quarta-feira, 20 de junho de 2012

Crônica do Dia - "Haviam" coisas


Felipe Pinheiro, meu saudoso amigo, costumava fazer uma brincadeira que adoro repetir sobre a epidemia do “pra mim fazer”. Quando um “pra mim andar” ou “pra mim comer” lhe feria os ouvidos, meu compadre franzia as sobrancelhas e repetia, entre o irritado e o desesperado: “Mim não faz nada! Mim não anda! Mim não come! Mim não faz coisa nenhuma!”.
Existem infindáveis “mins” realizando façanhas por aí, com o risco, inclusive, de ser aceitos pela norma culta. Se os que defendem que a linguagem já nasce com o homem estiverem corretos, e o neném berrar na sala de parto seguindo a concordância, o “pra mim errar” deve ser um defeito grave de fabricação.
Meu mim não age. É dos poucos orgulhos que eu tenho do meu português. Tenho um conhecimento pífio de gramática, escrevo de ouvido, herança da escola experimental. Passei anos com medo de desejar um bom-dia por escrito ao João Ubaldo Ribeiro. “Será que tem hífen?”, eu pensava. Um bloqueio assustador, como se estivesse prestando um exame. Só usava frases curtas, quase bilhetes e, mesmo assim, no sufoco.
Recentemente, eu me correspondi com um conterrâneo do Ubaldo igualmente culto e amante da última flor do Lácio. Fui bem, consegui desenvolver um raciocínio aceitável, mas, lá no fim do último parágrafo da caudalosa epístola, escrevi que “haviam incongruências”. As incongruências não importam, já o haviam…
“No Brasil, usamos o verbo ter no lugar do haver. ‘Tem um buraco enorme do lado esquerdo.’ Pois bem, mesmo que fossem dois (ou sete) buracos, o verbo permaneceria no singular: ‘tem sete buracos enormes do lado esquerdo’. Igual a ‘há sete buracos enormes do lado esquerdo’. Até aí, tudo bem, ninguém erra se usar o verbo haver: ninguém diz ‘hão sete buracos enormes’. Mas, se vai para o passado, neguinho fica com medo de não fazer a concordância e flexiona o verbo: ‘haviam sete buracos’. O certo é ‘havia sete buracos’. Nem ‘houveram sete assaltos’ (saí do buraco porque não dá para fazer uma frase convincente com buracos e o verbo no pretérito perfeito: houve, houveram; o imperfeito é havia, haviam).
O certo é ‘houve sete assaltos’. Ou ‘teve sete assaltos’. Claro que com o verbo ter você vai encontrar situações de flexão correta: ‘Os bancos tiveram sete assaltos este mês’. Porque aí o sujeito da frase é ‘os bancos’. É como dizer ‘os bancos sofreram sete assaltos’. Mas dizer que meramente houve assaltos não implica ‘assaltos’ ser o sujeito. Houve o que houve, há o que há, havia o que havia; o verbo haver aí é impessoal. O verbo ter, quando o substitui em casos iguais, também.”
Agradeci de joelhos a paciência e a aula, mas o lodaçal piorou. E existe? Existem sete buracos? Ou existe sete buracos? Quem existe é o buraco, então, deve ser existem. E os dias? “Hoje é 15 de setembro”? Ou “são 15”? As horas eu sei que são. E faz? É impessoal ou não? “Fazem quinze anos” ou “faz quinze anos”? É faz. A razão, segundo fui informada, beira a filosofia: é porque o tempo é.
O pediatra do meu filho tinha 14 anos quando enfrentou uma sequência de zeros distribuída democraticamente pelo professor belga de matemática do Santo Inácio. O pai recorreu a aulas particulares com um conterrâneo do mestre. O europeu mal-humorado explicou que só existem quatro operações relevantes: soma, subtração, multiplicação e divisão, depois, escreveu na lousa: 2+2, 2-2, 2×2 e 2:2 e pediu que o aluno resolvesse. Quando o rapaz terminou, o professor aconselhou um reforço em português. A dificuldade estava na leitura do enunciado dos problemas. Todas as falhas de compreensão pertenciam à lógica.
Nesse quesito, português só perde para a física em matéria de dificuldade.
O pouco que fixei, hoje, só me serve para entregar a idade.
A última reforma ortográfica dizimou os acentos. O computador conserta, mas eu redigito o agudo do “o” de “jóia” e “clarabóia”. Não aguento “joía” e “claraboía”. Voo, também, não tem mais circunflexo, virou “voo”. E não se distingue mais “história” de “estória”, uma sutileza que me agradava imenso.
Depois de tanta ignorância confessa, só não peço demissão por medo de redigir a carta.

Fernanda Torres / Revista Veja Rio

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