longo de três meses. Pode parecer estranho, mas tristeza "pega" que nem gripe: mesmo que nada de errado esteja acontecendo na sua vida, o astral do outro pode interferir no seu.

Ansiedade e felicidade também se alastram feito fogo pelas redes. Ter amigos felizes aumenta nossa chance de felicidade mais do que ganhar mais dinheiro. E, se esses amigos tiverem amigos felizes, nossa chance fica ainda maior. O curioso é que, estando contentes, acabamos atraindo mais amigos, que por sua vez também vão contribuir para o nosso bem-estar. É uma espiral ascendente positiva. Até mesmo o contato com desconhecidos pode nos afetar, como pode atestar qualquer um que saiu satisfeito de um restaurante depois de ter sido atendido com um sorriso. Nosso cérebro foi treinado para a empatia, para sentir o que o outro está sentindo, para imitar, mesmo sem perceber, as emoções e expressões faciais de quem está à nossa volta.

Se ela come, eu como

Hábitos, vícios e comportamentos também passam de pessoa para pessoa. Obesidade, por exemplo, contagia: se pessoas a sua volta começam a engordar, as chances são de que você engorde também. Isso pode acontecer por uma série de fatores. Dois amigos passam a frequentar uma nova lanchonete, por exemplo, e o hábito contribui para aumentar a circunferência das cinturas de ambos. Ou então, simplesmente, ao ver que uma amiga engordou, você pode mudar seus conceitos do que é aceitável em termos de peso, e achar que tudo bem engordar mais um pouco. Nesse caso, o que se transmite pela rede é um padrão. A colunista americana Ellen Goodman escreveu: "Anoréxicas profissionais como Kate Moss e Victoria Beckham podem apresentar um ideal de encolhimento impossível. Mas na vida real nós nos comparamos é com nossas amigas". Claro que nem todos irão engordar, pois influências vindas de todo lado atuam ao mesmo tempo; mas a probabilidade fica maior a cada amigo que ganha uns quilinhos. Parar de fumar é outro comportamento que se reproduz pelas redes. É como se jogássemos uma pedra na água e observássemos as ondas reverberando a partir do lugar onde ela caiu.

A seis graus de Kevin Bacon

Mas até que ponto essa influência se estende? Será que afetamos apenas nossos amigos e os amigos deles, ou isso se estende ainda mais longe? Segundo Christakis, em seu livro Connected ("Conectados", ainda não publicado no Brasil), a influência continua até três graus de separação (seu amigo está a um grau de você, o amigo do seu amigo está a dois graus, e assim por diante). Depois disso, o efeito some.

Tudo começou com a teoria dos seis graus de separação, testada nos anos 1960 pelo psicólogo Stanley Milgram. Na pesquisa, algumas centenas de pessoas que viviam no estado americano de Nebraska deveriam entregar uma carta a um executivo de Boston, a 1600 km de distância. Elas deveriam enviar a carta para alguém que conheciam pessoalmente, que teria mais chances de ter algum contato com o tal executivo, e essa pessoa então entregaria para alguém que conhecia, e assim sucessivamente. O objetivo era ver quantos nós havia na rede até que a carta fosse entregue; a média foi seis, resultado repetido em experimentos posteriores. Isso até gerou brincadeiras como o joguinho A Seis Graus de Kevin Bacon, em que as pessoas descobriam a rede de contatos que precisavam ativar para chegar ao ator americano.

Se ações e hábitos se espalham a três graus, é aí também que costumamos recorrer para encontrar nossos parceiros amorosos. A Pesquisa Nacional da Saúde e da Vida Social dos Estados Unidos de 1992 descobriu que 68% das pessoas conheceram seus companheiros depois de terem sido apresentadas por um amigo em comum. Gostamos de achar que somos livres para escolher, e a ideia de um casamento arranjado, como os de antigamente, nos dá calafrios. Mas nossas redes sociais acabam funcionando como casamenteiras. Um amigo dá uma festa, e lá ele nos apresenta alguém; nessa introdução, dirá alguma coisa que temos em comum, como o fato de colecionarmos cavaquinhos ou gostarmos de literatura russa do século 19, e assim é mais fácil engatar uma conversa.

Poderosos laços fracos

A história de como conhecemos nossos amores evidencia outro ingrediente poderoso das redes: a força dos laços fracos. Os laços fortes são os mais íntimos: melhores amigos, família, parceiros. Já os fracos são as pessoas menos próximas. Na hora de achar uma paixão, conseguir um emprego ou encontrar parceiros para projetos criativos, é nesse lago que mergulhamos; a pocinha dos nossos conhecidos imediatos pode não ter nenhuma cara-metade, ou não ter um trabalho quando você precisa de um, mas ampliando a rede para os conhecidos e para os conhecidos deles, nossas chances aumentam.

Nos tempos de hoje, os graus de separação entre as pessoas estão diminuindo. Com a internet, temos mais conhecidos, pessoas a quem nos relacionamos por laços fracos. Ninguém tem de fato 300 melhores amigos, mas podemos manter contato com todas essas pessoas pela web. E, vendo as pessoas que elas conhecem, o mundo fica menor. Estamos cada vez mais próximos uns dos outros (e de Kevin Bacon, por extensão). As consequências disso são inúmeras. A forma como nos organizamos em redes está mudando. Antes hierarquizada, com estruturas centralizadas (em que o operário da linha de produção não tinha acesso ao presidente da empresa, por exemplo), a sociedade caminha para uma organização em redes distribuídas. "Com todos interligados, as pessoas interagem mais. E, interagindo, estão cooperando", diz Franco. Hoje, por exemplo, é possível ter uma ideia e financiá-la por meio de crowdfunding, ou seja, muitas pessoas doam um pouquinho e a soma viabiliza o projeto. É o caso do site Catarse. me, uma plataforma para o financiamento de projetos criativos. É a antiga vaquinha, mas bem mais organizada e consciente do poder do coletivo.

Você com isso

O crowdfunding evidencia uma das vantagens de sermos sociais: se sofremos influência, também influenciamos. Nossos atos motivam e inspiram outras pessoas. Em seu livro O Ponto da Virada (Ed. Sextante), o pensador Malcolm Gladwell fala do tipping point ("ponto da virada"), o momento decisivo em que uma ideia, um comportamento, um produto ou uma mensagem se alastram. Uma pessoa faz um ato positivo, influencia outra, e de repente vemos um boom de atos positivos. "Basta uma pequena ação inicial para causar uma grande perturbação na rede", diz Franco. Assim, votar no candidato em que você acredita ou levar uma caneca para beber água no trabalho não são apenas pequenas ações isoladas: elas reverberam e influenciam pessoas. Tudo o que você faz conta. Nas relações, também, está a chave para nossa felicidade. Foi isso que Chris percebeu, pouco antes de ver que não poderia atravessar o rio para voltar para casa, em Na Natureza Selvagem. As semanas que passou sozinho fizeram com que valorizasse os laços que deixara para trás. Já fraco, ele escreve nas páginas de um livro: "A felicidade só é real quando compartilhada". Um clichê, mas, no caso do ser humano, um clichê doloroso, e felizmente, real.

