quarta-feira, 27 de junho de 2012

Te Contei, não ? - O curso amargo da água doce


À BEIRA DO RISCO: crianças brincam na margem do Canal do Anil, em Jacarepaguá, região vizinha ao epicentro da Rio+20 Foto: Custódio Coimbra

Rio? Não tem nenhum aqui”, respondeu uma jovem com ar de estranheza. Segundos depois, ela se lembra: “Ah, o valão”. As respostas de uma moradora de Queimados ao ser perguntada sobre a localização de um rio do município da Baixada Fluminense retratam em que se transformou grande parte dos cursos d’água do estado. O Rio de Janeiro, que acabou de sediar a Rio+20, reduziu muitos de seus rios a leitos de esgoto e lixo. Todos os dias, pelo menos 2,25 bilhões de litros de esgoto in natura são despejados nos rios do estado, revelam cálculos feitos com base em dados de 2010 do Sistema Nacional de Informações Sobre Saneamento (Snis), do Ministério das Cidades. Um panorama de degradação que será mostrado a partir de hoje no GLOBO, na série de reportagens “Os rios do Rio” — e que se agrava quando se leva em conta que, até 2025, segundo alerta da ONU, dois terços da população do planeta podem ser afetados pelas condições críticas da água (como escassez e poluição).

