Da juventude à morte, em 2001, aos 89 anos, Jorge Amado atuou como o escritor brasileiro de maior prestígio e popularidade no mundo. A posição de relevo não o poupou dos ataques da crítica – que, em diferentes períodos e segundo os mais diversos critérios, encontrou em sua obra motivos de execração. A esquerda, que o incensara no início da carreira, condenou no final dos anos 1950 o abandono da agenda social pelo não dogmatismo. Nos anos 1960, os formalistas e puristas definiram seu estilo como desleixado. As feministas surgiram na década de 1970 para acusá-lo de populista e sexista. No fim da vida, ele ainda amargou o menosprezo dos universitários e da Academia Sueca, que anualmente concede o Prêmio Nobel de Literatura. Amado dizia não entender por que não recebera o tão ambicionado Nobel. Desconfiava de que os jurados, muitos deles comunistas “de longo curso”, ressentiam-se de sua rejeição ao stalinismo em troca de uma atitude moral leve, de ateu que rezava aos orixás, cosmopolita que, mesmo com berrantes camisas havaianas, preferia a religiosidade de sua Bahia natal às civilizações tidas como mais adiantadas.
A morte fez com que sua obra fosse relegada à indiferença. Os livros parecem ter morrido antes do autor. Os festejos de seu centenário ensejam a reedição dos livros e a nova versão da telenovela Gabriela, sucesso de 1975, que estreará na TV Globo em junho no horário das 23 horas com Juliana Paes no papel-título. Um dos maiores eventos é a exposição Jorge Amado e Universal, em cartaz até 22 de julho no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. Depois ela seguirá para várias cidades brasileiras, Lisboa e Porto. Em agosto, mês do nascimento de Amado, a Academia Brasileira de Letras (ABL) promoverá uma exposição com palestras e exibições de filmes baseados em sua obra. O centenário é, acima de tudo, a ocasião para uma revisão crítica. É preciso separar os livros que permanecem dos que podem ser esquecidos. E avaliar o papel de Amado nos novos tempos.
“Jorge foi para o limbo, como acontece com quase todos os clássicos quando morrem”, diz a romancista Nélida Piñón. “Passados 11 anos de sua morte, ele precisa sair de lá e voltar ao convívio dos leitores.” Nélida e seus colegas acadêmicos Ana Maria Machado e Sergio Paulo Rouanet assumiram na ABL a missão de revisar a obra dele. Em março, o trio promoveu na Sorbonne, em Paris, um evento que discutiu o lugar da imaginação de Jorge Amado no século XXI. O esforço revisionista será repetido no Reino Unido, na Espanha e em Portugal. “Queremos incentivar a releitura da obra no exterior e no Brasil, e não apenas por um ou outro livro isolado”, diz Ana Maria, presidente da ABL. “Apesar de um título, Capitães da areia, fazer parte do currículo escolar, os estudantes já não têm noção da grandeza do escritor. Daí o convite: vamos voltar a ler Jorge Amado.”
“Jorge foi para o limbo, como acontece com quase todos os clássicos quando morrem”, diz a romancista Nélida Piñón. “Passados 11 anos de sua morte, ele precisa sair de lá e voltar ao convívio dos leitores.” Nélida e seus colegas acadêmicos Ana Maria Machado e Sergio Paulo Rouanet assumiram na ABL a missão de revisar a obra dele. Em março, o trio promoveu na Sorbonne, em Paris, um evento que discutiu o lugar da imaginação de Jorge Amado no século XXI. O esforço revisionista será repetido no Reino Unido, na Espanha e em Portugal. “Queremos incentivar a releitura da obra no exterior e no Brasil, e não apenas por um ou outro livro isolado”, diz Ana Maria, presidente da ABL. “Apesar de um título, Capitães da areia, fazer parte do currículo escolar, os estudantes já não têm noção da grandeza do escritor. Daí o convite: vamos voltar a ler Jorge Amado.”
A produção de Amado compreende 34 títulos, dos quais se destacam 21 romances. Há poesia, crônicas, memórias e panfletos como O mundo da paz, de 1951, uma apologia do stalinismo, depois renegada. Seus livros foram traduzidos para 49 idiomas em 55 países. Em vida, ele vendeu cerca de 50 milhões de exemplares em todo o mundo. O sucesso só foi superado, após sua morte, pela obra de seu protegido Paulo Coelho, com seus 100 milhões de cópias vendidas e tradução para 66 idiomas. Coelho ocupa desde 2002 a cadeira de número 21 na ABL, que pertenceu ao economista Roberto Campos. Corre a lenda de que a Academia atendeu ao último desejo de Amado, que via em Coelho um sucessor no papel de embaixador das letras nacionais. Na última década, a obra de Coelho triunfou, enquanto a de Amado foi ofuscada. Triste declínio para quem, desde os 18 anos, com o lançamento do primeiro romance, O país do Carnaval, acostumou-se aos elogios da crítica e dos leitores.
Durante cinco décadas, ele enfileirou best-sellers. Os historiadores dividem sua produção em duas fases, segundo o critério ideológico: a do romance realista-socialista, entre 1931 e 1954, e a do romance pitoresco baiano, de 1958 a 1988. Na verdade, do ângulo das tramas e dos personagens, a divisão é arbitrária, pois cenas baianas e sensuais abundam na primeira fase, e a utopia não some na segunda. A primeira fase projetou-o internacionalmente, com a ajuda do Partido Comunista, do qual era membro. Ele então desfilava como celebridade comunista, ao lado do poeta Pablo Neruda e do ator Charles Chaplin.