Revista Vida Simples

Te Contei, não ? - PROFESSOR, PROFISSÃO PERIGO

O que era para ser uma corriqueira entrega de provas virou um bate-boca intimidador seguido de agressão física. Descontente com a nota, a estudante abriu mão dos argumentos acadêmicos para contestar a correção e avançou sobre a professora Christiane Souza Alves durante a aula. “Ela usou xingamentos de baixo calão, veio atrás de mim quando eu saí da sala e me empurrou”, diz Christiane, que, após 13 anos de docência, passou um semestre sendo acompanhada no trajeto da instituição de ensino para sua casa, teve princípio de síndrome do pânico e começou a tomar antidepressivos. Seria mais um triste episódio a engrossar as estatísticas de violência nas salas de aula, não fosse a mudança de cenário.
A economista Christiane é professora universitária, ambiente onde tem aumentado o número de agressões a docentes, do mesmo modo que nas escolas da rede particular de ensino. “Ela gritou: ‘Você é paga para concordar comigo.’”, diz Christiane. A estudante em questão, uma jovem de 20 anos, continua na universidade. Foi apenas proibida de assistir às aulas de Christiane. “A relação professor-aluno acabou”, afirma a professora, que pediu para não identificar a instituição em que teve problemas.
Em Minas Gerais, onde Christiane leciona, quase metade das queixas recebidas pelo disque-denúncia contra abusos vem da rede privada. O serviço, pioneiro no Brasil, foi criado no último ano, em resposta à morte do professor Kassio Vinicius Castro Gomes, em dezembro de 2010. Ele foi morto a facadas no corredor principal do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix, uma tradicional instituição de ensino superior da capital mineira com mensalidades que rondam a casa dos R$ 1 mil. Professores sem autoridade, alunos com excesso de poder e coordenações escolares omissas formam a bomba-relógio da violência escolar.
“As salas de aula estão mais violentas, pois a própria sociedade também está”, afirma a pesquisadora Jussara Paschoalino, autora do livro “Professor Desencantado: Matizes do Trabalho Docente” (Armazém de Ideias, 2009). “As agressões contra o professor surgem de várias partes, mas o maior desgaste que percebo é com relação aos alunos.” Essa mesma impressão foi captada por um estudo feito pela International Stress Management Association (Isma-BR). Dos mil professores ouvidos, 46% indicaram como principal fonte de estresse a indisciplina dos estudantes – que muitas vezes ganha eco na omissão dos pais. “Os docentes estão mais vulneráveis à agressão que outras profissões”, considera Ana Maria Rossi, presidente do Isma-BR. Basta lembrar que, sozinhos, eles têm de manter sob controle turmas de até 40 pessoas. E o risco independe da idade de quem ocupa a carteira. “Só nos últimos dez dias recebemos três denúncias de ameaças contra professores de universidades mineiras. Isso acende o alerta também nesse nível de ensino”, afirmou o presidente do Sindicato dos Professores do Estado de Minas Gerais, Gilson Reis, em entrevista à ISTOÉ, na segunda-feira 9.
Pouco a pouco, a preocupação invade a pauta dos sindicatos de vários Estados. No Rio de Janeiro, depois de iniciar uma campanha incentivando os professores a cuidarem da voz, o órgão de classe percebeu que os distúrbios na fala eram, em grande parte dos casos, apenas reações físicas a problemas bem mais complexos, de cunho emocional. A constatação mudou o eixo do trabalho. “Ampliamos a mobilização para o tema da saúde mental dos professores”, diz o presidente do órgão, Wanderley Quedo. Psicólogos foram treinados para atender os docentes e o sindicato criou um portal, o saudedoprofessor.com.br. Iniciativa semelhante é mantida pelo Sindicato dos Professores do Ensino Privado do Rio Grande do Sul (Sinpro-RS) desde 2008. Roséli Cabistani, professora da universidade federal do Estado e assessora do núcleo de atendimento ao professor do Sinpro-RS, chama a atenção para uma questão comum no discurso dos docentes que participam das rodas de conversa promovidas pelo sindicato: a desvalorização da profissão. A ideia ganha fôlego diante do baixo salário da categoria, cujo piso nacional hoje é de R$ 1.451 para 40 horas semanais. “O aluno vem sendo amparado em um discurso no qual é difícil admirar o professor, porque ele ganha pouco e, dentro dessa lógica, quem ganha pouco vale pouco”, fala Roséli.
Desvalorizado financeiramente e socialmente, resta ao docente um sentimento de abandono. “O professor tem de se virar na sala de aula para ensinar e para tomar cuidado com o que pode acontecer ali dentro”, diz F., 28 anos. Ele dá aulas de educação física na rede pública de Vespasiano, região metropolitana de Belo Horizonte, e já teve de sair escoltado do colégio por um policial após ser ameaçado por um aluno. O garoto, depois de ser repreendido pelo professor por causa do comportamento violento durante o treino de basquete, voltou ao colégio acompanhado por uma turma de não alunos para “acertar as contas”. F. conseguiu contornar a situação e continuou dando aulas na mesma escola, mas pede para não divulgar sua identidade. Nem todos, porém, superam o susto e seguem na carreira.
Colega de profissão de F., a professora gaúcha Etiene Selbach Silveira, 43 anos, tirou seu time de campo, após 21 anos de magistério, quando descobriu agressões virtuais perpetradas por um grupo de sete estudantes do Colégio Nossa Senhora do Bom Conselho, onde dava aula. “Meu mundo caiu. Nunca tinha tido problema com alunos e nem sabia o que era Orkut quando descobri que elas tinham criado uma comunidade falando mal de mim”, relembra ela, que é filha e irmã de professoras. Passado o choque, reclamou no sindicato e na direção da escola. A comunidade saiu do ar em dois dias, mas, para espanto de Etiene, ela recebeu a carta de demissão poucos meses depois. “Depois disso desisti”, conta ela, que trabalha com vendas. Casos como o de Etiene, em que o professor é preterido pela direção da escola, são comuns na rede privada. “Nos colégios particulares, se alguém não gosta de algo, o professor é demitido”, diz Cecília Farias, diretora do Sinpro-RS.
Para tentar mudar as regras do jogo, até agora bem desfavoráveis ao professor, foi proposto um projeto de lei prevendo medidas protetivas para os casos de violência contra docentes (o PL 191 de 2009). “O PL não foi bem aceito pelos congressistas e está encalhado”, critica o autor da proposta, o senador Paulo Paim (PT-RS). Situação semelhante acontece na vizinha Argentina. Por lá, a procura pela União dos Docentes Argentinos (UDA) para relatar casos de agressão contra professores cresceu 20% só no último ano. Preocupado, o órgão propôs um projeto de lei, mas, assim como no Brasil, a iniciativa também não foi adiante. “O Poder Executivo e o Congresso Nacional argentinos ainda não reconheceram o problema da violência contra os professores na escola”, disse à ISTOÉ Sérgio Romero, secretário-geral da UDA. E a questão não está restrita aos países em desenvolvimento. Na Inglaterra, pesquisa recém-divulgada pela Associação dos Professores registrou que um terço dos tutores e funcionários de escolas já havia tido contato com violência física dentro das instituições de ensino. Nos Estados Unidos, a Associação Americana de Psicologia montou em 2008 uma força-tarefa para pesquisar os impactos das agressões contra professores. Nos cálculos fechados pelo grupo, o problema custa aos cofres americanos US$ 2 bilhões por ano.
O cenário é desolador, mas algumas iniciativas dão esperanças. Em Minas Gerais, o professor Kassio Gomes, citado no início da matéria, tornou-se nome do projeto de combate à violência nas escolas desenvolvido na Prefeitura de Betim, na região metropolitana de Belo Horizonte. À frente está a irmã do docente morto, a também professora e hoje secretária de Educação do município, Sandra Gomes. “A morte do Kassio foi um choque, ele tinha um convívio ótimo com os alunos”, diz Sandra. No Rio Grande do Sul, a homenagem da Secretaria de Estado de Educação no último ano à educadora Glaucia Teresinha da Silva pôs um ponto final a um triste episódio. Em 2009, ela sofreu traumatismo craniano após ser empurrada violentamente por uma estudante da Escola Estadual Bahia. Voltar a dar aula foi um processo delicado, tanto pelas sequelas psicológicas quanto pelo impacto físico da agressão – Glaucia foi obrigada a usar muletas durante vários meses.
“Ainda sinto medo de dizer não a algum aluno ou simplesmente chamar a atenção em sala de aula”, diz. Mesmo assim, ela decidiu retomar a carreira e, à frente de uma turma em processo de alfabetização, desenvolveu um projeto de livro colaborativo escrito pelos estudantes, que se tornou uma espécie de “boa prática” dentro da rede de ensino gaúcha. “Só esse reconhecimento já me motivou a fazer outros projetos e a reacreditar na educação.” Provas de que é possível dar respostas lúcidas às situações de violência, erguendo a bandeira branca no campo de guerra que têm se tornado as salas de aula.

Te Contei, não ? - ABORTO de anencéfalos: um marco para a sociedade



Foram dois longos dias de julgamento, mas os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) tiraram o País de décadas de atraso ao decidir, por 8 votos a 2, que as grávidas de bebês anencéfalos (sem cérebro) têm o direito de realizar aborto. Salvo raras exceções, esses fetos morrem ainda no útero ou poucos minutos após o nascimento. Por essa razão, mais de dez mil mulheres já recorreram à Justiça para conseguir interromper esse tipo de gravidez. Agora, o STF determinou que as mulheres não mais precisarão pedir autorização judicial para ter direito ao aborto nesses casos, assim como acontece quando ela é vítima de um estupro ou corre risco de vida. A decisão é um marco para a sociedade brasileira, pois rompe um dos maiores tabus de um país majoritariamente católico e evangélico.

