Se há alguma chance de escapar do impasse em que nos metemos, ela está em manter e acelerar os avanços tecnológicos. A salvação de Veneza por meio de comportas é uma boa metáfora para entender onde estão as soluções para os problemas ambientais.
Em algum momento de 2014, a Itália vai terminar a construção de 78 comportas móveis criadas para proteger as três baias de Veneza do aumento das marés do Mar Adriático. As portas maciças – de 20 por 30 metros, com 5 metros de espessura – permanecerão deitadas no fundo arenoso na junção entre a laguna e o mar. Quando houver previsão de maré alta, as comportas serão esvaziadas e preenchidas de ar comprimido, erguendo-se nos gonzos para manter o Mar Adriático fora da cidade. Três eclusas permitirão a entrada e a saída de navios da laguna quando as comportas estiverem levantadas.
Em nenhum outro lugar do mundo o ser humano teve de criar e recriar tão constantemente sua infraestrutura em resposta às mudanças ambientais quanto em Veneza. A ideia das comportas surgiu em 1966, depois da enchente que inundou a cidade por completo. Foram necessárias três décadas, de 1970 a 2002, para que o hidrólogo Roberto Frassetto e seus colegas convencessem as autoridades italianas a construí-las. Não são todos os especialistas que enxergam nas comportas oscilantes e flutuantes a salvação de Veneza. Depois de o projeto ser aprovado, o presidente do escritório italiano da WWF, o Fundo Mundial para a Natureza, declarou: “O destino da cidade agora depende de uma aposta tecnológica pretensiosa, cara e prejudicial ao ambiente”.
O esplendor de Veneza sempre dependeu, literalmente, de uma série de apostas tecnológicas pretensiosas, caras e prejudiciais ao ambiente. Suas construções são sustentadas por pilares feitos de lariços e carvalhos antigos arrancados de florestas do interior há 1 000 anos. Com o tempo, os pilares foram petrificados pela água salgada e construíram-se catedrais sobre eles. Pouco a pouco, a tecnologia ajudou a transformar a cidade de humildes pescadores no que conhecemos hoje.
Salvar Veneza significou criar Veneza não uma, mas muitas vezes desde a sua fundação. É por isso que resgatá-la do aumento do nível do mar serve como uma metáfora adequada para a solução dos enormes problemas ambientais deste século. Cada novo ato de salvação resultará em consequênciás não pretendidas, positivas e negativas, que, por sua vez, exigirão novas tentativas de salvar a cidade. O que chamamos de “salvar a Terra” exigirá, na verdade, criá-la e recriá-la inúmeras vezes enquanto a humanidade a habitar.
Atualmente, muitos ambientalistas enxergam a tecnologia como uma afronta à sacralidade da natureza, mas as tecnologias usadas até hoje pelo homem sempre foram perfeitamente naturais. Peles de animais, fogo, fazendas, moinhos de vento, usinas nucleares e painéis solares – todos esses avanços surgiram e foram criados a partir de materiais puros cxtraídos da Terra.
Além disso, no curso da história humana, as tecnologias não foram apenas inventadas pelo homem. Elas também ajudaram o homem a se inventar. Evidências arqueológicas recentes sugerem que a forma das mãos do homem moderno, com seus polegares e dedos mais curtos, permitiu um melhor manuseio das ferramentas. Mãos de macacos são ótimas para subir em árvores, mas não para lascar pedras ou confeccionar pontas de flechas. Os ancestrais do homem cujas mãos tinham esse formato mais adequado obtiveram uma vantagem evolutiva em relação aos outros.
