Quarta-feira passada. Teatro Casa Grande. Festival de jazz. As luzes se apagam. Com o trombone numa mão e o trompete na outra, exibidos para o alto como troféus, o incrível Trombone Shorty entra no palco.
A banda manda ver.
Eu não assisto a um festival de jazz sentado numa poltrona e sem reverberação de pista dance desde os tempos do Hotel Nacional, início dos 1980. Estou fissurado para curtir um som no escurinho do teatro.
De repente, antes do primeiro improviso, um feixe de luz branca é lançado da poltrona ao lado, atingindo meu olho esquerdo.
Viro o rosto e vejo: um celular!, no qual uma mulher de cabelos cor de clara digita animada, balançando a coluna na batida funky do show.
Respiro fundo e decido ser legal. “Vai ver ela só está terminando de mandar um torpedo. Já vai desligar.”
Mas não. A mulher está batendo papo. Just chatting.
Às vezes, dá uma paradinha, olha o palco, mantendo o celular com a luz acesa e virado para cima. Para o meu olho.
Chateado, penso em fazer o que sempre faço: pedir, polidamente, que a mulher desligue, ou apague aquela joça.
Acontece que ela é amiga do Dé Palmeira e do Toni Platão, que falaram comigo minutos atrás, e estão ao seu lado.
Não sei quem ela é. Tenho a sensação de que é alguém importante, que já vi. Não quero criar confusão.
Resisto, ainda. “Vamos ver o lado bom! São tempos novos para todos. Poxa, ela consegue curtir show e celular ao mesmo tempo. Puta pulsão multimídia.”
Mas logo reflito:
“O que é que o meu olho e meu ódio a luz de celular no teatro têm a ver com isso?” Partidário, pelo menos nas intenções, de buscar o equilíbrio, descubro que posso pular uma poltrona para a direita. “Sou sábio e bom”.
Mas a mulher percebe. Olha de volta, cogitando: por que desisti da visão excelente da minha poltrona e fugi dela?
Nem passa pela sua cabeça que se trata de uma manobra de emergência para, como nos filmes de terror, ficar “longe da luz”.
A distância melhora, mas a luz ainda me sacaneia. Não me conformo. A cada 20 compassos dou aquela olhada para o lado. Suspiro alto, duas vezes. Numa delas, chego a gemer de angústia.
Uma hora depois, ela vira o celular de costas e cobre-o com a mão, sobre a perna esquerda. Aleluia! Caiu a ficha?
Pouco antes do intervalo, a mulher-luz guarda a arma na bolsa, e consigo gozar, pela primeira vez na noite, sem medo, a performance de Trombone Shorty.
Deliro com a nota sustentada por quase três minutos. Muita gente acha que o cara vai morrer, mas é só a sua prodigiosa técnica de respiração circular.
Na volta do intervalo, a mulher de cabelos cor de clara não quer nem saber de celular. Limita-se a curtir o show com a velhaguarda do James Brown. Oba!
Curte tanto que, a certa altura, ao ver uma galera dançar no vão entre a lateral da plateia e o palco, decide ir até lá. Levantase, pede licença ao Toni e ao Dé e fica ainda alguns segundos no corredor.
De repente, como a um sinal (do celular?), começa a descer os degraus batendo palmas e dançando piradamente.
Quando chega ao centro do palco, que fica na altura de seus braços, agarra-se ao piso, de costas para a primeira fila e “serpenteia” até o canto onde está a galera, roçando- se na parede do proscênio.
E fica ali, tranquila, a dançar. “Caramba”, penso. “Que mulher descolada e livre. Dança quando quer, como quer, e ainda tira onda de multimídia, show, celular, tudo agora. Isso deve ser o futuro.”
Mas não é nada disso: é apenas Deborah Colker. A ficha só cai de madrugada, quando me levanto para beber água.
No dia seguinte, confirmo: era ela mesmo. Deborah.
Não sei ainda se era ela enquanto artista, enquanto gente, enquanto as duas coisas ou enquanto nenhuma delas: enquanto “outra”, ou “o outro”, ou o marketing.
Não sei o que aprendi com essa experiência. Que ando meio desligado, isso é certo, desde 1965, quando nasci.
