quarta-feira, 27 de junho de 2012

Te Contei, não ? - 1958, o ano em que tudo começou para os quatro


Quando a voz de João Gilberto soou no rádio da sala, em meados de 1958, Gilberto Gil acabara de ganhar um violão, comprado a prestação. Talvez, dos quatro que, deste junho até novembro, estão chegando aos 70, ele tenha sido o primeiro a se convencer de que seu futuro na vida era a música. Culpa de João. Caetano Veloso também ouvia rádio, mas não na Salvador de Gil. Ainda morava em sua cidade natal, Santo Amaro da Purificação, e é possível que a voz e o violão que puseram a bossa nova em movimento tenham acontecido entre dois baiões de Luiz Gonzaga, um dos favoritos dele e de dona Canô.

Do rádio que Milton Nascimento ouvia em Três Pontas (na cozinha dos pais adotivos, com melhor acústica), saía um pouco de tudo, Marlene e Emilinha, Mancini e Legrand, The Platters e Yma Sumac, jazz e, agora, aluno de violão ele próprio, João Gilberto. Mas nada como Angela Maria. No Rio, Paulinho da Viola também foi tocado por "Chega de saudade" através do rádio, mas menos. Seu mundo era o do samba e do choro, desfilante dos blocos de Botafogo, aluno de violão de "seu" Zé Maria e ouvinte atento do pai, Cesar Faria, nos saraus suburbanos de Jacob do Bandolim.

Passados 54 anos, quando eles fazem parte de uma das mais ilustres gerações de músicos brasileiros, João Gilberto & Chega de saudade são referências distantes. Embora não se possa dizer que os quatro tenham partido dela, foi naquele 1958 que, de algum modo, eles começaram a fazer música.

Gil, o mais velho, cumpriu um caminho menos musical até transformar o primeiro violão no instrumento de trabalho de um virtuoso (também tocava acordeom). Antes de ser um incrível descobridor de acordes, permanentemente moderno (no melhor sentido do termo), fez curso de Administração, trabalhou na Gessy Lever, mas sem renunciar ao caminho que escolhera. Em 1963, conheceu Caetano, já então cursando o clássico em Salvador. Com o novo amigo, e com Maria Bethânia, Gal Costa e Tom Zé, Gil formou um grupo de baianos que logo estariam fazendo espetáculos como o Nós, por exemplo, no Teatro Vila Velha, em 1964.

Caetano tinha vários interesses culturais, mas a música e o cinema, a que se dedicou como crítico, estavam em primeiro lugar. Quando a irmã veio para o Rio substituir Nara Leão no show Opinião, ele veio junto. Como Gil, já compunha. E bem.

Admiração pelo vizinho

Milton, nascido na Tijuca, voltou ao Rio para fazer o primeiro ano ginasial. Reprovado em canto orfeônico, retornou a Três Pontas a fim de se submeter à segunda época no Ginásio São Luís, dirigido por padres canadenses. Foi aprovado com distinção, impressionando o examinador ao empregar a manossolfa (antigo método de solfejo orientado por gestos, do qual nunca ouvira falar). Ficou por lá, tocando violão, organizando grupos musicais e, de início, olhando o vizinho Wagner Tiso à distância (impressionava-o um cara tão jovem já saber tanto de música e tocar tão bem acordeom). Juntos, os dois iriam tentar a sorte tocando rock na noite de Belo Horizonte.

Paulinho da Viola cresceu entre os saraus suburbanos e escolas de samba, sobretudo a Portela, a cuja ala dos compositores filiou-se muito cedo. Contra a vontade do pai, dedicou-se à música. Estudou teoria e harmonia, depois de ser lançado numa casa que os outros três nem chegaram a conhecer, o Zicartola, reduto reabilitador do samba tradicional em plenos tempos de bossa nova.

Embora os caminhos que seguissem fossem pessoais, próprios, eles se cruzaram em alguns momentos. Gil e Caetano, naturalmente, jamais se separaram. Entraram juntos em festivais, juntos tomaram o atalho tropicalista, juntos se interessaram pelo universo pop e juntos, na expressão de Caetano, retomaram "a linha evolutiva" da música brasileira a partir de onde João Gilberto chegara.

Milton Nascimento, depois da primeira fase mineira, também conquistou o Rio num festival, aquele em que, sozinho no palco, metido num smoking, surpreendeu o Maracanãzinho com Travessia. Diferia de Paulinho da Viola por não ser um compositor de samba e diferia de Caetano e Gil por não ter qualquer compromisso com revoluções estéticas. Sua música tinha cheiro e gosto de terra. Como observou Ruy Guerra, a terra estava para ele como o mar para Caymmi. Mas adiante, ou bem mais adiante, Milton ainda faria show com os baianos e gravaria belo disco com Gil.

Paulinho da Viola, para surpresa de muitos (inclusive do parceiro mais constante, Elton Medeiros), chegou a imprimir ao seu violão toques de bossa nova, evidentes em sambas como Para um amor no Recife e Encontro. Foi a época de mais contato com Caetano, no Solar da Fossa, onde os dois mostravam suas composições um ao outro. Época, também, em que o tropicalista Capinan elogiou o Paulinho da inusitada Sinal fechado em oposição ao sambista do tradicional Foi um rio que passou em minha vida. Isso quando, na verdade, sambista e chorão, o da Viola jamais deixaria de ser ele mesmo.

Vozes da própria criação

Afinidades e diferenças, os quatro acabam sendo artistas do seu tempo com impressionante individualidade. Não há como confundi-los. Inclusive como intérpretes, papel que os quatro representam com raro brilho. De uma época em que o compositor passou a ser a voz da própria criação (já não precisando, como os de antigamente, correr atrás de cantores para gravá-los), Gil, Caetano, Milton e Paulinho têm conseguido viver suas canções com uma excelência que falta à grande maioria dos compositores. Milton já nasceu feito. Gil, Caetano e Paulinho da Viola se fizeram

Jornal O Globo

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