A transformação das mãos e dos pulsos permitiu aos nossos antepassados andar cada vez mais eretos, caçar, comer carne e, assim, evoluir. Com a mudança na postura, o homem conseguiu correr atrás de animais atingidos por suas armas. A corrida de longa distância foi facilitada por glândulas sudoríparas que substituíram os pelos. O uso do fogo para cozinhar a carne adicionou uma quantidade muito maior de proteína à dieta, o que resultou em crescimento significativo do cérebro – tanto que algumas de nossas ancestrais começaram a dar à luz prematuramente. Esses bebês prematuros sobreviveram graças à criação de ferramentas feitas com vesículas e peles de animais que amarravam os recém-nascidos ao peito da mãe. A tecnologia, resumindo, nos tornou humanos.
É claro que, conforme nosso corpo, nosso cérebro e nossas ferramentas evoluíram, também evoluiu nossa habilidade de modificar radicalmente o ambiente. Caçamos mamutes e outras espécies até a extinção. Queimamos florestas e savanas inteiras para encontrar mais facilmente a caça e limpar a terra para a agricultura. E, muito antes de as emissões de CO2 pela ação humana começarem a afetar o clima, já tínhamos alterado o albedo da Terra, substituindo muitas das florestas do planeta por áreas de agricultura cultivada. Mesmo que a capacidade do homem de alterar o ambiente, ao longo do último século, tenha aumentado substancialmente, essa tendência é antiga. A Terra de 100, 200 ou 300 anos atrás já havia sido profundamente moldada pelos esforços humanos.
Nada disso altera a realidade e os riscos das crises ecológicas resultantes da ação do homem. O aquecimento global, o desmatamento, a pesca excessiva e outras atividades, se não ameaçam a nossa própria existência, certamente representam a possibilidade de sofrimento para milhares de milhões, se não bilhões, de seres humanos. Tudo isso está transformando a natureza em um ritmo nunca visto em centenas de milhões de anos. A diferença entre a nova crise ecológica e as depredações anteriores ao meio ambiente promovidas pelo homem e por seus ancestrais é em tamanho e escala, não na forma.
Há muito tempo os homens se tornam co-criadores do ambiente que habitam. Qualquer proposta para resolver os problemas ambientais que menospreze a tecnologia e tente negar a coevolução entre homens e natureza, postura ainda em vigor, corre o risco de piorá-los. No entanto, as elites do Ocidente – que se apoiam fortemente na tecnologia – afirmam justamente que o desenvolvimento e a tecnologia são as causas dos problemas ecológicos, não a solução. Essas elites argumentam que o sacrifício econômico é a saída para a crise ambiental, mas vivem atualmente um período de riqueza e abundância jamais visto. Elas consomem recursos em escala imensa, esmagando qualquer medida de conservação que possam tornar enquanto vivem em enclaves urbanos densos (e muitas vezes da moda), dirigindo automóveis econômicos e comprando produtos locais. De fato, as expressões mais visíveis e comuns da crença na salvação ecológica são as novas formas de consumo. A compra de produtos e de serviços verdes – corpo o Toyota Prius, a lavadora e secadora eficiente, o prédio de escritórios com certificação LEED – é identificada pelos consumidores como uma atitude que demonstra o seu status moral superior.
O mesmo se dá na esfera política. Líderes mundiais – para a alegría de um eleitorado de tendência esquerdista que controla o equilíbrio do poder político em muitas economias desenvolvidas – fazem promessas atrás de promessas sobre a mudança climática, a extinção de espécies, o desmatamento e a pobreza no mundo. Tudo enquanto cuidadosamente evitam qualquer ação que possa impor custos ou sacrifícios reais a seus eleitores. Mesmo que tenha sido conveniente para muitos observadores simpatizantes relacionar o fracasso de tais esforços à ganância corporativa, à Corrupção e à covardia política, a verdade é que todo o projeto que poderíamos definir como pós-materialista é, de maneira confusa, construído sobre uma base de abundância e consumo material que seria consideravelmente ameaçada por qualquer tentativa séria de resolver as crises ecológicas por meio de uma redução substancial da atividade econômica.