“Demos um passo no sentido de superar a confusão entre fé e assistência médica. Não queremos desrespeitar as crenças de ninguém, por isso o Estado não vai obrigar as grávidas de anencéfalos a abortar”, diz o geneticista e obstetra Thomaz Gollop. “Mas vai permitir que as que assim desejarem o façam porque é um direito individual delas.” A decisão do STF irá acabar com o sofrimento das mulheres que levam adiante uma gravidez sem futuro. “Eu me sentia como se estivesse carregando um defunto. Todo dia era um velório para mim”, conta Cátia Corrêa, que ficou grávida de um anencéfalo em 1993 e foi uma das primeiras a conseguir interromper a gestação por conta de uma ordem judicial.

Esta deliberação importante precisa ter força para mudar a realidade de muitas mulheres que, mesmo amparadas pela lei, se deparam com o preconceito e o despreparo dos profissionais de saúde quando vão abortar. Mudanças de mentalidade e costumes não ocorrem do dia para a noite. A lei do divórcio é de 1977 e levou anos para que pessoas divorciadas fossem vistas com naturalidade pela sociedade. A posição clara do STF cria o ambiente necessário para um atendimento digno à mulher nos hospitais e pode até inibir a proliferação de clínicas clandestinas e as mortes maternas em decorrência do aborto – 98 faleceram em 2009, o último dado disponível.

Os relatos de quem viveu na prática a experiência de um aborto legal são a prova de que é preciso avançar. Quando conseguiu a autorização judicial, Cátia imaginava que era só ir até um hospital e dar fim ao martírio, mas não foi o que aconteceu. A enfermeira se recusou a introduzir em seu útero o medicamento necessário para a interrupção da gravidez. “Ela queria que eu, com aquela barriga enorme, colocasse o remédio”, conta. Histórias semelhantes são contadas por mulheres que interrompem gestações que traziam risco à sua saúde ou foram originadas por violência sexual. Nesses casos, o aborto é permitido desde o Código Penal de 1940 sem necessidade de qualquer tipo de autorização judicial. Mas só 50 anos depois, em 1990, surgiu o primeiro hospital do País qualificado para o serviço pelo Ministério da Saúde, o Hospital Jabaquara, em São Paulo, que hoje compõe uma rede com outras 63 unidades de saúde em todo o País. “Não há impedimento para que outros hospitais realizem o aborto nos casos previstos em lei, mas oferecemos treinamento específico para algumas unidades”, explica Helvécio Magalhães, secretário de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde.

O governo federal faz sua parte, mas setores da sociedade às vezes tentam criar empecilhos. É o caso da Câmara Municipal de Anápolis (GO), que aprovou em 22 de fevereiro uma norma que proíbe os abortos legais nos hospitais municipais. Mesmo nas unidades de saúde há problemas. “Em geral, nem todos os profissionais do hospital apoiam o aborto e o bom atendimento vai depender de quem estiver na unidade”, diz Rosângela Talib, uma das coordenadoras do grupo Católicas pelo Direito de Decidir. É esse tipo de mentalidade que a decisão do STF pode ajudar a mudar.

C., 27 anos, é testemunha dessa dificuldade. Sua filha de 12 anos foi violentada durante seis meses e a mãe só descobriu quando a gravidez veio à tona. No Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), um dos hospitais qualificados pelo Ministério da Saúde em Pernambuco, a menina recebeu, às 13 horas da terça-feira 10, a medicação para dilatação do útero horas antes da cirurgia, marcada para 20 horas. Ela deveria permanecer em jejum e receberia anestesias para evitar as dores causadas pelos remédios. Mas o anestesista se recusou a participar do procedimento. Veio o próximo turno e outra recusa. Enquanto isso, a menina permanecia sem comida e com dores lancinantes. Só no terceiro turno, às 9 horas da manhã seguinte, o procedimento foi realizado.
Para não participar, os anestesistas alegaram “impedimento de consciência”. A justificativa está de acordo com o Código de Ética Médica, que, em seu artigo 7º, diz que os profissionais não são obrigados a prestar um serviço que não desejam, mas coloca duas ressalvas: ausência de outro médico ou risco de danos irreversíveis ao paciente. “A alegação de impedimento de consciência é muito comum e ultrapassa os limites do razoável”, diz o ginecologista Olímpio Moraes Filho, da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).

O desconhecimento é outra face do problema. Por isso, a visibilidade do julgamento do STF também é importante. Pesquisa realizada pelo Ibope em 2007 sob encomenda do grupo Católicas pelo Direito de Decidir revelou que 48% dos brasileiros ignoram as situações em que o aborto pode ser feito legalmente. “O desconhecimento pode levar mulheres a buscarem métodos clandestinos e inseguros para o aborto, afinal é uma ilusão pensar que a proibição diminui o número de abortamentos”, diz o médico Thomaz Gollop. A trajetória de P., 24 anos, ilustra bem isso. A estudante foi violentada quando saía da faculdade em setembro do ano passado. Por medo e vergonha, não contou a história a ninguém que pudesse orientá-la sobre as precauções necessárias depois de um ataque desse tipo. Acabou, assim, engravidando.

Sem saber que, nesse caso, tinha o direito de fazer o aborto na rede pública de saúde, tomou chás e remédios abortivos. Nada adiantou. “Não queria dentro de mim algo que me lembrasse o que eu tentava desesperadamente esquecer”, diz, chorando. Começou a procurar clínicas clandestinas e só parou quando a palidez e a excessiva perda de peso fizeram o ex-namorado pressioná-la para que contasse o que havia acontecido. Ele a levou à delegacia e, de lá, ela foi encaminhada ao hospital Pérola Byington, uma das referências nacionais nesse serviço. “Quem chega ao hospital deve ser tratada e não julgada. Cada um tem sua fé e seus direitos individuais, que precisam ser garantidos pelos agentes do Estado”, resume Clair Castilhos, secretária executiva da Rede Feminista de Saúde. É essa consciência que deve prevalecer.



Revista Isto É

Crônica do Dia - Quantas Recordações - Ana Paula Padrão



Revista Isto É




Tenho muita saudade da máquina de escrever. Bater nas teclas com força e ouvir o tec, tec, tec. No fim da linha empurrar o braço mecânico pra esquerda e começar de novo. A, S, D, F, G. A, S, D, F, G.

Tenho saudade do telefone de disco. Eu tinha uma prima que usava três dedos pra discar os seis números. Ela tinha unhas longuíssimas cobertas de esmalte vermelho e entre o indicador e o médio ainda segurava o cigarro. Elegantérrima. Tenho saudades do tempo em que fumar não era politicamente incorreto, apenas fazia mal pra saúde. E do cheiro do óleo bronzeador que também entrou na lista dos vilões sociais. Óleo de urucum, Rayito de Sol e outros menos cotados.

Tenho saudades da agenda de papel. Todos os telefones anotados com letra caprichada. Tenho saudade até de perder tempo passando a agenda a limpo quando a lista de amigos ficava maior que o número de páginas. Ou quando era preciso apagar alguns nomes. Nunca deletá-los.

Tenho saudade de fazer pipoca na panela. O milho estourava no óleo quente soltando aquele cheiro de sala de cinema. Poc, poc, poc. Também sinto falta do ovo batido em ponto de neve no braço. Sem parar pra não desandar a receita. E tenho saudade da vitrola, da agulha e do vinil girando em três rotações: 33, 46 e 78. Do chiado do velho LP, do drama de um disco arranhado.

Tenho saudade da manga espada, buraquinho aberto na casca pra beber o caldo. Da goiaba de vez colhida no pé, na primeira mordida vinha metade do bicho que morava lá dentro. E do morango suculento e com gosto de morango. Os morangos de hoje são lindos, mas não têm caldo nem sabor. Tenho saudade de esperar um mês inteiro pela próxima edição do meu gibi preferido e de colecionar figurinhas no álbum. Coladas com cola Tenaz. Cole e descole se for capaz.

