segunda-feira, 11 de junho de 2012

Te Contei, não ? - Piada sem a menor graça

“PELO DO MACACO” Neymar e Alexandre Pires, vestidos de gorila. O MP investiga se houve racismo (Foto: reprodução)


O cantor Alexandre Pires uma vez cantou sobre Zumbi dos Palmares. “Vocês conhecem Zumbi, ele foi o herói!”, dizia o refrão de sua música em homenagem ao líder negro do século XVII. No começo do ano, Pires ressurgiu em novo estilo. Com a ajuda do funkeiro Mr. Catra, ele promoveu o clipe de seu mais novo trabalho, “Kong”. “É no pelo do macaco que o bicho vai pegar”, canta o mineiro de 36 anos, cercado de negros fantasiados de gorilas. O Ministério Público Federal de Minas Gerais agora investiga se o clipe pode ser considerado racista.
O vídeo de “Kong” foi lançado em janeiro para embalar Carnavais Brasil afora – e ajudar a reerguer a carreira de Pires. Desde que largou o grupo de pagode Só Pra Contrariar, em 2000, seu trabalho voltou-se para o exterior. Pires ganhou dois Grammys e tornou-se um “ícone latino” para a comunidade hispânica nos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, ele perdeu espaço no Brasil. O clipe de “Kong” tem a participação do astro santista Neymar e do funkeiro da moda, Mr. Catra. Nas primeiras imagens, homens fantasiados de gorilas pulam o muro de uma casa e esmurram o peito como King Kong. Liderado por Mr. Catra, o bando domina uma festa ao redor de uma piscina apinhada de loiras e mulatas. O pagode começa, as moças rebolam com a “Dança do Kong”, e Alexandre Pires, Neymar e Mr. Catra aparecem vestidos de gorila. A letra traz versos como: “O bagulho é desse jeito, o bonde do Kong não vacila” ou “É instinto de leão, com pegada de gorila”.
Como produto, “Kong” decepcionou. Sua coreografia não virou moda nem há registros de jovens pelo país batendo no peito como se fossem gorilas. Seu maior impacto veio três meses após o lançamento. A Ouvidoria da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), órgão do governo federal, recebeu centenas de reclamações individuais e de entidades do movimento negro que acusam o vídeo de ter conteúdo racista. A Seppir encaminhou uma representação ao Ministério Público Federal, que agora investiga se há indícios para a abertura de um inquérito. “O Ministério Público colherá mais informações de representantes das classes, que em tese são vítimas do resultado do clipe, para chegar a uma conclusão”, afirmou o procurador da República em Uberlândia, Minas Gerais, Frederico Pellucci.
Alguns integrantes do movimento negro consideram a ação um patrulhamento. “O clipe é jocoso, uma brincadeira. Enxergar racismo aí é um exagero que restringe a manifestação artística”, diz José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares. Os participantes do clipe também não viram nada de errado. Neymar disse não ver relação com racismo. Mr. Catra afirmou que foi uma brincadeira. Alexandre Pires, em nota oficial, se disse “chocado” com a “leitura racista” feita por muitos. “Sou negro com orgulho da minha cor”, afirmou. “Devemos tratar toda e qualquer brincadeira com macacos e gorilas como uma referência a ser apagada da nossa memória?”

Talvez Pires não se importe com “brincadeiras com macacos”, mas Neymar sabe bem o rumo que elas podem tomar. No mês passado, o treinador santista, Muricy Ramalho, disse que ele foi alvo de uma banana durante uma partida contra o Bolívar, em La Paz. Na Europa, vários jogadores negros já foram vítimas de abuso que o associavam a macacos – bananas lançadas ao gramado ou gestos e sons associados a gorilas. Quem se preocupa com o efeito do clipe de Alexandre Pires sabe que a imagem de afrodescendentes vestidos de macaco pode reforçar um preconceito histórico contra negros. Nos séculos XVI e XVII, filósofos e cientistas criaram teorias para estratificar as raças. O iluminista escocês David Hume dizia, em 1770, suspeitar “que negros sejam naturalmente inferiores aos brancos”. Essas teorias sustentaram abjeções como a escravidão, ao rebaixar os negros à condição de meros animais.
“A associação entre negros e macacos é terrível”, afirma Carlos Alberto Silva Júnior, ouvidor nacional da Igualdade Racial. “Reforça estereótipos de inferiorização da população negra.” Para ele, o fato de o artista ser negro não elimina o problema. Talvez até o torne mais triste. Reafirmar estigmas ligados a uma raça é uma atitude – e hoje um crime – grave demais para ser transformada numa piada de mau gosto.
 

Época

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