Não é tão difícil entender como essa hipocrisia acabou por contaminar uma parcela da nossa cultura com intenções aparentemente tão boas. As grandes populações do norte desenvolvido alcançaram uma segurança econômica, uma riqueza e uma liberdade sem precedentes. O objetivo perseguido pela humanidade por milhares de anos – a emancipação da natureza, do tribalismo, da escravidão e da pobreza – foi substituído hoje pela necessidade de lidar com as conseqüências da modernização, como a poluição, a proliferação nuclear e o aquecimento global.
Cada vez mais incrédulas em relação à meritocracia do capitalismo e ao critério econômico como padrões implícitos do sucesso individual e como o indicador que define o progresso da sociedade, as gerações posteriores à II Guerra Mundial redefiniram as noções de bem-estar e qualidade de vida nas sociedades desenvolvidas. O humanitarismo e o ambientalismo tornaram-se os movimentos sociais dominantes, levando a proteção ambiental, a preservação da qualidade de vida e outras questões da “política de vida”. termo cunhado pelo sociólogo britânico Anthony Giddens, para o primeiro plano.
A ascensão da economia do conhecimento – que engloba a medicina, o direito, as finanças, a imprensa, o mercado imobiliário, o marketing e o terceiro setor – acelerou ainda mais o desencanto crescente do Ocidente com a vida moderna, especialmente entre a elite educada. Os trabalhadores do conhecimento estão mais alienados em relação ao produto de seu trabalho do que qualquer outra classe na história, incapazes de reivindicar algum papel na produção de comida, abrigo ou até de artigos básicos de consumo. Mesmo assim eles podem passar tempo em lugares lindos – em seus jardins, no interior, na praia e nas proximidades de florestas. Enquanto aproveitam essas paisagens, eles dizem a si mesmos que as melhores coisas na vida são de graça, apesar de terem gasto e consumido muito para viajar para lugares onde se sentem calmos, em paz e longe das preocupações do mundo moderno.
Esses valores pós-materialistas abriram espaço para a ascensão de uma ecoteologia secular em grande parte incipiente, com medos apocalípticos de um colapso ecológico, noções desencantadas de uma vida em um mundo arruinado e a convicção crescente de que algum tipo de sacrifício coletivo é necessário para evitar o fim do mundo. Ao lado dessa pregação sombria brilham visões nostálgicas de um futuro transcendente, em que os humanos poderiam, mais uma vez, viver em harmonia com a natureza por meio do retorno da agricultura em pequena escala ou até do estilo de vida dos caçadores-coletores.
As contradições entre o mundo como ele é – cheio de consequências não intencionais das nossas ações – e o mundo como muitos de nós gostaríamos que ele fosse resultam em uma quase rejeição da modernidade. Gestos ocos são os sacramentos que definem essa ecologia. A crença de que devemos reduzir radicalmente nosso consumo para sobreviver enquanto civilização não é impedimento para as elites que pagam por universidades particulares, viagens frequentes de avião e iPads.
Assim, a ecoteologia, como todas as narrativas religiosas dominantes, atende às formas preponderantes de organização econômica e social nas quais está inserida. O catolicismo valorizava a pobreza, a hierarquia social e o agrarianismo para as massas nas sociedades feudais que viviam e trabalhavam na terra. O protestantismo defendia a industrialização, a acumulação de capital e a individualizaçào em meio ao crescimento das classes mercantis do começo das sociedades capitalistas – o que definiu as normas sociais na modernização das sociedades industriais.
A ecoteologia secular de hoje dá valor à criatividade, à imaginação e ao tempo livre no lugar da ética, da produtividade e da eficiência do trabalho em sociedades que cada vez mais prosperam a partir de suas economias do conhecimento e terceirizam a produção de bens industriais, entregando-a às sociedades em desenvolvimento. Vivendo em meio a níveis sem precedentes de riqueza e segurança, as elites ecológicas rejeitam o crescimento econômico como uma medida do bem-estar, contam fábulas sobre a modernidade e a tecnologia e alertam sobre a superpopulação no exterior, agora que as sociedades em que vivem são ricas e sua população parou de crescer.