E, acima de tudo, tenho saudade de esperar uma semana inteira pra que as fotos fossem reveladas. Ah, como eram bacanas as máquinas fotográficas não digitais e os rolos de filme rebobinados. Saudade de chamar as coisas de bacanas. Saudade de quando as lembranças não eram instantâneas.

Dito isso, devo confessar que não sou muito boa de memória. Esqueço nomes e fisionomias. Só decoro instantaneamente números e letras de música. E cheiros. E sons. E dores. Mas lembro-me destas últimas pela sensação que produziram, quase nunca pelos personagens que as provocaram. Hoje agradeço essa falha como um dom.

Tenho saudade do Neutrox amarelo, do pac man, da agenda Cassio, do Leite de Rosas, do sabonete Phebo, chiquérrimo. E ter saudade não é querer ter tudo isso de volta. É apenas a confortável sensação de ter idade pra ter saudade do que não está na moda, do que já passou, do que não existe mais e ainda assim era bom simplesmente porque me fazia bem. É ter experimentado todas as mudanças e ter aprovado algumas, detestado outras.

Tenho saudades do bom português, do romance bem escrito publicado em edição de capa dura. Dos políticos que tinham vergonha de serem tachados de corruptos, ainda que fossem. Dos eletrodomésticos que duravam tanto quanto um casamento, quase a vida inteira. De andar de carro com a janela aberta. Ter saudade é um privilégio. Minha memória não é lá muito boa, mas é sábia. Guarda com nitidez as delícias e arquiva os rancores em gavetas trancadas que eu nunca me lembro de abrir.  

Te Contei, não ? - A Fórmula para chegar lá



Higor é negro, mora em um bairro popular da zona sul de São Paulo e estudou toda a vida em escola pública. Comemora, agora, o primeiro lugar em direito na Fundação Getulio Vargas (FGV). Mariana, criada em uma pequena cidade do sul de Minas, não entrou para a universidade de primeira. Não podia pagar pelo ensino superior privado, então tentou o vestibular de novo e, neste ano, conquistou incríveis nove aprovações para medicina em instituições públicas de ponta. Ornaldo é indígena e acaba de chegar a São Paulo. Ele, que veio do Acre, é o mais novo aluno de medicina da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Mais do que superar dezenas de candidatos e conquistar uma vaga em instituições e cursos concorridíssimos, esses jovens têm outra característica que os une: para chegar lá, tiveram de vencer adversidades muito maiores do que os exames.

Com boa parte ou toda a vida escolar na educação pública, são a prova de que brilho individual é peça importante para superar a precariedade do ensino brasileiro. Não que no passado jovens talentos oriundos de famílias sem dinheiro e com trajetórias acadêmicas exemplares não existissem. Eles já estavam aí, só que em menor número. Na última década, porém, com a melhoria econômica e a maior confiança da população brasileira, está em curso uma mudança que tem embasado a maior presença desses estudantes nas salas de aula dos principais centros acadêmicos do País. “Antes, uma série de alunos de escola pública com grande potencial não chegava à academia por achar que não conseguiria passar no vestibular”, avalia o cientista social Juarez Dayrell, coordenador do Observatório da Juventude da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Isso mudou. “Na última década houve uma transformação de imaginário que colocou na ordem do dia das camadas populares o desejo de ir à universidade”, considera Dayrell, que observou essa tendência em uma pesquisa recente com 245 jovens do ensino médio público paraense. Ainda que eles não soubessem como, a maior parte demonstrou interesse em cursar o ensino superior.

Quando chegam lá, mais que simples alunos, esses jovens muitas vezes se tornam propulsores de mudança dentro das instituições. Foi o caso de Higor Borges Lima, 22 anos. Quando se inscreveu para o vestibular de direito na FGV, o jovem, filho de pai retificador ferramenteiro e mãe auxiliar de enfermagem, sabia que não tinha nenhuma condição de bancar os R$ 3.743 mensais cobrados pelo curso. “Fiquei feliz quando vi que passei em primeiro, mas nem alimentei esperança de estudar lá”, conta. Mal imaginava ele que, do outro lado da cidade, no campus da FGV, sua aprovação também causava rebuliço. Afinal, foi com surpresa que a direção da instituição constatou que o primeiro colocado vinha de um desconhecido colégio público da zona sul de São Paulo, a escola estadual Professora Maria Petrolina Limeira dos Milagres. O colégio ocupou apenas a humilde 481ª posição no último ranking das escolas paulistanas no Enem, em um total de 897 instituições de ensino médio da cidade.

Diante da constatação, houve toda uma negociação interna para garantir que o rapaz ficasse. É praxe na FGV dar ao primeiro colocado bolsa integral. No caso de Higor, porém, era preciso fazer mais. “Resolvemos antecipar um programa previsto para começar no próximo ano letivo, de auxílio financeiro para alunos que não têm recursos para se bancar na instituição, que exige dedicação integral aos estudos”, disse Oscar Vilhena, diretor da Escola de Direito da FGV-SP. Em caráter de emergência, aprovou-se que, além da isenção da mensalidade, o jovem receberia R$ 850 por mês. A decisão pegou o rapaz de surpresa e o deixou com um doce dilema a resolver: aprovado também no tradicionalíssimo (e concorrido) vestibular da Faculdade de Direito da USP o estudante deveria escolher entre a FGV e a universidade estadual. Bateu o martelo na sexta-feira 24: ficou com a FGV. Para passar nas duas instituições, Higor teve de compensar, por conta própria, o que não viu em sala de aula. “Eu aprendo muito sozinho”, conta ele, que devorou as apostilas do cursinho em casa.
Não é exclusividade da FGV o interesse em identificar e reter jovens talentos deixados à deriva no sistema público de ensino. Vale lembrar que no ranking geral do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), o Brasil ainda ocupa apenas a 53ª posição entre os 65 países avaliados. “As escolas, em especial as públicas, trabalham para prevenir e combater o fracasso escolar, mas pouco se fala em sucesso, e em ensino individualizado, atento às necessidades e aos ritmos individuais”, diz Paulo Bareicha, professor da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília. O resultado disso, explica, é a falta de incentivo à germinação de potenciais. “A padronização oculta o prodígio. Os diferentes são excluídos, para o bem ou para o mal, mas, principalmente, para o mal”, diz. Se ainda não há medidas enfáticas dentro do ensino público para tratar essa falha, outros setores já esboçam alguma reação. Isso pode ser visto nas iniciativas privadas que buscam investir nesses prodígios. Uma delas é o Instituto Social Para Motivar, Apoiar e Reconhecer Talentos (Ismart), que desde 2004 identifica e prepara estudantes de baixa renda no Rio de Janeiro e em São Paulo para o ensino superior. Quem é selecionado, faz um cursinho preparatório e depois realiza o “vestibulinho” de colégios particulares. Se aprovado, ganha uma das 180 bolsas ofertadas a cada ano. O formato pode não ser o mais adequado – deixa muita gente de fora e não mexe no principal, que é a necessidade de se reformular a educação básica pública brasileira –, mas é um paliativo que ajuda jovens que não podem esperar pela reforma educacional.