Vanguarda em tantas áreas, o Rio ainda não soube valorizar nem preservar a sua riqueza hídrica. Feito a pedido do GLOBO, um levantamento da Gerência de Geoprocessamento e Estudos Ambientais do Instituto Estadual do Ambiente (Inea) contabiliza 95 grandes bacias em dez regiões hidrográficas. Nelas, há 2.761 rios e afluentes, sem considerar riachos e áreas de nascentes. Juntos, eles percorrem mais de 15.500 quilômetros no estado. Desse total, cerca de 9.200 quilômetros ficam nas quatro regiões por onde passa o Paraíba do Sul, principal rio do estado, cujo desvio para o Guandu abastece aproximadamente nove milhões de pessoas na Região Metropolitana. Tamanha importância não evita que o histórico Paraíba também sofra um flagrante desrespeito. Ele, que nasce em São Paulo e corta o interior do Rio, ainda com um trecho na divisa com Minas Gerais, recebe diariamente 300 toneladas de carga orgânica, sendo 86% dejetos domésticos e 14% industriais.
Sem oxigênio, leitos de morte
Mas, se a vitalidade do Paraíba se mantém a despeito da ação do homem, muitos rios agonizam na Região Metropolitana. Geralmente, é quem vive perto deles que percebe de forma mais dramática o efeito devastador da poluição. Moradora das margens do Rio Faria-Timbó, na Favela Mandela de Pedra, no Complexo de Manguinhos, Rosanilda Galdino se depara sempre com o esgoto dentro de casa. O rio, diz ela, recebe dejetos de toda a comunidade. E essa água podre muitas vezes empoça no chão dos barracos.
— Isso aqui não é vida nem para bicho. Há ratos, lacraias, escorpiões. Mesmo com as janelas fechadas, há sempre nuvens de mosquito dentro de casa. Meus netos pegam uma doença atrás da outra — afirma Rosanilda, que, paradoxalmente, trabalha como faxineira na vizinha Fiocruz, instituição dedicada à saúde pública.
Uma análise feita pelo GLOBO a partir do monitoramento da água dos rios que é realizado pelo Inea mostra que, de 102 pontos de coleta no estado, 72 (ou 70%) apresentam níveis de coliformes fecais acima de 2.500/100ml, limite para uso de recreação. No levantamento foi considerada apenas a última medição para cada ponto feita entre 2008 e 2012. Se observada apenas a Região Metropolitana, o percentual aumenta para 82,6% (em 57 de 69 pontos de análise). Pior: em 23 rios, os níveis eram mais de cem vezes o aceitável. No Rio Guandu Mirim, por exemplo, que corta a região de Santa Cruz, são 16 milhões por cem mililitros, mesmo índice do Rio Queimados — aquele que a moradora não conhecia e que dá nome à cidade. Ou seja, os dois rios, assim como o Bengala, na Região Serrana, tinham 6.400 vezes mais coliformes que o tolerado.
Por outro indicador de qualidade da água, o oxigênio dissolvido, a situação também é alarmante. De 126 pontos no estado, 45 (35%) tinham níveis abaixo de 5mg/l (o ideal é que esteja acima desse índice). Na Região Metropolitana, de 81 pontos de coleta, os índices estavam abaixo do adequado em 43 (53%). E nove são cursos d’água mortos, com nível zero de oxigênio: os canais da Penha e do Itá, além dos rios Guandu Mirim, Irajá, Marinho, Piraquê, Queimados, Meriti e Vala do Sangue, todos na capital e na Baixada.
— O esgoto matou esses rios. E há outros agonizando, como o Maracanã, o Jacaré, o Faria-Timbó e o Canal do Anil, na capital — diz Paulo Canedo, coordenador do Laboratório de Hidrologia da Coppe/UFRJ. — O maior inimigo da água, no mundo inteiro, é o esgoto doméstico. Se você quiser poupar água, trate o esgoto. Se quiser ter menos doença, trate os esgotos, porque a metade das internações hospitalares é devido a doenças de veiculação hídrica. Quando se discute a questão ambiental, aponta-se uma lista de responsáveis pelos problemas. Mas todos se calam em relação ao esgoto. O assunto nem estava na pauta da Rio+20. O poder público e a sociedade não querem se responsabilizar.
O que os números comprovam há tempos é vivido pelo pescador Antônio Carlos Nogueira, morador de Jardim Gramacho, em Caxias. Navegando pelos rios Iguaçu e Sarapuí, ambos incluídos na lista de 17 cursos d’água com classificação “muito ruim” no Índice de Qualidade de Água do Inea, ele, em 17 anos de pesca, viu diminuir a fonte de sustento de sua família. Hoje, a escassez de peixes o leva a águas mais distantes para sobreviver.
— No Sarapuí, eu pescava robalo, corvina, pescadinha, sardinha e camarão. Hoje só tem tainha, e mesmo assim raramente. Sobrou pegar caranguejo no mangue da Baía — conta Antônio, enquanto olha desolado o rio, no encontro com o Iguaçu e próximo ao lixão de Gramacho, recentemente desativado.
Essa mesma Bacia do Iguaçu está recebendo quase R$ 1 bilhão em investimentos no Projeto Iguaçu. Ele prevê a recuperação ambiental e a prevenção de enchentes nos rios Iguaçu, Sarapuí e Botas, com recursos do PAC e do estado. Como parte do programa, já foram retirados quatro milhões de toneladas de lixo e lama desses cursos d’água, além de 20 mil pneus. Apesar disso, em muitas áreas, inclusive nas que já foram beneficiadas, vê-se lixo de todo tipo.
Em Belford Roxo, as margens do Rio Bota tem até nome famoso: Avenida Atlântica. Mas quem anda pelo calçadão dali, em vez da beleza de um dos principais cartões-postais do país, Copacabana, se defronta com água contaminada, sacolas de lixo, garrafas PET, animais mortos, sofás e carcaças de carros. No bairro Xavantes, próximo a cada rua perpendicular ao rio há tubulações de esgoto e águas pluviais despejando efluentes — enquanto, perto dali, uma estação de tratamento de esgoto enferruja há mais de dez anos sem funcionar.
Dinheiro que vai embora pelo ralo
Estações abandonadas ou operando abaixo de sua capacidade, aliás, são um lugar-comum no Rio, como a ETE São Gonçalo, construída pelo Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG), mas que permanece altamente ociosa, num município com grande carência de saneamento. Nova Iguaçu também é um exemplo desse problema: embora a cidade tenha oito estações de tratamento, o esgoto de apenas 4,86% dos moradores era tratado em 2010, segundo informou a prefeitura ao Inea para cálculo do ICMS Ecológico (fatia dos recursos do ICMS a que as cidades têm direito de acordo com metas ambientais atingidas). Não por acaso, Caxias, Nova Iguaçu, São João de Meriti e Belford Roxo estão na lista dos dez piores municípios em saneamento no Brasil entre aqueles com com mais de 300 mil habitantes.
Com dados do ICMS Ecológico, o Inea diz que o índice de tratamento no estado vem aumentando: de 24% da população urbana atendida em 2006 para 33% em 2011. E a meta é ambiciosa: chegar a 2018 com 80% de coleta e tratamento de esgoto, além de extinguir os lixões. Mas as deficiências são superlativas, e o passado condena.
— Na Baixada, por exemplo, o primeiro programa de saneamento aconteceu em 1982. Dez anos depois, o PDBG tampouco solucionou o problema. Houve outros programas, como o Nova Baixada e o Baixada Viva. Agora se anuncia o Guanabara Limpa. É um programa atrás do outro, com muito dinheiro público e financiamento externo. Mas a região não saiu do lugar — afirma Ana Lúcia Britto, professora e pesquisadora do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur), da UFRJ.

Fonte: O Globo

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