Embora a ecoteologia seja mais forte em nações desenvolvidas da Europa e em cidades costeiras como Nova York e Los Angeles, nos Estados Unidos, essa tendência também pode ser facilmente identificada nos bairros ricos e bem educados do Rio de Janeiro, de Nova Délhi e da Cidade do Cabo.
Uma das características mais perenes da civilização é a maneira como as elites dominantes defendem crenças que entram em conflito com seu próprio comportamento. Os gregos antigos recitavam fábulas de Prometeu e Ícaro ao mesmo tempo que usavam o fogo, sonhavam em voar e buscavam alcançar fronteiras tecnológicas. Os primeiros agricultores contavam a história da expulsão do Éden como uma fábula contra a própria agricultura que praticavam. Europeus cristãos defendiam a pobreza e a paz enquanto acumulavam riquezas e travavam guerras.
Pregando a antimodernidade enquanto vivem como pessoas modernas, as elites ecológicas, seja em São Paulo, seja em São Francisco, confirmam seu status no topo da hierarquia pós-industrial do conhecimento. As elites abastadas dos países desenvolvidos oferecem tanto a seus compatriotas menos favorecidos quanto aos pobres do resto do mundo uma extensa lista de “não façam” – não se desenvolvam como nós nos desenvolvemos, não dirijam utilitários bregas, não consumam demais.
Isso gera o ressentimento, e não a emulação de seus companheiros cidadãos no próprio país e no exterior. Que essas elites ecológicas se mantenham em um padrão diferente e ao mesmo tempo insistam que todos são iguais é mais uma demonstração de seu status superior, pois, dessa forma, elas não têm de responder nem mesmo à realidade.
Apesar de propor uma solução, a atual ecoteologia que nega o mundo é, na verdade, um obstáculo importante no tratamento dos problemas ecológicos criados pela modernização – obstáculo que deve ser substituído por uma nova visão de mundo criativa e que celebre a vida. Afinal, o desenvolvimento humano, a riqueza e a tecnologia nos libertaram da fome, da privação e da insegurança. Agora, eles devem ser considerados essenciais para superar os riscos ecológicos.
A ideia de que nações pobres podem ser levadas a escolher um caminho em direção ao desenvolvimento fundamentalmente diferente do que foi usado no Ocidente é ingênua. O Brasil está desenvolvendo o interior de suas florestas, como a Europa e os Estados Unidos fizeram, com represas, fazendas, ranchos e estradas para vender sua carne, soja e minerais no mercado externo. Seus povos indígenas assinam contratos com madeireiras; seus seringueiros criam gado. A China é hoje uma produtora para o mundo graças à determinação confucionista, à industrialização e ao carvão barato – não a rodas-d”água, painéis solares e respeito à natureza. Nesse processo, a China tirou quase meio bilhão de camponeses da pobreza extrema. A Índia escolheu a modernização e a integração na economia global do conhecimento, em vez do caminho ascético e contemplativo defendido por Mahatma Gandhi.
Não há dúvida de que a humanidade está refazendo radicalmente a Terra, mas o temor de um apocalipse ecológico, de condenar esse mundo a uma destruição furiosa, não é sustentado pelas ciências. O aquecimento global pode desencadear desastres piores e a ruptura dos padrões de chuvas, degelo e agricultura, mas poucas evidências sugerem que ele acarretará o fim da modernização. Mesmo os cenários mais catastróficos do painel climático da Organização das Nações Unidas (ONU), o IPCC, preveem um aumento do crescimento econômico. Enquanto muitos ambientalistas ricos alegam estar especialmente preocupados com o impacto do aquecimento global sobre os pobres, é o desenvolvimento rápido, e não o retardado, que tem mais chance de proteger os pobres dos desastres naturais e de perdas na agricultura.