Em meados da década de 1950, Amado rompeu com o comunismo sem dizer por que e aboliu a ideologia. Afirmou confidencialmente que se desiludiu com Stálin quando notou que vários de seus colegas desapareciam em circunstâncias misteriosas, mortos pela polícia política soviética. A mudança deu início à segunda fase, com Gabriela cravo e canela, publicado em 1958. Ali, Amado conta as aventuras da retirante Gabriela na zona do cacau da Bahia em 1925, numa tragicomédia recheada de cenas de sexo. Seguiram-se os best-sellers Dona Flor e seus dois maridos (1966) e Teresa Batista cansada de guerra (1972). O derradeiro êxito se deu com o romance Tieta do agreste, de 1977, história de uma prostituta que volta à terra natal para se vingar dos políticos da região. Depois de Tieta, Amado escreveu seus três últimos romances, que não foram sucesso nem de público nem de crítica. São eles os humorísticos Farda fardão camisola de dormir (1979), sátira ao adesismo dos “imortais” da ABL ao Estado Novo, O sumiço da santa (1988), sobre a transmutação de uma santa católica em entidade do candomblé, e o romance social tardio Tocaia grande (1984), que narra o crescimento na região cacaueira de uma cidade, impulsionada pela corrupção e pela violência.
Sem o apoio do Partidão, os livros de Amado gradualmente passaram a ser menos divulgados pelo mundo. A desvantagem foi compensada pelo sucesso no mercado interno com as adaptações para o cinema e a televisão. Na avaliação de Ana Maria Machado, mesmo que suas histórias tenham ganhado fama pelos filmes e pelas novelas, o número de leitores de seus livros diminuiu no mundo e no Brasil. Para ela e para boa parte da crítica atual, Amado retorna do limbo menor do que quando foi mandado para lá; menor, embora não menos poderoso. “Cada leitor deve formular seu juízo sobre Jorge”, diz Ana Maria. O leitor pode começar, sugere ela, por um romance menos conhecido e merecedor de resgate: Tenda dos milagres, de 1969. O livro acompanha a luta do poeta, capoeirista e mulato Pedro Archanjo pela liberdade de expressão das festas religiosas da Bahia. Como Amado, Archanjo frequenta o candomblé, mesmo depois de se tornar ateu. A defesa do ecumenismo feita no livro é, segundo Rouanet, o legado maior de Amado para o novo milênio. “Ao preconizar a mulatice, ele mostra que é possível praticar a lógica da inclusão por meio da mestiçagem cultural e racial”, afirma. “Ele oferece a solução para um mundo entregue ao tribalismo e ao isolamento das culturas.” Assim, Amado ensina que uma redenção possível para a humanidade está na prática da tolerância e do humanismo.
Sem o apoio do Partidão, os livros de Amado gradualmente passaram a ser menos divulgados pelo mundo. A desvantagem foi compensada pelo sucesso no mercado interno com as adaptações para o cinema e a televisão. Na avaliação de Ana Maria Machado, mesmo que suas histórias tenham ganhado fama pelos filmes e pelas novelas, o número de leitores de seus livros diminuiu no mundo e no Brasil. Para ela e para boa parte da crítica atual, Amado retorna do limbo menor do que quando foi mandado para lá; menor, embora não menos poderoso. “Cada leitor deve formular seu juízo sobre Jorge”, diz Ana Maria. O leitor pode começar, sugere ela, por um romance menos conhecido e merecedor de resgate: Tenda dos milagres, de 1969. O livro acompanha a luta do poeta, capoeirista e mulato Pedro Archanjo pela liberdade de expressão das festas religiosas da Bahia. Como Amado, Archanjo frequenta o candomblé, mesmo depois de se tornar ateu. A defesa do ecumenismo feita no livro é, segundo Rouanet, o legado maior de Amado para o novo milênio. “Ao preconizar a mulatice, ele mostra que é possível praticar a lógica da inclusão por meio da mestiçagem cultural e racial”, afirma. “Ele oferece a solução para um mundo entregue ao tribalismo e ao isolamento das culturas.” Assim, Amado ensina que uma redenção possível para a humanidade está na prática da tolerância e do humanismo.
Ainda que cheia de boas intenções e sensualidade, a obra de Jorge Amado resiste ao século XXI? A resposta é “em termos”. Ela não ostenta a universalidade nem a profundidade psicológica das parábolas de Machado de Assis, o atual escritor canônico do Brasil. No campo do romance de tese, sua narrativa se mostra inferior à de seus mestres, Lima Barreto e Graciliano Ramos. Muitas vezes ele não soube separar a imaginação do dogma comunista. Mesmo assim, colocado em perspectiva e descontadas as crendices políticas de seu tempo, Amado permanece como um grande contador de histórias e criador de tipos incomparáveis, como Jubiabá e seu antípoda Pedro Archanjo, mulheres que transpiram sexo como Gabriela e Dona Flor, as prostitutas paladinas Tieta e Teresa Batista e os sinistros coronéis do cacau. A trama mais comovente e simbólica de sua arte é uma novela fantástica e concisa publicada em 1961, A morte e a morte de Quincas Berro d’Água. Nela, um cidadão respeitável abandona a família, torna-se vagabundo, morre bêbado e retorna à vida durante o velório para uma última noite de farra com os amigos. Fábula da utopia e da insubmissão, eis um texto que fica de pé no século XXI. Quincas, como Jorge Amado, volta do limbo para lembrar que viver é não se aprisionar.
Revista Época
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