Tanto que é a primeira vez que vejo Deborah Colker dançar.
Onde é que eu estive esse tempo todo?
A banda manda ver.
Eu não assisto a um festival de jazz sentado numa poltrona e sem reverberação de pista dance desde os tempos do Hotel Nacional, início dos 1980. Estou fissurado para curtir um som no escurinho do teatro.
De repente, antes do primeiro improviso, um feixe de luz branca é lançado da poltrona ao lado, atingindo meu olho esquerdo.
Viro o rosto e vejo: um celular!, no qual uma mulher de cabelos cor de clara digita animada, balançando a coluna na batida funky do show.
Respiro fundo e decido ser legal. “Vai ver ela só está terminando de mandar um torpedo. Já vai desligar.”
Mas não. A mulher está batendo papo. Just chatting.
Às vezes, dá uma paradinha, olha o palco, mantendo o celular com a luz acesa e virado para cima. Para o meu olho.
Chateado, penso em fazer o que sempre faço: pedir, polidamente, que a mulher desligue, ou apague aquela joça.
Acontece que ela é amiga do Dé Palmeira e do Toni Platão, que falaram comigo minutos atrás, e estão ao seu lado.
Não sei quem ela é. Tenho a sensação de que é alguém importante, que já vi. Não quero criar confusão.
Resisto, ainda. “Vamos ver o lado bom! São tempos novos para todos. Poxa, ela consegue curtir show e celular ao mesmo tempo. Puta pulsão multimídia.”
Mas logo reflito:
“O que é que o meu olho e meu ódio a luz de celular no teatro têm a ver com isso?” Partidário, pelo menos nas intenções, de buscar o equilíbrio, descubro que posso pular uma poltrona para a direita. “Sou sábio e bom”.
Mas a mulher percebe. Olha de volta, cogitando: por que desisti da visão excelente da minha poltrona e fugi dela?
Nem passa pela sua cabeça que se trata de uma manobra de emergência para, como nos filmes de terror, ficar “longe da luz”.
A distância melhora, mas a luz ainda me sacaneia. Não me conformo. A cada 20 compassos dou aquela olhada para o lado. Suspiro alto, duas vezes. Numa delas, chego a gemer de angústia.
Uma hora depois, ela vira o celular de costas e cobre-o com a mão, sobre a perna esquerda. Aleluia! Caiu a ficha?
Pouco antes do intervalo, a mulher-luz guarda a arma na bolsa, e consigo gozar, pela primeira vez na noite, sem medo, a performance de Trombone Shorty.
Deliro com a nota sustentada por quase três minutos. Muita gente acha que o cara vai morrer, mas é só a sua prodigiosa técnica de respiração circular.
Na volta do intervalo, a mulher de cabelos cor de clara não quer nem saber de celular. Limita-se a curtir o show com a velhaguarda do James Brown. Oba!
Curte tanto que, a certa altura, ao ver uma galera dançar no vão entre a lateral da plateia e o palco, decide ir até lá. Levantase, pede licença ao Toni e ao Dé e fica ainda alguns segundos no corredor.
De repente, como a um sinal (do celular?), começa a descer os degraus batendo palmas e dançando piradamente.
Quando chega ao centro do palco, que fica na altura de seus braços, agarra-se ao piso, de costas para a primeira fila e “serpenteia” até o canto onde está a galera, roçando- se na parede do proscênio.
E fica ali, tranquila, a dançar. “Caramba”, penso. “Que mulher descolada e livre. Dança quando quer, como quer, e ainda tira onda de multimídia, show, celular, tudo agora. Isso deve ser o futuro.”
Mas não é nada disso: é apenas Deborah Colker. A ficha só cai de madrugada, quando me levanto para beber água.
No dia seguinte, confirmo: era ela mesmo. Deborah.
Não sei ainda se era ela enquanto artista, enquanto gente, enquanto as duas coisas ou enquanto nenhuma delas: enquanto “outra”, ou “o outro”, ou o marketing.
Não sei o que aprendi com essa experiência. Que ando meio desligado, isso é certo, desde 1965, quando nasci.
Tanto que é a primeira vez que vejo Deborah Colker dançar.
Onde é que eu estive esse tempo todo?
O Globo
16/06/2012
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