A descendente de japoneses Karina Tiemi Ono, 17 anos, é uma das beneficiadas. Ela é moradora da zona rural do município de Pariquera-Açu, pequena cidade de 18 mil habitantes no litoral sul paulista distante 220 quilômetros da capital. Filha única e sem vizinhos próximos, a menina sempre teve na leitura um passatempo. Boa aluna, foi “achada” durante uma olimpíada de matemática em que tirou o segundo lugar e convidada a integrar o Ismart. Como não havia escola credenciada em sua cidade, Karina se matriculou na opção mais próxima, o Colégio Objetivo de Registro, distante 70 quilômetros de sua casa. Durante todo o ensino médio, a jovem fez uma verdadeira ginástica para não perder a bolsa de estudos: acordava às 5 horas, pegava ônibus intermunicipal, e, por dia, gastava quase três horas para ir e voltar da aula. Como não conseguia ler com o veículo em movimento, aproveitava o caminho para descansar e, quando chegava em casa, fazia as tarefas e estudava mais um pouco. Não todos os dias, conta, porque em alguns estava tão exausta que não conseguia nem ficar acordada. Tanto empenho, teve sua recompensa: Karina pode escolher, agora, entre USP, UFSCar e Unicamp. “O resultado me surpreendeu muito, eu já estava até vendo cursinho para este ano”, conta a adolescente.
Por trás de todo o esforço de Karina está uma característica comum a esses jovens talentos: “Quando eles têm uma oportunidade, a agarram com todas as forças”, diz Maria Luiza de Andrade Guimarães, coordenadora do Colégio Objetivo. A instituição, que mantém programas de bolsas para alunos de alto desempenho, tem um dado emblemático. Se, entre os alunos que pagam todo o valor da mensalidade, o percentual de aprovação das universidades públicas é de 22%, esse número salta para 80% quando considerados apenas os bolsistas que têm desconto integral ou de mais de 70% da mensalidade. “E se levarmos em conta apenas quem tem desconto acima de 75% e desconto integral, o percentual de aprovação é ainda mais elevado: chega a mais de 90%.” Gustavo Haddad Braga, 17 anos, é um desses meninos de ouro cultivados pelo colégio. Aluno de escola particular, ganhou bolsa na oitava série para estudar na unidade de São José dos Campos. À época, já acumulava alguns bons resultados em olimpíadas de conhecimento – ao todo ele tem mais de 40 medalhas conquistadas em competições nacionais e internacionais. Ele, que concluiu o ensino médio em dezembro, já tem vaga garantida para a Universidade Harvard, nos Estados Unidos. Além dela, aguarda o resultado final da seleção do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), de Yale, de Princeton, de Stanford e do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech). Pelas gringas, ele abriu mão de dois dos vestibulares de engenharia mais concorridos do País, nos quais também foi aprovado: o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e o Instituto Militar de Engenharia (IME). “Estudar para mim sempre foi prazeroso”, diz o rapaz, que dedicava cinco horas de seus dias para os livros, além do horário escolar.

Não é fácil, porém, desvendar a equação que faz com que estudantes como Higor, Karina e Gustavo se destaquem tanto em relação à média. Por muito tempo, creditou-se o desempenho elevado apenas à inteligência. Por isso, no início do século passado o professor francês Alfred Binet anunciou, em meio a muita expectativa, a criação de um teste para medir o quoeficiente de inteligência (QI). A prova foi largamente usada pelo governo francês, na ilusão de que, uma vez identificadas as crianças de QI elevado, se poderia formar uma nata de intelectuais. Hoje sabe-se que não é assim tão simples. “Uma pessoa com inteligência enorme, mas que não se empenha nos estudos vai se sair pior que alguém nem tão inteligente, mas que se dedica muito”, disse à ISTOÉ Shriley Malcom, diretora da Associação Americana para o Avanço da Ciência.
Assim como apenas a inteligência não explica os prodígios, a escola, sozinha, também não pode ser considerada o fator determinante. Embora o espaço escolar, incluindo-se aí a infraestrutura e a qualidade dos professores, seja muito importante, ele não age isoladamente, o que fica claro na história de Higor, que estudou num colégio público mediano, mas sempre foi um excelente aluno. “A escola pode muito, mas ela não pode tudo. Quando você avalia a variação de desempenho entre estudantes, é possível explicar 20% dessa oscilação por causa da diferença da qualidade das instituições, mas os outros 80% vêm de fora delas”, disse à ISTOÉ o pesquisador inglês Nigel Brooke, professor convidado da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Fora dos muros do colégio, um dos fatores mais importantes é o suporte familiar. Em suas pesquisas, Kathleen Hoover-Dempsey, do departamento de psicologia e desenvolvimento humano da Universidade de Vanderbilt, nos Estados Unidos, percebeu que há três eixos principais por meio dos quais essa influência da família se dá. “Os pais apresentam à criança as justificativas para a importância de se ir à escola. São também eles que dão suporte ao aprendizado dentro de casa. Por último, eles podem se engajar na comunidade escolar – seja em atividades de voluntariado, seja em acompanhamento da gestão da instituição”, disse Hoover-Dempsey à ISTOÉ.

Claro que não se pode esquecer ainda de uma boa pitada de resiliência, comum à trajetória desses superalunos. Acostumados a lidar com dificuldades, eles acabam criando estratégias para superá-las. “Alguma adversidade, desde que não seja em níveis altos, tem impacto psicológico positivo”, garante o psicólogo Mark Seery, da Universidade de Buffalo, nos EUA. O pesquisador estudou como situações adversas interferiram na vida de 2.398 voluntários e publicou, em 2010, uma pesquisa que trazia a conclusão já no título: “Aquilo que não nos mata, nos fortalece.” Isso fica evidente na vida desses jovens. “A única opção que eu tinha era passar na universidade pública. Minha família não podia bancar um curso particular”, conta a estudante Mariana Silva Vilas Boas, 19 anos.

A jovem, criada pela mãe, sem ajuda do pai, na pequena Pouso Alegre, no sul de Minas, tem uma história de lutas, fracassos e vitórias. Sem ter como pagar por uma boa escola, Mariana ficou sabendo, na terceira série, da possibilidade de fazer uma prova para ganhar bolsa em um colégio particular. Foi lá, fez o concurso e passou. Para se manter na instituição, onde estudou até o ensino médio, precisou garantir boas notas em todas as matérias, exigência feita para a manutenção do benefício. Finda essa etapa, ela, que queria ser médica, começou uma nova batalha, agora por uma vaga no ensino superior. No vestibular de 2010, encarou as provas de cinco instituições: Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), UFMG, Unicamp e USP. Não passou em nenhuma, mas também não desistiu. Foi atrás de um cursinho em sua cidade e conseguiu outra bolsa de estudos, para fazer o extensivo. “No segundo semestre, estava bem desanimada para estudar para o vestibular de novo”, conta. Os amigos já estavam cursando o ensino superior em particulares e a assombrava a possibilidade de novamente não passar no processo seletivo. Por isso, em 2011 ela resolveu se inscrever em mais instituições que no ano anterior, para ter mais chances de aprovação. O resultado: passou em medicina em nove universidades públicas e escolheu ficar na USP, onde enfrentou 51 vestibulandos pela vaga.

Ver o bom desempenho desses alunos ajuda a quebrar o estigma de que as universidades de excelência são apenas para quem tem dinheiro. Fosse assim, dentre os estudantes de medicina da UFSCar não estaria o indígena Ornaldo Baltazar Ibã, 22 anos. O rapaz é filho do pajé da aldeia Novo Segredo, em Jordão, no Acre. A cidade, de menos de sete mil habitantes e acesso apenas por avião ou barco, é uma das mais pobres e isoladas do País. Para estudar, Ornaldo teve de sair de casa aos 9 anos para morar na vizinha Tarauacá com uma família de não indígenas. E essa foi apenas sua primeira jornada. No ensino médio, mudou-se para Rio Branco e, há uma semana, trocou a capital acriana pela cidade universitária de São Carlos, após conquistar uma vaga em medicina. Distante mais de três mil quilômetros da família, Ornaldo agora aguarda a liberação de uma bolsa da Fundação Nacional do Índio (Funai) de R$ 250 que lhe ajudará a se manter no interior paulista.

É preciso mais ousadia para reconhecer e valorizar esses talentos. “Temos metas muito tímidas na educação. Isso mostra uma falta de crença em nosso potencial, como se nossos alunos tivessem limitações para aprender, o que não é verdade”, avalia Inês Kisil Miskalo, coordenadora de educação formal do Instituto Ayrton Senna, organização que trabalha com a melhoria das escolas públicas do País. Para Inês, a mudança no imaginário das camadas populares é importante, mas precisa vir acompanhada por um fortalecimento das escolas – principalmente para que esses alunos não sejam obrigados a ir buscar em instituições particulares o que deveria ser ofertado pelo governo. Do contrário, seguiremos com o peso de sermos uma da

Há dez anos, no verão de 2002, a jovem Camila Anna Hofbauer Parra, então com 19 anos, recebeu a notícia: era a primeira entre os 9.138 candidatos ao curso de medicina da Universidade de São Paulo (USP), um dos mais concorridos do País. A conquista veio após dois anos de cursinho preparatório e seis horas diárias de estudo. “Foi puro esforço”, diz Camila. A vida depois do vestibular, no entanto, continuou exigindo disciplina e força de vontade da estudante. Foram seis anos de graduação, mais quatro de residência. Hoje, Camila é dermatologista em um hospital privado e em duas clínicas particulares. “E devo abrir meu próprio consultório ainda este ano”, diz, orgulhosa.