O que a modernização pode ameaçar de forma incisiva não é a civilização, mas a sobrevivência daquelas espécies e ambientes selvagens com os quais nos importamos. Embora o aquecimento global domine o discurso ecológico, as maiores ameaças ao que não é humano continuam a ser as alterações diretas na terra e nos mares. As maiores, mais antigas e mais diversificadas florestas do mundo estão sendo transformadas em plantações de árvores, áreas de cultivo e fazendas de gado. Os homens estão promovendo uma extinção de espécies maciça e sem precedentes com a destruição de habitats. Estamos prestes a perder os primatas. A pesca nos mares foi tão desmedida que a maior parte dos peixes grandes acabou.
A visão apocalíptica da ecoteologia adverte que a degradação da natureza vai prejudicar a base da civilização, mas a história mostrou o oposto: a degradação do meio ambiente nos enriqueceu. Tornamo-nos bastante adeptos da transferência da riqueza e da diversidade da natureza para os ambientes humanos. A solução dessas consequências não intencionais da modernidade é, e sempre foi, mais modernidade – assim como a solução das consequências não intencionais das nossas tecnologias sempre foi mais tecnologia. O bug do computador do ano 2000 foi resolvido com uma melhor programação do sistema, não com a volta das máquinas de escrever. A crise do buraco na camada de ozônio foi evitada não com o fim do ar-condicionado, mas por meio de tecnologias mais avançadas e menos prejudiciais.
A questão para a humanidade, portanto, não é se os homens e a civilizacão vão sobreviver, mas sim qual o tipo de planeta que habitaremos. Gostaríamos de um planeta com primatas selvagens, florestas antigas, um oceano vivo e um aumento modesto da temperatura, em vez de um extremo? Claro que gostaríamos. Todo mundo gostaria. Somente a modernização contínua e a inovação tecnológica podem tornar isso possível.
Depositar fé na modernização exigirá uma visão de mundo na qual a tecnologia seja humana e sagrada, em vez de desumana e profana. Isso vai demandar a substituição da noção antiquada de que o desenvolvimento é antiético para a preservação da natureza pela concepção de que a modernização é a chave para salvá-la. Chamemos essa ideia de “teologia da modernização”.
Enquanto a ecoteologia imagina que nossos problemas ecológicos são consequência da violação humana da natureza, a teologia da modernização enxerga os problemas ambientais como uma parte inevitável da vida na Terra. Enquanto a última geração de ecologistas via uma harmonia natural na Criação, os novos ecologistas veem mudanças constantes.
Enquanto os ecoteólogos sugerem que as consequências não intencionais do desenvolvimento humano podem ser evitadas, os patrocinadores da modernização enxergam essas consequências como inevitáveis, tanto de forma positiva como negativa. Enquanto as elites ecológicas veem os poderes da humanidade como inimigos da Criação, os modernistas os veem como ponto fulcral para sua salvação. A teologia da modernização deveria, portanto, louvar, e não profanar, as tecnologias que levaram nossos ancestrais a evoluir.
Os riscos que a humanidade enfrenta agora são, cada vez mais, fruto de nossa própria criação – e temos sobre eles um controle apenas parcial, improvisado e provisório. Vários tipos de libertação – do trabalho árduo na agricultura e altas taxas de mortalidade infantil à tuberculose e valores tradicionais opressivos – implicam novos problemas, desde o aquecimento global e a obesidade até a alienação e a depressão. Esses novos problemas serão, em grande escala, menos graves que os antigos. A obesidade é melhor do que a fome. Viver em um mundo mais quente é melhor do que habitar um mundo sem eletricidade. Mas os novos desafios não deixam de ser problemas sérios.