Na mesma época, Lucas Martins Zomignani Mendes, com 18 anos, registrava um feito admirável: passou em primeiro lugar nos exames de seleção de três importantes universidades brasileiras: a USP, a Unicamp e a Fundação Getulio Vargas (FGV). A colocação facilitou sua entrada em um mestrado na Escola Politécnica da França e um estágio de seis meses na Universidade de Oxford, na Inglaterra. Formado, porém, não seguiu a carreira de engenheiro químico, sua graduação. Lucas ficou por três anos e meio no mercado financeiro e, atualmente, é sócio-diretor de um site de venda de produtos de cuidados com o cabelo que atende a América Latina. “É uma grande responsabilidade ingressar num mercado ainda em expansão, mas estou satisfeito com minha escolha profissional.”

Pode até não ser imediato, mas o peso de uma instituição de renome no currículo faz diferença. Priscila Vieira, 27 anos, sabe bem disso. Ao retornar ao Brasil em junho de 2008, trouxe na bagagem o diploma de neurobiologia em Harvard, nos EUA. Em um primeiro momento, sofreu para se inserir no mercado brasileiro. “A maior parte das empresas no País se atém ao curso do candidato à vaga de trabalho.
Nos Estados Unidos, eles são mais focados na qualidade da universidade”, conta Priscila. Por um ano ela participou de diversos processos seletivos, sem sucesso. Finalmente foi contratada: primeiro por uma farmacêutica, e, agora, pela Google do Brasil. “Mais do que a formação acadêmica, Harvard me deu uma experiência de vida única”, diz.




Revista Isto É

Te Contei, não ? - A vez dos meninos





Após anos de debates, as autoridades de saúde dos Estados Unidos decidiram recomendar com ênfase que meninos com idade entre 11 e 12 anos sejam vacinados contra o HPV (sigla em inglês do papilomavírus humano). O Centro de Controle de Doença (CDC), órgão do governo americano, aconselha também a chamada vacinação de resgate de jovens de 13 a 21 anos que não foram imunizados na idade certa. Até agora, as vacinas contra o papilomavírus humano eram dadas regularmente apenas em mulheres e meninas. Microorganismo sexualmente transmissível pelo contato entre mucosas, o HPV pode causar verrugas e levar ao desenvolvimento de câncer do colo de útero. Está associado também ao câncer de pênis, tumores anais e de orofaringe.

A manifestação oficial americana foi feita após a divulgação de um relatório mostrando que um em cada 15 americanos tem HPV oral e que o vírus é cerca de três vezes mais comum em homens do que em mulheres. Na maioria das vezes, a infecção é combatida pelo sistema imunológico, mas há casos em que o micro-organismo não é eliminado. Um estudo anterior publicado na revista científica “The New England Journal of Medicine” indicou também que a vacinação de jovens nessa faixa etária reduziu em 90% as lesões genitais nos meninos. O trabalho acompanhou 4.065 homens em 18 países, entre eles o Brasil.

Por aqui, a vacina contra o HPV pode ser tomada apenas na rede privada. Há duas: uma imuniza contra os tipos 16 e 18 e a outra, além desses dois tipos, protege também contra os tipos 6 e 11. São necessárias três doses. A incorporação dessas vacinas ao calendário de imunização público do País está sendo discutida. “É necessário estudar o custo e os benefícios dessa medida. Somente para meninas, a vacinação na rede pública levaria ao incremento de quase três vezes o orçamento do Programa Nacional de Nacional de Imunizações”, disse o epidemiologista Jarbas Barbosa, Secretário de Vigilância em Saúde.

Discute-se também a possibilidade de produzir o imunizante no País. Já a infectologista Rosana Richtman, presidente da Sociedade Paulista de Infectologia, aprova a vacinação dos meninos. “Ela reduz a incidência de verrugas genitais e a transmissão do HPV entre as mulheres, além de proteger do câncer”, argumenta. O administrador de empresas carioca Bruno Zonzini, 22 anos, já tomou todas as três doses da vacina há poucos meses. “É uma proteção a mais.”



Crônica do Dia - Fatos e Boatos - Zeca Baleiro




Quando, há anos atrás, o rabino Henry Sobel, símbolo da luta democrática contra a ditadura militar e ícone da comunidade judaica brasileira, foi matéria de jornais e revistas por conta de um suposto furto de gravatas nos Estados Unidos, todos, inclusive este escriba chulo que ora vos escreve, ficaram de queixo caído. “Só pode ser brincadeira, piada”; “Isso é boato plantado por algum desafeto”, “Mentira!” – todos repetiram.

Por alguns dias depois, o assunto ricocheteou por sites, conversas de bar e periódicos até cair no esquecimento. Justificativas várias surgiram: “Ele é cleptomaníaco, coitado!...”; “Está tomando um remédio que o deixa atordoado, fora de si...” Jamais alguém considerou, pelo lastro de homem público e a aura de líder religioso atuante, que ele poderia ter roubado as gravatas de caso pensado, deliberadamente. E agora, esquecido o caso, concluo que jamais saberemos. Como jamais saberemos de muita coisa.

Não estou querendo suscitar teorias conspiratórias, embora ache que a conversa no boteco fique boa e divertida quando vêm à tona papos do tipo: “O homem jamais foi à lua. Como poderia ter ido à lua em 1969 e depois nunca mais, agora que as pesquisas espaciais evoluíram tanto?”; ou: “Aquele filme do homem pisando na lua foi feito em estúdio por Stanley Kubrick, é forjado!...” É comum também ouvirmos isto: “A Seleção Brasileira de 98 se vendeu para a França, por isso entregaram o ouro, todos ganharam uma bolada. Aquele chilique de Ronaldo foi só caô, ele não teve nada.” Ou ainda “JK foi assassinado” ou “Todos sabem quem matou Kennedy, Lee Harvey Oswald era só um bode expiatório”. Fatos ou boatos, são histórias que instigam a massa cinzenta, o pendor à fantasia e mesmo a reflexão sobre temas importantes que vão ficando no terreno das chamadas “lendas urbanas”.

Sim, você já vai saber aonde quero chegar, a um enunciado filosófico rastaquera, porém fatal: “Ninguém (ou nada) é o que parece ser publicamente.” Nem o padre dedicado, nem o militante humanista, nem o artista sensível, nem o apresentador de tevê com seus gestos filantrópicos, nem o âncora do telejornal sério e quase sisudo, nem o ministro com sua fala loquaz, nem o jogador de futebol desarticulado, mas aparentemente sincero, nem o articulista da revista implacável em suas convicções, ninguém é o que parece ser. Todos têm segredos, todos têm desejos e faltas que nos tornam irmanados, os mortais. Todos somos atores, é nossa defesa natural, pela impossibilidade de expormos nossas vísceras e fraquezas e temores e falhas e preconceitos e pequenezas e certezas inabaláveis, mas perigosas aos olhos do mundo (embora vez por outra alguém extravase, transborde, por não caber em si).

Nesta era ultracapitalista, então, os atores estão ficando cada vez mais sofisticados, as máscaras mais duras e inquebráveis. Afinal, o dinheiro sempre foi uma finalidade bastante vantajosa e estimulante, e o dinheiro, hoje, é a nova religião do mundo, o motor da civilização. Até pessoas do povo, outrora coadjuvantes em programas de tevê, “escadas” para protagonistas carismáticos e lacrimosos, agora mostram-se tão à vontade na frente das câmeras, tão sem-cerimônia ao narrar suas misérias, quando choram pela casa arrastada na enchente ou quando lamentam pelo filho morto na chacina na periferia; quando reivindicam a reforma da casa caindo aos pedaços ou quando reclamam do esgoto a céu aberto que causa mau cheiro no bairro... Todos treinados, como que saídos de um Actors Studio, de uma Escola Wolf Maya, convincentes e “viscerais”. Pudera, não lhes resta outra coisa senão capitalizar a desgraça.

Mesmo sabendo que posso parecer amargo (não me importa, sou um ator!), deixo ao pé desta página um conselho, perigoso, mas inevitável. Senhoras e senhores, desconfiem, desconfiem sempre. O herói de hoje pode se revelar um gângster amanhã.

Zeca Baleiro
Revista Isto É

Crônica do Dia - O acerto do Bolsa Família



Faz tempo, o flagelo da evasão escolar vem sendo denunciado. Ministros discursavam, alarmados porque metade dos alunos do primeiro ano abandonava a escola. Daí a ideia de dar às famílias uma mesada, para que mantivessem seus filhos estudando. O governo atirou no que viu e nasceu o Bolsa Escola. A intenção foi a melhor possível. Mas o programa padeceu de um pecado original: quando criado, praticamente já hão havia evasão. Com uma modesta participação minha, P. Fletcher e Costa Ribeiro demonstraram que, já nos anos 70, a evasão no primeiro ano não era metade, mas menos de 1 % da turma. Existia um erro clamoroso da leitura das estatísticas. Quando começou o Bolsa Família, a evasão entre 7 e 14 anos já estava se aproximando de 3%. Portanto, não havia como fazer grande coisa, pois o f1agelo já estava quase extinto. De fato, o impacto do programa sobre a evasão foi mínimo.

Mas o programa, rebatizado de Bolsa Família, acertou no que não viu - e de forma espetacular. Quem acompanha o assunto sabe das dificuldades crônicas de dar dinheiro aos pobres, sem perdas, sem custos administrativos astronômicos e identificando as famílias certas. Ao usar a escola como âncora para o programa, resolve-se um problema antigo, de forma robusta e eficiente. É preciso entender que o Bolsa Família não foi um coelho magicamente tirado da cartola, de um dia para o outro. Pelo contrário, foi o coroamento de muitos anos de amadurecimento da capacidade técnica do governo. Antes de tudo, foi uma proeza estatística e houve muita criatividade gerencial. Uma comissão municipal identifica a família beneficiária e confirma que se enquadra no programa. Como os favorecidos são claramente identificados, qualquer um pode denunciar abusos. Cria-se. automaticamente uma conta de banco (para a mãe) e emite-se, então, um cartão magnético, permitindo retirar o dinheiro mensalmente.

Vários estudos cuidadosos já foram realizados (cito aqui dados de André Panela). Como se previa, o impacto sobre a evasão-é minúsculo, pois oito anos de Bolsa Escola aumentam a frequência em apenas 0,2 ano. As mães participantes são obrigadas a exames pré-natais e vacinas, mas o impacto sobre saúde e nutrição também é ínfimo. O impacto sobre trabalho infantil é inconclusivo. Mas isso tudo é detalhe, diante do resultado espetacular de distribuir recursos para 29 milhões de pessoas, ajudando a tirá-las da pobreza - uma das façanhas festejadas no país e reconhecidas no exterior. Um dos aspectos mais notáveis do programa é ser muito barato, consumindo 0,5% do PIS. Em contraste, o programa de transferências para idosos e inválidos, somado ao que assegura renda mínima, consome 0,6 % e beneficia 3,5 milhões de pessoas. A aposentadoria rural consome 1,7% do PIB, para 8,1 milhões. Compare-se também com os 12% que custa a Previdência. Por tudo o que se sabe, há poucos desvios, pois os valores são pequenos e são robustos os mecanismos de distribuição e fiscalização. Ouseja, passa no teste da eficiência e da equidade, coisa rara em programas desse tipo.

"O irmão da minha empregada não quis aceitar um emprego, para não perder o Bolsa Família." Essa é uma típica acusação da classe média, que costuma torcer o nariz para o programa. Contudo, estudos rigorosamente contradizem essa observação direta. De fato, as análises quantitativas existem justamente porque a observação casual pode levantar suspeitas ou hipóteses, mas é incapaz de avaliar os fenômenos no seu todo. No caso, as pesquisas mostram que, embora possa existir, o desincentivo a aceitar empregos pesa pouquíssimo. Ou seja, o senso comum está equivocado. Em suma, o Bolsa Família pode ter errado no que viu, mas acertou espetacularmente no que não viu. É considerado pelo Banco Mundial como o melhor sistema de transferência de renda. O que ainda não sabemos é quanto tempo essas famílias levarão para não precisar mais dele. Experimenta-se com vários programas de criação de emprego, alguns bastante promissores e já bem grandinhos. Mas ainda é muito cedo para dizer que o problema está sendo resolvido.

Claudio de Moura Castro
Revista Veja

sábado, 28 de abril de 2012

Te Contei, não ? - A lei seca fez água



O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu na semana passada que só o bafômetro ou o exame de sangue podem incriminar um motorista pego guiando com um nível de álcool no sangue acima do permitido. Isso significa que testemunhos de policiais, exames clínicos e eventuais registros em vídeo que atestam sinais de embriaguez no motorista não têm efeito legal.
A decisão do STJ se baseia num conjunto de regras criadas para punir crimes de trânsito que ficou conhecido como Lei Seca. Entre outras medidas, ela precisou a quantidade que cada um pode beber antes de se sentar ao volante - 6 decigramas de álcool por litro de sangue, o equivalente a duas ou três latas de cerveja. O que deveria servir para apertar o cerco em torno dos motoristas bêbados, porém, acabou por afrouxá-lo. Só é possível determinar com exatidão se alguém ultrapassou a dosagem alcoólica autorizada mediante o uso do bafômetro ou um exame laboratorial. Como isso só pode ser feito com a anuência do motorista, a medida acabou por se chocar com o princípio constitucional que afirma que ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo. É como diz, com pesar, o procurador Evandro Gomes, do Distrito Federal: "Só se o motorista for muito otário para fazer o teste do bafômetro".

O STJ adotou essa posição porque não tinha escolha. A má redação da lei brasileira forçou o tribunal à decisão. "Foi tormentoso tomá-la. Como cidadãos, queremos o fim da impunidade no trânsito, mas, como magistrados, precisamos ser estritamente técnicos"", disse o ministro do STJ Og Fernandes.

O Congresso também já percebeu que a lei é ruim. Parlamentares concordam que é hora de reformá-la. "Estamos cientes de que o estado está sem instrumentos para punir o motorista bêbado. Precisamos agir rapidamente", diz o deputado Edinho Araújo (PMDB-SP), relator de um projeto que pretende resolver a questão. A ideia é ampliar a lista de instrumentos capazes de comprovar a bebedeira. "Antes da Lei Seca, os tribunais não condenavam à toa, mas a combinação de depoimentos com a comprovação clínica de embriaguez era praticamente infalível", afirma o procurador de Justiça paulista Mário Sarrubbo, mestre em legislação de trânsito. Até lá, a polícia e a Justiça ficam de mãos atadas diante de motoristas irresponsáveis.

Personalidade - Millôr Fernandes

 
 