A boa notícia é que já existem muitas tecnologias nascentes e promissoras para superar os problemas ecológicos. Estabilizar a emissão de gases de efeito estufa exigirá uma nova geração de usinas nucleares para substituir de maneira barata as usinas de carvão e também, talvez, retirar o dióxido de carbono da atmosfera e alimentar usinas de dessalinização para regar e fazer crescer florestas nos atuais desertos. Recuar as fronteiras agrícolas para longe das florestas exigirá um aumento maciço da produtividade agrícola através da engenharia genética. Substituir fazendas de gado que degradam o meio ambiente exigirá, quem sabe, produzir carne em laboratório – o que, gradualmente, será visto como menos repugnante do que os métodos cruéis da produção de carne hoje. A solução do problema da extinção de espécies envolverá a criação de novos habitats e organismos, possivelmente a partir do DNA de espécies extintas.
Na tentativa de resolver essas questões, inevitavelmente serão criados novos problemas. Uma objeção comum à tecnologia e ao desenvolvimento é que eles trarão consequências não intencionais. Mas a vida na Terra sempre foi uma história de consequências não intencionais. As comportas de Veneza representam um exemplo vívido. A preocupação dos ambientalistas de que as comportas teriam grande impacto na vida marinha foi confirmada – mas não da maneira que se temia. Apesar de as comportas ainda estarem em construção, biólogos marinhos anunciaram que elas já abrigam muitas espécies de corais e peixes, algumas das quais existentes apenas no sul do Mediterrâneo e no Mar Vermelho.
Outros críticos das comportas questionaram o que aconteceria caso o aquecimento global aumentasse o nível do mar a uma altura maior que a das comportas. Se isso se tornar inevitável, é improvável que os venezianas abandonem sua cidade. Em vez disso, eles tentarão reerguê-la. Uma proposta irônica seria erguer a cidade por meio da injeção de dióxido de carbono 2 metros abaixo do fundo da laguna. Alguns podem até pensar que uma fé tão forte na solução tecnológica é um exemplo de arrogância, mas outros entenderão isso simplesmente como compaixão.
Se o Brasil se tornar um poder ecológico mundial, ele deverá adotar as suas capacidades tecnológicas, em vez de rejeitá-las. Do etanol de cana à soja do cerrado e ao pré-sal, décadas de investimento estatal na tecnologia destravaram o crescimento econômico do Brasil – e também trouxeram consequências negativas, como o desmatamento, a poluição e as dificuldades associadas às migrações rurais-urbanas. Agora, as capacidades tecnológicas do Brasil podem ser usadas para intensificar a agricultura, preservar florestas antigas ecologicamente valiosas, ajudar nações pobres a se adaptar a um mundo mais quente e desenvolver fontes mais limpas de energia.
O antropólogo francês Bruno Latour tem alguns pensamentos interessantes sobre o assunto. De acordo com Latour, o Frankenstein de Mary Shelley não é uma fábula contra a arrogância, mas sim contra o medo irracional da imperfeição. O Dr. Frankenstein é um anti-herói não porque ele criou a vida, mas porque fugiu aterrorizado ao confundir sua criação com um monstro – uma profecia que causa sua própria realização. A moral da história, no que diz respeito à salvação do planeta, é que devemos tratar nossas criações tecnológicas da mesma maneira que trataríamos nossos filhos, com amor e carinho, para que o nosso abandono não as transforme em monstros. Escreve Latour: “O pecado não é desejar ter domínio sobre a natureza, mas acreditar que esse domínio significa emancipação e não o estabelecimento de laços”. Em outras palavras, o termo “arrogância ecológica” não deve ser usado para descrever o desejo humano de refazer o mundo, mas sim a fé em que podemos pôr fim ao ciclo de criação e destruição.
Este texto foi escrito pelos antropólogos americanos Michael Shellenberger e Ted Nordhaus especialmente para VEJA. Eles são autores de um texto clássico no avesso do lugar-comum: A Morte do Ambientalismo, de 2004. Hoje lideram um instituto – o Breakthrough – cujo objetivo é pôr o dedo em feridas até hoje intocáveis
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