 
Certa vez, ao viajar de avião com o cartunista Jaguar, Millôr Fernandes se entretinha devorando a seção de obituários de um jornal. "Você lê isso?", horrorizou-se Jaguar. Como de praxe em se tratando de Millôr, a resposta foi na lata: "E você deveria ler também; às vezes, a gente tem surpresas agradabilíssimas". Millôr tinha uma lucidez sem paralelo em qualquer outro artista, filósofo ou intelectual brasileiro de todos os tempos. Foi o pensador mais genial que o Brasil já produziu. Ele morreu às 9 da noite da última terça-feira em seu apartamento na Praia de Ipanema, no Rio de Janeiro, aos 88 anos. Foi escritor, poeta, desenhista, jornalista, humorista, tradutor, dramaturgo e cenografista. Tudo isso embalado pelo sentimento determinista da vida, marca dos grandes humanistas. Millôr teve uma prolífica atuação como colunista de VEJA, de 1968 a 1982, e em uma segunda fase, de 2004 a 2009. As ilustrações e escritos reunidos nesta reportagem (somados às assinaturas, que ele nunca repetia) mostram o brilho e a perenidade clássica de Millôr. O que o tornava ainda mais formidável era sua capacidade de criar aforismos que confrontavam as unanimidades, fossem as preguiçosas ou as dadas como verdades irrevogáveis. Nisso, não será exagero dizer que chegou a superar seu maior ídolo na área da escrita, o irlandês Bernard Shaw (1856-1950). Como desenhista, só é possível compará-lo a um artista da estatura do americano Saul Steinberg (1914-1999), com o qual dividiu o primeiro lugar num concurso em Buenos Aires, nos anos 50.
Nascido em uma família de classe média do bairro carioca do Méier, ele ficou órfão de pai com apenas 2 anos, em 1925. Deveria ter se chamado Milton, mas a caligrafia impenetrável do tabelião o fez Millôr. Aos 12, perdeu a mãe e foi morar na casa de tios. Como os miseráveis dos romances do inglês Charles Dickens no século XIX, lembrava-se que os primos ganhavam bife nas refeições, mas ele não. Com 15 anos já se empregara como contínuo da revista O Cruzeiro, do lendário Assis Chateaubriand. Pou­co depois, teve a primeira chance de exibir seu talento: foi convocado a preencher uma lacuna de publicidade em quatro páginas da revista coirmã A Cigarra. Ele deu o nome de Poste-Escrito ao conjunto do trabalho. Fez sucesso imediato. Assinava-se Vão Gôgo, alcunha que usaria inclusive em seu período áureo na revista O Cruzeiro, entre 1945 e início dos anos 60. Sua coluna O Pif-Paf (que depois viraria revista à parte, de vida breve e ruidosa) foi um dos carros-chefe da maior publicação nacional do período. Confiante, ele assumiu a falha de grafia em sua certidão de nascimento e "Millôr" nasceu para o mundo.
E com que estardalhaço! Em 1963, publicou em O Cruzeiro uma versão genial da história de Adão e Eva. Despertou a ira religiosa dos leitores. Foi demitido. Millôr passou a publicar em VEJA já na 13ª edição da revista. Quase ao mesmo tempo ajudou a criar O Pasquim, o tabloide incendiário que fustigava a ditadura militar e que, na definição de Millôr, "se fosse independente não duraria 100 dias e se durar 100 dias não é independente". Durou 8 173 dias. A redemocratização provocou-lhe um momentâneo choque de criatividade. Entregou-se acriticamente à corrente política de Leonel Brizola e seu nacionalismo ingênuo. Insistiu em fazer propaganda política brizolista na sua seção em VEJA. Foi demitido em 1982. Voltou a escrever na revista em 2004. Sua fase final foi de plenitude. Seu alvo, a hipocrisia. Dos esquerdistas que correram a receber seus milhões da "Bolsa Ditadura" no governo do PT, escreveu: "Quer dizer que aquilo não era ideologia, era investimento?".
ALTA FILOSOFIA
A morte é compulsória, a vida não

Não há problema tão grande que não caiba no dia seguinte. Morrer, por exemplo, é uma coisa que se deve deixar sempre pra depois
A diferença entre existir e viver é mais ou menos dez salários mínimos
O ruim das amizades eternas são os rompimentos definitivos
Todo homem nasce original e morre plágio
Só existe um amigo verdadeiramente sincero - o amigo do alheio
Uma coisa eu lhe garanto, amigo - o seu complexo de inferioridade não é inferior ao de ninguém
A boca é o aparelho excretor do cérebro
Não beber é o vício dos abstinentes
 
ANDANDO NA CONTRAMÃO
Não beber é o vício dos abstinentes

Pobre quando vê muito esmola nem desconfia
A Advocacia é a maneira legal de burlar a Justiça
Quando duas pessoas odeiam a mesma pessoa, têm a impressão de que se estimam
Ser pobre não é crime mas ajuda a chegar lá
Nos momentos de perigo é fundamental manter a presença de espírito, embora o ideal fosse conseguir a ausência do corpo
Não há nada que faça você se arrepender mais profundamente do que ser apanhado no ato
Os caras que se orgulham muito da ascendência no fundo estão lamentando apenas o quanto já descenderam
Quem não tem boa aparência acha sempre que as aparências enganam
Quando um quer, dois brigam
O egoísmo é a generosidade consigo mesmo
Errando é que se aprende. A errar
Especialista é o que só não ignora uma coisa
A esperança é a última que mata
As estatísticas provam: as estatísticas não provam nada
O otimista não sabe o que o espera!
A vida seria muito melhor se não fosse diária
Clássico é um escritor que não se contentou em chatear apenas os contemporâneos
Realmente, o dinheiro não é tudo. Temos também as ações ao portador, alguns terrenos na Barra, doze apartamentos no centro, joias - e alguns quadros comprados de artistas moribundos
Cão que ladra não morde. Enquanto ladra
Como são admiráveis essas pessoas que conseguem atravessar a vida sem fazer nada de admirável!
Pessoas com pavor de avião acabam morrendo em desastre de automóvel
PORTUGUÊS MILLHORADO
Abreviação: palavra comprida pra coisa curta

Ontem, ontem tinha agá, hoje não tem. Hoje, ontem tinha agá, e hoje, como ontem, também tem
Os analfabetos têm falta de vitamina ABC
Autodidata é uma pessoa que aprende a dirigir sozinha
Carapinha é uma cabeleira cheia de problemas raciais
Caravana é uma praga de viajantes
Tudo é erro na vida do revisor
POESIA BREVE
No aeroporto cheio
Eu filo
O adeus alheio

Aniversário é uma festa
Pra te lembrar
Do que resta

O político é um gaiato
Que prefere a versão ao fato

O burocrata,
Não sabias?,

Teve filhos
Em três vias

Quando abrirem meu coração
Vão achar sinalização 
De mão e contramão

NOSENSE
A invenção do alkaseltzer foi uma tempestade num copo d’água

E como dizia o careca: peruca é uma coisa que nunca me passou pela cabeça!
Na Amazônia a selva é tão inabitável que ninguém vive lá
 
AUTO DE FÉ
O sujeito que me fará acreditar na imortalidade da alma ainda está para ressuscitar

O ateísmo é uma espécie de religião em que ninguém acredita
Sabemos que VOCÊ, aí de cima, não tem mais como evitar o nascimento e a morte. Mas não pode, pelo menos, melhorar um pouco o intervalo?
AMOR & SEXO
Amor não é coisa pra amador

Só os imbecis acham que o sexo é um ato físico
De todas as taras sexuais, não existe nenhuma mais estranha do que a abstinência
Arranje um amor novo enquanto ainda estiver usando o velho
CASAMENTO
O adultério é o mercado negro do orgasmo

"Meu bem" é o nome de solteiro do marido
O preço da badalação é a eterna solidão
O pior casamento é o que dá certo
A felicidade conjugal é extremamente difícil. Mas, quando existe, é extraconjugal!
MULHERES
Só conheço um afrodisíaco - mulher

O melhor movimento feminino ainda é o dos quadris
Para conseguir vencer, uma mulher bonita tem que lutar muito. Ou não lutar nada
Anatomia é essa coisa que os homens também têm, mas nas mulheres fica muito melhor
Uma mulher nunca é tão bela quanto já foi
A beleza é a inteligência à flor da pele
EU, O HUMORISTA
Fiquem tranquilos os poderosos que têm medo de nós: nenhum humorista atira pra matar

Só no dia em que começaram a pagar bem pelo que eu escrevia comecei a aceitar que era rico de ideias. Bem, rico não, remediado de ideias
De uma coisa estou certo: sou bem pior do que os melhores - mas um pouquinho melhor do que os piores
Creio que a Terra é chata. Procuro em vão não sê-lo
Nunca ninguém me ensinou a pensar, a escrever ou a desenhar, coisa que se percebe facilmente examinando qualquer dos meus trabalhos
Sou um humorista nato. Muita gente, eu sei, preferiria que eu fosse um humorista morto, mas isso virá a seu tempo.
Eles não perdem por esperar
O ESTADO DA NAÇÃO
No momento em que aumentam as nossas descobertas arqueológicas fica evidente que o Brasil tem um enorme passado pela frente. Ou um enorme futuro por detrás, se preferem

O Brasil é os Estados Unidos onde eu vivo
Brasil, condenado à esperança
Nossos executivos governamentais se dividem entre os que são capazes de tudo e os que são incapazes de todo
Brasília é o desnecessário tornado irreversível
 
POLÍTICA & ÉTICA
A diferença fundamental entre Direita e Esquerda é que a Direita acredita cegamente em tudo que lhe ensinaram, e a Esquerda acredita cegamente em tudo que ensina

Se você perguntar a qualquer cidadão de uma ditadura o que acha do seu país, ele responde: "Não posso me queixar"
Ecologia: uma esquerda conservadora
Se algum dia eu abrir mão de minhas convicções morais, a preferência é sua
Me arrancam tudo à força, e depois me chamam de contribuinte
Acabar com a corrupção é o objetivo supremo de quem ainda não chegou ao poder
Os corruptos são encontrados em várias partes do mundo, quase todas no Brasil
O crime se organizou porque já não aguentava mais os assaltos da polícia

 
REVISTA VEJA